Horário de Pico

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As pálpebras pesadas de Renata mal se abriram e já estavam lidando com infortúnios. Uma mão trêmula e esbranquiçada agitava um panfleto em seu rosto, quase lhe tocando a pontinha do nariz. Por instinto, viu-se recuando até meter a cabeça na estrutura do coletivo; colocou-se a observar toda a extensão do corpo, desde os dedos finos e compridos com o folhetim preso a eles, ao pulso, antebraço, braço e então, terminando em uma cabeçorra protegida por um cabelo grisalho e ralo. Olhos azuis e penetrantes estavam mirados para ela, com fúria e com paixão inconcebíveis. Seus olhos se ajustaram às letras maiúsculas que se destacavam no topo daquele papel.

VOCÊ! ALVO DE AMOR DE DEUS!

— Ele está voltando, moça! — O homem de cabelo ralo vociferou, ainda com o braço esticado em direção ao rosto delicado e dócil de Renata.

— E que culpa eu tenho disso, senhor? Eu estou cansada e só quero ter um pouquinho de sossego até chegar no meu ponto. Tire esse panfleto da minha cara, por favor. O senhor está sendo muito inconveniente.

O homem se levantou, alvoroçado, movendo seus braços de maneira teatral; vestia um terno marrom que o fazia parecer um tolete de bosta ambulante. Desacreditada e estressada, a jovem se colocou a observa-lo sem sair do seu lugar, a última fileira de um ônibus articulado, velho e repleto de passageiros. Ao seu lado, um homem com cabeça de peixe meneava a cabeça, estalando a língua, igualmente inconformado.

— Droga! — ele rosnou. — E agora mais essa: um fanático!

— Você é alvo de Deus, mocinha! — o homem prosseguiu, inflamado, lutando para manter o equilíbrio entre os solavancos e sacolejos do coletivo, digladiando com outros passageiros que se encontravam de pé. — Você deve estar se perguntando onde é que está Deus, enquanto assiste aos jornais e se espanta com a violência e a calamidade; com a depravação e a corrupção humana!

— Ora, mas Deus está onde sempre esteve! — Berrou um jovenzinho de aspecto invocado, com olhos nas orelhas e orelhas nos olhos. — No fundo de cada pinga que a gente toma e em cada pílula que a gente engole!

O homem entrou em completa combustão, com os olhos vidrados em tudo e em todos naquele ônibus. Renata cobriu o rosto com uma das mãos, balançou a cabeça e deu uma boa lufada. O pregador abriu os braços em forma de cruz e por muito pouco não meteu a cara no banco mais próximo. Ao seu lado, um homem robusto e muito alto o encarava com ranço. Seus olhos evidenciavam as suas intenções e tais intenções eram partilhadas entre a maioria dos presentes. Ainda mais motivado, uma motivação que tenha tirado dos fundilhos, prosseguiu com seu manifesto divino.

— Como Deus, um ser dotado de tanta bondade, compreensão e luz eterna, poderia estar inserido em capsulas e garrafas etílicas, meu povo? Digo que não! Não, não e não! Deus não está nessas coisas.

— Olha, eu não sei onde Ele está — O homem robusto se meteu, cravando seus olhos ferozes no pregador, que não arredou o pé. —, mas se continuar berrando na minha orelha desse jeito, sabe onde meu pé vai estar? Sabe? — O pregador balançou a cabeça negativamente. — Vai estar dentro de um buraco onde ele nem deveria caber!

— Eu pedi pela presença de Deus quando eu estava em uma Missão de Paz e Ele veio em forma de um morteiro, separando meu tronco dos meus dois braços e uma das pernas! — Complementou um bassê que estava escorado em uma das barras do ônibus, atrás do falastrão, com os pelos gastos e usando próteses.

Ao lado do homem com cabeça de peixe, havia um bebê albino ninando uma mulher chorona e desdentada. O bebê levou uma mamadeira em sua direção com leveza e quando viu o vidro cheio de leite voando diretamente para a sua boca, a mulher chorona engoliu suas queixas e começou a rir e balançar seus braços e pernas. Alguém pressionou o botão de solicitação de parada e metros depois, o ônibus freou bruscamente, abriu suas portas e um casal despontou no meio da multidão; dois jovens cheios de hormônios e devorando salgadinhos. Renata examinou os rótulos com total atenção. Aqueles eram novos no mercado e ela ainda não os tinha experimentado. Novos sabores: coração frágil e cérebro niilista. Ela bem que percebeu umas lasquinhas de lobo frontal escapando pelo canto da boca do menino.

Os jovens seguiram seu rumo, o motorista engatou a primeira, e a máquina voltou a riscar o asfalto. Ela poderia ter jurado que o homem havia se acovardado diante da clara ameaça do homenzarrão e da crítica áspera do bassê inutilizado, mas três segundos depois, a voz grasnada do pregador voltou a ecoar por todo o articulado, causando murmúrios, xingamentos e gestos obscenos.

— Ele existe, meus irmãos! Mas se Ele existe, como Ele, sendo bom o tempo todo, permite que coisas terríveis possam acontecer, como as desgraças que caíram sobre nosso amigo, aqui presente? Como Ele permite que coisas assim venham a abalar nossas estruturas? Há uma explicação lógica para isso?

O ponto de Renata estava se aproximando. Ela se levantou, esgueirou para o corredor movimentado e enfiou o indicador no botão em uma das barras amareladas; um painel se acendeu nas laterais do ônibus e o motorista reduziu a velocidade para o desembarque. Renata cruzou o oceano de pessoas, pedindo licença e agradecendo logo em seguida. Ainda conseguia ouvir os berros ensandecidos do pregador ao fundo, fazendo suas orelhas latejarem. Ela parou de frente com as escadas, se sustentando nas barras para não cair. O motorista virava o volante em direção ao ponto. O pregador parecia querer se aproximar dela, abrindo passagem de maneira troglodita.

Quando o religioso se aproximou o suficiente, esticando o dedo em direção a Renata, uma ovelha e um lobo se colocaram a frente, barrando a sua investida.

— Ei! — O homem do cabelo ralo protestou. — Vocês estão impedindo que eu faça a obra que me foi ordenada!

— Fica na sua, cara. — A ovelha exclamou, empurrando-o com o ombro. — Vá procurar outro rebanho pra pastorear!

O coletivo parou e as portas voltaram a se abrir. De súbito, Renata decidiu dar uma olhada de soslaio para os passageiros, principalmente para o pregador louco, para o lobo e para a ovelha. Ela deu um passo para fora, mas ainda agarrada aos apoios; ainda olhando para trás, com olhos atentos. Todos os passageiros enfiaram as mãos nos bolsos; bolsos das calças, das mochilas e dos compartimentos das malas; sacaram armas de fogo, sacaram facas, bastões, canivetes, estiletes e tasers. Apontaram uns para os outros. Alguns apontaram para si mesmos, para o coração e para o rosto. O pregador e o motorista fizeram o mesmo, se juntando aos outros.

— Você é alvo do amor de Deus! — berram em uníssono.

Todos permaneceram daquela maneira por um tempo incalculável. Depois, as portas se fecharam para Renata, o coletivo ganhou velocidade e desapareceu no horizonte. Sentados nos bancos desconfortáveis do ponto de ônibus, duas manchas ondulantes aguardavam com olhos inquietos e cansados. Renata acenou para a dupla e colocou-se a caminhar.

— Moça, a Terra já terminou de dar a volta pelo Sol? — A mancha menor perguntou, com os dedos entrelaçados sobre os joelhos. — Sabe me dizer?

— Bom, eu acho que deve estar bem perto, levando em consideração as condições no céu nesse momento.

— Idade é só isso mesmo, né, moça? — a maior questionou, com uma voz um pouco rabugenta. Um cigarro fumegava entre seus dedos. — A idade, os amores, o desabrochar, a decomposição e as pulsões. Dependem unicamente disso: da volta de um planeta em torno de um astro brilhante e cheio de calor!

Renata olhou para as manchas por um momento, ofereceu um sorriso contido e tornou a caminhar para longe do ponto de ônibus.

DANOS IRREVERSÍVEISOnde histórias criam vida. Descubra agora