Matias

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Debaixo do sol quente, Matias comemorava alegremente a fuga feito pelos esgotos. O suor que escorria fazia as mechas de cabelo ondulado grudarem-se à testa. Festejava aliviado. Estava fora do Caminho. Não precisaria mais assumir seus erros e, rebelde que era, viveria e recomeçaria bem longe.

O Caminho era um lugar difícil, tornara-se um lugar de opressão e mentiras e, para ele que ardia em rebeldia, era insuportável. Seu pai, Kevin, havia chegado ao Caminho alguns anos antes, meses depois chegara seu irmão, João. Meses depois, João fora morto a tiros e publicamente na praça pública do Caminho por Joaquim. Acontece que Joaquim era alguém por quem Kevin nutria forte carinho e afeto; mesmo após a brutalidade, as autoridades do Caminho resolveram nada fazer. Joaquim permaneceu em liberdade. Quanto a Kevin, este pareceu escurecer.

Quando Matias chegou ao Caminho, as palavras que seu pai lhe contava eram estas. Curtas, mal preenchiam um parágrafo se forem escritas. Matias perdera seu pai no começo do fim e nunca mais sentiu reencontrar. O homem que ele achara anos depois no Caminho, era alguém bem distante e frio, que se tornara um capacho das autoridades locais.

O lugar era grande e seguro, cercado por paredes e ônibus empilhados trancando as ruas. Dessa forma eles conseguiram cercar quase um bairro todo. Quando ficou grande demais, eles decidiram parar, fortificar e controlar a pequena sociedade criada. As leis eram rígidas, como por exemplo, ninguém sabia a saída do Caminho. Falavam-se em escadas para pular os muros, mas dessa forma não havia como transportar cavalos e veículos. Eram muitas questões não sanadas.

Logo que Matias chegou, foi obrigado a ficar nu e o trancaram por uma semana. Kevin logo ficou sabendo, correu ao cárcere e implorou às autoridades a soltura do filho. Feito. Matias ganhou liberdade e tornara-se um cidadão oficial.

Logo no início, Matias decidira morar com seu pai. Duas semanas depois, sentia-se um completo estranho. Kevin havia desistido de ser pai. Entrou em contato com o setor de alojamento e conseguiu um novo local, contanto que assumisse uma nova função dentro do Caminho. Ser um discípulo. Disseram-lhe que os discípulos eram valentes e exploradores. Ele era muito juvenil, sua única rota era ser livre. Aquela, embora não soubesse ao todo qual sua função, era uma função que lhe fazia jus.

Numa manhã comum, saiu da casa de seu pai com os seus pertences em direção à reunião que lhe introduziria nos discípulos. Ele não percebeu a facilidade com que subiu de cargo, pois ele não percebia muita coisa, mas os líderes o observavam desde que entrou. Ele era vívido, valente, mas frio e rebelde. Logo nos primeiros dias, conhecera Penélope e o "Buraco da Glória", um clube clandestino de drogas, sexo e afins. Logo se tornou da galera e a galera lhe disse da extrema proibição. Acontece que o caminho, pelo menos originalmente, era uma comunidade fundada por um padre e as regras se baseiam na cristandade. O caminho sofreu fortes ataques e grandes polêmicas em nome da fé, até que mudou, virou o caçador por debaixo dos panos, mas a população, fervorosa, não sabia dos crimes do Caminho. O buraco da glória, sem que Matias soubesse, era o seu primeiro teste para entrar nos discípulos, pois os discípulos, segundo o padre-chefe, precisariam ser pessoas pecaminosas e sacrificar suas vidas pelo Caminho. Matias não sabia disso.

Não se surpreendeu que os discípulos que lhe deram as boas-vindas, eram, em sua maioria, frequentadores assíduos do buraco da glória. Ficou felicíssimo com isso. Era sua galera. Saíra de casa categórico. Até que lhe puseram numa cadeira dentro de uma sala cinza, sem janelas, totalmente silenciosa. À sua frente, havia uma mesa, com oito cadeiras, onde os líderes da comunidade lhe interrogariam e lhe falariam sua função.

Apesar dos dias frenéticos desde que entrou, sentira um certo nervosismo pela primeira vez após dias. Entraram um a um, e não prestou atenção em todos, mas havia um padre, uma mulher que se sentou na cadeira principal e por fim, seu pai, Kevin.

Os presentes apresentaram-se. Setor de segurança, de agricultura, de religiosidade, que era o Padre, o responsável pelos discípulos, seu pai e a líder do Caminho, Diana. Os outros não informaram seus setores. Apresentaram-lhe lindamente os objetivos e conceito de ser um discípulo, toda a linda fábula, da qual Matias não prestara atenção, apenas havia estado surpreso com seu pai ali. Durante a leitura sobre os discípulos, observara seu pai fazer-lhe um sinal negativo. Mas e então? Viveria na casa com estranho do seu pai ou sairia em exploração?

A pergunta lhe foi feita. Você aceita. Aceito. Saiu e comemorou com os amigos, mas não viu mais seu pai naquele dia. Foi então conduzido para sua nova residência, que ficava após a ponte. Perto do setor de agricultura. À noite, farreou no buraco da glória.

***

Anos antes, durante o processo de expansão, as autoridades decidiram aumentar consideravelmente suas terras e conseguiram rapidamente. Acontece que essa nova expansão possuía uma parte da antiga avenida principal. Os transeuntes, por várias vezes, invadiram o caminho. Ou então, vinham descontrolados com carros em fuga. E o pior: eram facilmente descobertos e invadidos.

Após inúmeros problemas, decidiram liberar a avenida e erguer uma ponte que ligava as duas regiões. Isso funcionou muito bem e a aumentou a segurança, diminuíram os ataques. Era possível verificar ao longe faróis de veículos e vigia-los. A região onde ficava a igreja e habitavam os líderes, chamou-se zona 1. A zona 2, zona da agricultura, ficava após a ponte. Era onde Matias foi morar.

Culturalmente, a zona 2 ficou com má fama pelos boatos do buraco da glória, bêbados na rua e pelos trabalhadores do setor de agricultura. Raramente eram aceitos novos integrantes. O caminho já tinha pessoas suficientes e alienadas o suficiente. Não introduziriam sobreviventes facilmente, era suicídio. Mas, as raras exceções, os novatos trabalhavam na zona 2 e eram proibidos de cruzar a ponte. Trabalhavam na agricultura com supervisão armada e fria dos discípulos.

Matias gozou seus primeiros meses em alegria, libertinagem, e logo tornou-se mais um bêbado pelas ruas. Ainda não desempenhara nenhuma missão como discípulo, não entendia o porquê. Os primeiros meses nada sabia de sua função. Testavam-lhe para saber se seria capaz.

Numa noite voltou para casa sóbrio e frio. Decidido, resolutamente, a procurar seu pai no dia seguinte. Antes, festejava no buraco da glória. A proprietária do local era uma menina excêntrica e ruiva chamada Penélope. Eles já eram bem mais que amigos. Quando o efeito batia, eles transavam nas mesas para que os outros assistissem. Nessa noite, ela conseguiu alcançar um estado alto de transe e contou para Matias toda a verdade. Matias era a sua missão, nada mais. Aquilo foi um golpe. Seco. Apesar da libertinagem, os dias no buraco da glória renderam-lhe um afeto especial pela ruiva, mas para ela, ele era apenas um trabalho. Por uns breves segundos, no caminho de volta para casa, Matias tinha o mesmo semblante de Kevin. Envergonhou-se. Acendeu um cigarro, fumou.

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