Eu raramente grito. Mesmo após todo o horror que se desencadeou sobre mim nos últimos anos, mas aquela era uma exceção. Eu gritei, bem alto.
PARA. FREIA. O barulho do nosso carro se chocando contra aquele corpo me pôs de volta no meu silêncio. Então assisti, em fração de segundos, o corpo daquele jovem voar por cima do nosso carro e cair semimorto uns metros atrás. O vi por uns segundos apenas, Téo dirigia muito rápido. Então, aquela raridade que não se repetia há anos acontece mais uma vez. Grito. PARA.
Ele freia, bruscamente. Inclinado para trás, eu divido meu olhar entre o corpo atrás de nós e os olhos frios e raivosos de Téo. Permanecemos num silêncio de discernimento e adivinhação do pensamento um do outro. Eu saio do carro. O sol é extremamente quente. Respiro fundo e dou passos aleatórios tentado digerir o barulho do corpo daquele jovem se desfazendo em nossa lataria. O susto ainda me assombra. O sol de rachar a pele, mas vem nuvens bem escuras no horizonte. Ando em círculos aleatórios. Téo matou aquele rapaz. Anos atrás eu atropelaria qualquer um, mas hoje, nesse instinto de paternidade, eu não gostei nada do que Téo fez.
Téo sai do carro e eu não entendo onde foi parar aquele menino cheio de altivez, sem-vergonhice, risonho e brincalhão. Os últimos eventos nos transformaram, mas não pensei que chegaria de ver Téo sair do carro, andar até o jovem, ainda vivo, e enfiar três facadas na cara do jovem. E depois, numa frieza, checar bolsos e retirar a mochila de viajante que ele trazia, úmida pelo sangue do garoto. Ele volta, enfia a mochila no banco traseiro e senta-se novamente, pronto para dirigir. Não era o ideal eu deixa-lo só e me abandonar na CE-085, em meio a um sol quente e perto o suficiente de uma cena de crime. Eu entro no carro, seguimos. É quase noite.
***
A chuva soa sinfônica no teto do carro, por isso não teria que permanecer num silêncio constrangedor com Téo a noite toda. Entramos por entre os matos e cobrimos o carro com alguns galhos para passar a noite. Não via luz natural, mas tínhamos um isqueiro, lanternas, fósforos e cigarros. Eu não deixei transparecer a minha fome, teria que suportar até outro dia. Téo começa a brincar com o isqueiro. Eu me enrolo no moletom e inclino o banco ao máximo, quase encostando na mochila úmida de sangue. Isso o faz lembrar a mochila, ele debruça o corpo para a mochila, com o isqueiro em mãos e fuça tudo. Sorte. Estava cheio de tudo. Eu finjo que não vejo a enorme quantidade de enlatados e outros ultraprocessados que já deviam estar vencidos. Ele me oferece todos. Em silêncio, aceito e como. Depois fico pensando, enquanto a forte chuva estrala na lataria, em como somos frios. Depois de comer, ele acende um cigarro e fuma. Eu? Eu o desconheço. Não discutíamos quem iria vigiar a noite, não nos falamos desde então. Ferindo meu orgulho, eu perco e durmo. Muito. Noutro dia já faz sol.
Fiz parecer que tinha ido atender às minhas necessidades fisiológicas, mas tinha ido chorar. Não nos falávamos desde o que eu fiz, o atropelamento intensificou nosso silêncio, mas observávamos. Éramos o único ser vivo que o outro via. Então empreitei-me por entre as árvores, matos, até que a visão dele não me alcançasse e chorei. A vida biológica é mantida por outra ideia de vida. E que vida era essa?
Dentro do carro, Téo novamente ao volante. Não sabíamos bem das horas, não sabíamos bem para onde iríamos, circulamos por onde julgamos ser mais deserto e menos perigoso. Enfim, nossa experiência serviu, e nas horas ao volante não vimos nenhum rastro de vida, apenas de mortos.
Quando eu era criança, por entres todas as traquinagens, eu era preenchido por um sentimento de pena e piedade ao ver uns cachorros de rua, assombrados. Apanhavam tanto que qualquer sinal suspeito, corriam e grunhiam chorosos. Magros, sujos, uns completos abandonados. Logo meus sentimentos sumiam, e eu fingia pegar uma pedra no chão. Antes mesmos que minhas mãos alcançassem a altura dos joelhos, eles corriam desesperados. Apanhavam tanto, totalmente traumatizados, mas, o que me chamava mais a atenção eram suas carências, de comida e de afeto.
Antes que o céu ganhasse tons de marrons e alaranjasse ao pôr do sol, vi caminhar ao longe uma pequena matilha de cachorros caramelo. Inteligentes, andavam em grupos e eram mais rápidos. Não havia agora tantas mãos que lhes arremessassem pedras, mas continuavam completamente abandonados.
Havia chorado pela manhã, acabei dando uns cochilos durante a viagem, ao despertar, triste, os cachorros me trazem essas lembranças. Entramos por entre lotes de coqueiros, embrenhamos nos matagais embaixo do coqueiro e apagamos o rastro dos pneus do carro. Tudo no silêncio.
Eu não sei o que se passava na cabeça dele, mas na minha era pura dúvida. No começo do fim, eu era cheio de dúvidas e deixava tudo ao cuidado dos meus irmãos, mas depois que fiquei só, eu nunca mais tive dúvida. Não era possível sobreviver com dúvidas. Até agora. E o meu silêncio era uma tentativa de buscar resolução. Seguir só ou seguir com Téo? Enquanto não decidíamos, silenciamos feito dois bichos. Era possível ouvir qualquer carro que passasse pela pista e, na noite, ver qualquer farol se aproximar. Nada disso aconteceria.
***
Pela manhã, após perder mais uma vez e dormir a noite toda, acordo e não vejo Téo. Subitamente pego a faca. A lógica logo me toma após o susto. Se alguém o tivesse raptado, teriam feito o mesmo comigo. Se tivessem vindo o roubar ou matar, fariam o mesmo comigo. Concluo: Téo foi embora. Errata: Téo foi embora sem se despedir, o que poderia ser categorizado como uma fuga.
Isso me dói.