001

343 14 2
                                    

Na parede da nossa sala de estar há um quadro da Madre Teresa pendurado onde ficaria uma televisão, se tivéssemos dinheiro para comprar uma de pendurar na parede, ou mesmo uma casa com paredes que comportassem uma televisão

Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.

Na parede da nossa sala de estar há um quadro da Madre Teresa pendurado onde ficaria uma televisão, se tivéssemos dinheiro para comprar uma de pendurar na parede, ou mesmo uma casa com paredes que comportassem uma televisão.

As paredes de um trailer não são feitas do mesmo material de uma casa normal. Em um trailer, basta um arranhão e elas se esfarelam nos dedos feito giz.

Certa vez, perguntei à minha mãe, Janean, por que ela tinha um quadro da Madre Teresa na parede da sala.
— Aquela vagabunda era uma farsante — respondeu ela.
Palavras dela. Não minhas.
Quando se é uma pessoa horrível, imagino que buscar o que há de horrível nos outros seja uma espécie de tática de sobrevivência.

Levar o foco à obscuridade alheia, na esperança de mascarar a própria obscuridade. Foi assim que a minha mãe viveu a vida inteira.
Sempre buscando o pior em todo mundo. Até na própria filha.
Até na Madre Teresa.

Janean está deitada no sofá, na mesma posição em que estava há oito horas, quando saí para meu turno de trabalho no McDonald's.

Encara o quadro da Madre Teresa, mas na verdade não está olhando para ele. É como se os olhos dela tivessem parado de enxergar.
Parado de absorver.

Janean é dependente química. Percebi esse fato lá pelos nove anos, mas naquela época os vícios se limitavam a homens, álcool e apostas.

Ao longo dos anos, os vícios foram ficando mais evidentes e muito mais letais. Acho que faz uns cinco anos, eu tinha cerca de quatorze, que a flagrei injetando metanfetamina pela primeira vez. Quando uma pessoa começa a usar metanfetamina com re-gularidade, sua expectativa de vida é drasticamente reduzida. Já pesquisei no Google, na biblioteca da escola. Quanto tempo vive um viciado em metanfetamina?

De seis a sete anos, segundo a internet.
Já vi minha mãe inconsciente várias vezes durante esses anos todos, mas agora parece diferente. Parece definitivo.
— Janean?
Minha voz soa uma calma que sem dúvida eu não deveria sentir neste momento. Sinto que minha voz deveria estar trê-mula, ou indisponível. Eu me envergonho um pouco de minha falta de reação.
Largo a bolsa no chão e a encaro intensamente, no outro lado da sala. Está chovendo lá fora e ainda nem fechei a porta, de modo que estou ficando ensopada. Mas fechar a porta e proteger as costas da chuva é a menor das minhas preocupações neste momento, enquanto observo Janean encarando a Madre Teresa.

Um dos braços de Janean está apoiado na barriga, e o outro esta largado sobre a lateral do sofá, com os dedos tocando bem de leve o carpete surrado. Ela está um pouco inchada, o que a faz parecer mais jovem. Não mais jovem que sua idade - ela so tem 39 —, porém mais jovem do que o vício a faz aparentar. As bochechas estão um pouquinho menos encovadas, e os vinos que nos últimos anos surgiram em torno de sua boca parecem suavizados por uma aplicação de Botox.
—Janean
Nada.
A boca está entreaberta, revelando os dentes lascados, podres e amarelos. Parece que a vida se esvaiu de seu corpo bem no meio de uma frase.
Eu já havia imaginado este momento antes. Quando a gente odeia muito alguém, às vezes, é impossível não passar a noite em claro, na cama, pensando em como a vida seria se essa pessoa estivesse morta. Eu imaginava uma cena diferente, algo muito mais dramático.
Encaro Janean por mais um instante, esperando para ver se ela não está apenas em algum transe. Dou uns passos à frente e paro ao ver seu braço. Bem na curva interna do cotovelo há uma agulha pendurada na pele.
Assim que vejo isso, a realidade do momento me domina, feito uma membrana pegajosa, e me enche de náusea. Dou meia-volta e saio correndo da casa. Sinto que vou vomitar, então me apoio no corrimão apodrecido, tentando não forçar demais para que ele não entorte sob o meu peso.
Assim que vomito, sou tomada de alívio, pois já estava começando a me preocupar com minha falta de reação a este momento divisor de águas. Posso não estar histérica, como uma filha deveria, mas pelo menos sinto alguma coisa.

Limpo a boca na manga do uniforme do McDonald's.
Sento-me na escada, apesar da chuva que ainda desaba do céu escuro e impiedoso.

Meu cabelo e minhas roupas estão ensopados. Meu rosto também, mas nada do que escorre por minhas bochechas são lágrimas.

É só chuva.
Olhos molhados, coração seco.

Fecho os olhos e cubro o rosto com as mãos, tentando entender se essa indiferença é fruto de minha criação, ou se nasci com defeito. Fico pensando qual criação é pior para um ser humano.

O tipo em que a pessoa é amada e protegida a ponto de só perceber a crueldade do mundo quando é tarde demais para que desenvolva as habilidades necessárias ao enfrentamento, ou o tipo de criação que eu tive. A pior versão de uma família, cujo único aprendizado é o enfrentamento.

Antes de chegar à idade de poder trabalhar e comprar minha própria comida, passei muitas noites acordada, incapaz de dormir, com o estômago roncando de tanta fome.

Certa vez, Jenan disse que os roncos que saíam de meu estômago eram os rosnados de um gato esfomeado que morava lá dentro, e o gato continuaria rosnando se eu não o alimentasse.
Depois disso, toda vez que eu sentia fome, imaginava aquele gato dentro da minha barriga, procurando uma comida que não estava lá. Meu medo era que ele devorasse minhas entranhas se não fosse alimentado, então às vezes eu comia coisas que não eram comida, só para satisfazer o gato faminto

Uma vez ela me deixou sozinha por tanto tempo, que catei cascas de banana e de ovo no lixo e comi.
Já tentei até comer o enchimento da almofada do sofá, mas era muito ruim de engolir. Passei a maior parte da infância morrendo de medo de estar sendo devorada por dentro, pouco a pouco, por aquele gato esfomeado.

Que eu saiba, ela nunca chegou a se ausentar por mais de um dia, mas para uma criança sozinha o tempo parece muito maior.

Lembro que ela entrava cambaleando pela porta, desabava no sofá e ficava horas lá deitada. Eu adormecia encolhidinha na outra ponta, tamanho era o medo de deixá-la sozinha.

Daí, na manhã seguinte, eu sempre acordava e encontrava minha mãe na cozinha, preparando o café. Nem sempre era um café da manhã tradicional. As vezes era ervilha, às vezes ovo, às vezes uma lata de sopa de galinha com macarrão.

Lá pelos seis anos de idade, comecei a prestar atenção à forma como ela operava o fogão naquelas manhãs, pois percebi que eu precisaria me virar sozinha da próxima vez que ela desaparecesse.
Imagino quantas crianças de seis anos precisam aprender a mexer num fogão por medo de ser devoradas vivas pelo gato faminto que habita seu estômago.

É questão de sorte, eu acho. A maioria das crianças tem um pai e uma mãe que farão falta depois de morrer. O resto de nós têm um pai e uma mãe que serão melhores depois de mortos.

A melhor coisa que minha mãe fez por mim foi morrer.

•primeiro capítulo •votem e comentem 🫶🏻•até mais 👋❤️

Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.

•primeiro capítulo
•votem e comentem 🫶🏻
•até mais 👋❤️

𝑨𝒕𝒆́ 𝒐 𝒗𝒆𝒓𝒂̃𝒐 𝒕𝒆𝒓𝒎𝒊𝒏𝒂𝒓-𝒎𝒊𝒐𝒕𝒆𝒍𝒂Onde histórias criam vida. Descubra agora