Filha das Chamas

Minha Aula de História

Não achou que eu iria ficar num quarto maravilhoso e sendo servida pra sempre né?
Eu já estava lá há um pouco mais de uma semana
E nada de lembrar sobre minha vida passada
Mas agora isso não me incomodava tanto
Eu estava bem, segura, com Luna e nós tínhamos uma nova família, Nat era extremamente gentil
Mas tinha uma regra
Eu nunca tinha saído de casa
Não que eu reclamasse aquele palácio tanto parecia uma fortaleza quanto um país das maravilhas
Tinha muita coisa pra se distrair ou aprender então eu nem me tocava do mundo inteiro lá fora
Nat dizia que eu não deveria sair tão nova porque além de eu não ser daquele mundo eu ainda não sabia o suficiente sobre ele
Obviamente eu concordei e voltei a explorar aquela casa enorme sem me incomodar com essa restrição
De manhã escutei alguém batendo na minha porta
O quê eu achei estranho de me acordar até porque Nat sempre abria logo a porta e me chamava ela mesma com aquela voz de sereia dela que não tinha como não gostar
Eu abri os olhos só pra levar o segundo susto do dia
Um lobo
Sim
Uma loba na verdade
Os pelos negros e os olhos azuis me encaravam atentamente enquanto eu dava um grito e rolava pra fora da cama
Ela levantou as orelhas e depois simplesmente disse
-Você vai deixar Nat esperando?
"Quê?!"
Eu levantei a cabeça olhando melhor o animal
Luna
O pingente de lua cintilava no pescoço dela enquanto ela olhava calmamente pra mim
Foi a única forma que eu a reconheci
-Você fala?!
Ela fez um barulho que eu suspeito que tenha sido uma risada
-Eu sempre pude você que nunca ouviu
Eu olhei pra ela depois balancei a cabeça talvez achando que eu ainda estava sonhando
-Não, você nunca falou
Eu disse meio confusa e ela disse
-Eu achava mais cômodo ficar como um gato
Não sei... eu esperava que só aí eu acordasse e visse minha gata de sempre dormindo quietinha do meu lado mas o que aconteceu foi que Luna saiu da cama andando até o armário e arranhando o vãozinho da porta até conseguir abrir
-Desde quando você é um...
Eu me calei quando uma onda de dor me atingiu junto com uma memória muito fragmentada de garras segurando meus ombros me levando pra algum lugar
"Garras..."
Eu segurei a cabeça tentando me concentrar naquilo
Deve ser assim que eu vim parar aqui
Algo ou alguém me trouxe
Alguém com garras
Eu olhei pra luna, não... Ela poderia ser um Gato/Lobo mas não era pássaro... Né?
-Nat disse que você me trouxe aqui... Como você fez isso?
"Deus como eu não pensei nisso antes?!"
Luna ficou calada por um tempo
Aí eu me dei conta
Ela me trouxe aqui certo?
Ela deve lembrar de tudo
E ela pode falar!
-Luna você sabe o quê aconteceu?!
Ela se calou por um tempo talvez porque sabia
Mas não disse nada
-Luna você sabe não sabe?
Disse me levantando e indo até luna
Com meu tamanho eu basicamente pulei nela pedindo pra ela dizer o que aconteceu
Mas ela olhou pra mim com aqueles olhos brilhantes dizendo
-Eu também não lembro mais que você pequena, só te trouxe pra cá voando e é disso que eu sei fora ser machucada e desmaiar perto da casa da Lily
Eu murchei como se fosse uma flor e ela me segurou pelos dentes como se eu fosse um filhote e me colocou no chão
Mas depois minha curiosidade acendeu de novo
-Voando?
Ela parecia aliviada que minha curiosidade foi pra outro lugar
Ouvi alguém bater na porta de novo e Luna me empurrou com o focinho na direção do armário
-Vamos vamos você vai se atrasar pro café da manhã!
Como uma boa criança eu me distrai com as roupas daquele armário de novo
Eu tenho que perguntar onde Nat o comprou porque sempre tinha alguma novidade
Eu coloquei um vestidinho e fui atender a porta
Pra minha surpresa não era Nat e sim um homem vestido como mordomo, com orelhas meio pontudas e pele levemente azul
-Quem é você?
Perguntei me encolhendo pra dentro do quarto intimidada com o olhar gelado daquele desconhecido
-A senhorita Natasha me enviou. Hoje você vai pro café da manhã e depois eu irei guiá-la até a senhorita
Ele disse com uma voz séria e meio monótona curvando um pouco a cabeça
Eu lentamente o segui ate a cozinha e se você está se perguntando se era uma cozinha normal
Mais ou menos
Algumas coisas boiavam, outras se lavavam sozinhas, a mesa estava sempre cheia embora eu duvide que só aquele mordomo fizesse tudo isso
-Qual seu nome?
Perguntei tentando quebrar o silêncio constrangedor que ficou enquanto ele olhava desconfiado
-Felício
Ele respondeu em um tom que não deixava aberto outras perguntas e quando eu terminei de comer ele nem me deixou colocar os pratos na pia direito já me guiando pra fora
Ele parecia tenso como se esperasse que eu pulasse nele ou algo assim. Talvez ele não seja acostumado com novas pessoas transitando pela casa
E tem sempre aquele boato que adultos as vezes não gostam de crianças
Fiquei com medo dele me colocar em um saco e me enterrar viva mas o segui até duas portas duplas um pouco maiores do que as do meu quarto
-Entre, ela lhe espera
Ele disse sem emoção empurrando uma das portas
Meio insegura eu entrei ouvindo o baque da porta atrás de mim
"O quê está acontecendo hoje?"
Nat estava séria pela primeira vez sentada em uma mesa
Ela parecia uma diretora prestes a dar uma advertência
-Hm... O quê houve? Fiz algo errado?
Talvez só aí Nat percebeu que o silêncio dela deixava o clima mais pesado que a pressão que fica debaixo d'água
Ela forçou um sorriso tranquilo
-Não, você não fez nada
Ela disse se levantando e me abraçando
-Que grosseria minha nem dei bom dia
Eu concordei com ela devolvendo o abraço embora ainda sentisse que ela estava meio tensa
-Lilith, eu sei que você é nova... Mas Ravi disse que era melhor você já ir aprendendo as coisas por aqui... E dessa vez eu tive que concordar
Fiquei olhando pra ela inclinei a cabeça
Mas depois olhei um grande quadro pendurado na parede atrás dela, Simplesmente minha mente jovem não raciocinou muito e apenas perguntou
-Quem é a moça bonita?
Ela nem precisava virar pro quadro, apenas suspirou e disse
-Aysha, o nome dela é Aysha... Era... É, minha filha.
Eu sorri e disse inocentemente
-Então ela é tipo minha irmã?? Porque nunca nos apresentou?
Nat sorriu mas abaixou os olhos
-Um dia você vai conhecê-la... Um dia
Ela disse provavelmente se segurando pra não chorar
Tive a impressão que demoraria pra conhece-la
Mas Nat segurou minha mão e me levou pra mais fundo naquela sala
Uma biblioteca
Imensa por sinal
Meus olhos brilharam com tanta coisa inexplorada e Nat teve que me puxar pra que eu não ficasse horas só rodando na biblioteca
-Tenho uma história pra contar Lilith
Ela murmurou e me deixou em uma pilha de almofadas
Eu me sentei prontamente pra ouvir
Ela sorriu com meu entusiasmo e suspirou
-Você sabe que este não é um mundo normal certo? Magia, poder, guerras... Não quero que saia desta casa achando que só porque viu uma fada você poderia confiar nela
"Tem fadas por aqui?"
-Hum... Elas não são confiáveis?
Nat suspirou
-Algumas são... Você já ouviu falar em guerras?
Eu era pequena mas sim. Já sei o quê são guerras, e o que eu sabia era que eram ruins
-Esse mundo aqui... Não é brilhante e bonito do nada, muita coisa aconteceu incluindo guerras
Eu olhei pra janela da biblioteca, dava pra ver os palácios dos elementos daqui
-Ficou assim por causa de uma guerra?
Nat seguiu meu olhar
-Há tempos de trevas e luz pra tudo Lilith... Até prós Deuses... Principalmente pra eles acredito eu
Eu virei a cabeça pra ela com tudo
"Deuses?? Ah isso tá ficando interessante..."
-Vamos lá pra cima quero que veja uma coisa
Ela me levou pro telhado onde tinham, assim como não minha varanda, vários instrumentos de estudo dos céus
O maior deles era o telescópio acho
Ela me levantou pra que eu ficasse na altura e virou o instrumento pra algum lugar embaixo, lá atrás dos próprios templos
-Aqui, olhe com atenção
Eu coloquei o olho na lente e vi uma barreira lá atrás
Uma completa escuridão
Nem o brilho dos templos permitia que alguma coisa atravessasse
Eu fiquei encarando por um tempo até a voz da Nat me tirar do transe
-Em todos os anos que estiver aqui, nunca se aproxime das terras sombrias... Ninguém entra nem saí dali vivo. Entendeu?
Balancei a cabeça mas não resisti a perguntar
-O que tem lá?
Ela me olhou como se estivesse se perguntando se teria que colocar uma coleira pra ter certeza que minha curiosidade não me meteria em problemas
-Ninguém sabe, sei que alí é território de batalha mas todos que entram nunca saem... E quem tenta... Bom eu diria que aquele lugar só tem ruínas e tragédia
-Batalha de quem?
Ela pigarreou
-Do mesmo jeito que há bem há mal... E há muito tempo tínhamos uma forma física dos dois
-Deuses?
Eu disse me sentando pra ouvir a história, ela riu
-Sim, duas irmãs. Ambas amadas pelos céus e a terra... Mas só porque são irmãs Não significa que não tinham desavenças... A irmã mais velha não confiava mais na humanidade, de uma hora pra outra começou a se afastar e parar de abençoar os humanos, poucos ainda existem com a benção da lua... Na verdade eu chamaria mais de maldição da lua...
"Do nada? Hmm..."
Se eu acreditei? Ah claro naquela hora acreditei deixando ela continuar e tomar um tom macabro no meio só pra ficar emocionante pra mim

"Eras atrás existiam duas irmãs. Ninguém sabe de onde vieram ou como chegaram aqui. Só se sabe que ambas se completavam como dia e noite.
Aylin era a mais velha, deusa da noite... Das trevas e do silêncio, ela não era a mais amada mas sim a mais sábia
E Aeliana era a mais nova, cheia de vida e energia, brilhante como o sol... Ela agia pelo coração, se tornando muito amiga dos humanos
Mesmo sendo opostos nunca se separavam e a Aurora e o Pôr do sol eram as horas mais lindas... Porque estavam juntas
Mas um dia a deusa das sombras se virou contra nós, ela não confiava mais nos humanos, parou de abençoar alguns deles e tentou convencer nossa Aeliana a nos abandonar
Mas Aeliana não deixou, não quis seguir a irmã mais velha, isso enfureceu Aylin que desapareceu por um tempo"

-E as duas nunca mais se encontraram?
Perguntei me sentindo meio mal pelas irmãs... Eu não tenho irmãs... Mas deve ser ruim se separar da única família que se tem. Eu apertei Luna no meu colo que acariciava meu braço com o focinho
Uma sensação familiar de perder tudo que conhece se manifestou no meu coração e eu olhei pra luna, a única coisa que me ligava a quem eu era
-Me deixe continuar
Nat pediu e eu me calei voltando a atenção pra ela

"Depois de alguns séculos Aeliana já era a protetora desse mundo... Todos a amavam e embora ela se sentisse incompleta, fez aliados de confiança pra ajudá-la como os outros deuses... Ar, Terra, Fogo, Água e Gelo, ela compartilhou o próprio poder com eles pro caso de Aylin voltar... Bom ela estava certa, um dia Aylin voltou, mais poderosa do que nunca agora que a compaixão tinha deixado seu coração completamente
As duas se enfrentaram, dizem que a batalha durou meses, meses de sofrimento não só desse mundo mas de qualquer um que fossem ligadas... Mas no fim Aeliana venceu...
Porém sua bondade e ainda carinho pela irmã não a permitiu destruí-la. Sua alma vagou pela noite sem ser domada, mesmo enfraquecida ainda era forte o suficiente pra enganar mentes... Mentes poderosas... Sem ninguém perceber ela tinha um exército bem debaixo do nosso nariz. Os outros deuses quando perceberam e avisaram a Aeliana já era tarde..."

Nat parou e olhou pra massa escura contida lá atrás
-Aylin e seu exército já haviam tomado uma parte desse mundo pra eles...
Eu segui o olhar dela e depois voltei a ouvir a história agora era luna em sua forma de lobo que se enroscava ao meu redor como se sentisse ameaçada pela história e tentasse me proteger
Fiz carinho nela... É só uma história...
"Uma história que aconteceu de verdade"

"Bem, a luta dessa vez não envolveu só as duas, envolveu todos que podiam lutar
As cidades ficaram devastadas, muitas vidas foram perdidas e alguém sequer tinha visto Aylin
Só depois foi descoberto o que aconteceu
Aylin tinha entregado seu poder a um seguidor, um seguidor humano. Ele a transformou numa arma seguindo as ordens da suposta mestra dele. Essa arma era simplesmente indestrutível e poderosa o suficiente pra derrubar montanhas... E caçar deuses
Aeliana provavelmente não quis sacrificar um humano mas não teve escolha. Ela entrou no território da irmã levando o máximo de soldados sombrios com ela
E nunca mais apareceu"

Eu ainda estava de boca aberta encarando a Nat
-E o quê aconteceu depois? Quem ganhou?
Nat deu de ombros
-Ninguém sabe, há teorias mas como ninguém sequer consegue entrar no território da Aylin então não há como saber
Eu olhei pra massa escura, curiosidade borbulhando o suficiente pra eu abrir a boca e perguntar
-Não tem mesmo como entrar?
Nat estreitou os olhos pra mim tentando me alertar a não fazer besteira mas suspirou
-Não, pessoas, magos e guerreiros já morreram tentando atravessar e nada... Tem gente que acha que Aeliana ganhou já que caso sua irmã estivesse aqui ela teria voltado e destruído o resto... Outros acham que as duas morreram e outros acham que Aeliana se corrompeu... Eu não acredito em nenhuma delas
Eu olhei pra ela inclinando a cabeça
-E no que você acredita?
Nat suspirou se levantando e brincando com meu cabelo
-Quando você for mais velha eu te conto
Eu dei um pulo na hora correndo atrás dela
-Ah não me contaaaaa você não tá fazendo isso comigo!
Ela só riu me deixando segui-la entre as estantes
"Tem mais coisa interessante aqui do que eu pensava..."