Um novo sol raiou pela manhã, cobrindo todo o terreno e casa com sua luz forte e levemente quente. Os animais do campo pastavam de forma livre, comendo alguns fiapos de capim verde e algumas aves voavam em direção aos poleiros do curral, contemplando a vista do céu até que o galo cantasse. A casa que não havia cortina alguma ficou completamente iluminada por dentro, graças aos feixes reluzentes, para, logo assim, Layla e Luke serem acordados logo cedo aos berros de sua "Havinha", como costumavam chamar a garota.
— Mamãeee, papaaai! — Exclamava enquanto corria na direção da cama do casal, logo se juntando aos dois e os despertando com o alvoroço. — Hoje é sábado. Sabem o que significa?
— Cidade? — A mulher mais velha resmungou de olhos fechados, se recusando a levantar e encarar a manhã como uma adulta.
— ISSO AÍ! CIDADEEE. — A criança pulou na cama mais algumas vezes, destinada a tirar o sossego dos progenitores exaustos.
— Só mais cinco minutos, filha. Nos deixe despertar primeiro. — Sonolento o homem puxou a garotinha de forma que ela se deitasse no meio dos dois.
— Você não tem essa opção, velhote!
Logo mais tarde todos se levantaram para aproveitar um final de semana delicioso. Aos sábados a família costumava visitar uma pequena cidade que existia ali perto, vez ou outra para repor os estoques de comida em casa ou comprar cristais e grimórios. Depois do café da manhã todos estavam se preparando para sair, organizando suas vestes e conferindo seus pertences.
— Filha, pode pegar meu colar ali, por favor? — Disse a mãe, enquanto prendia os fios de cabelo de uma maneira mais leve, o suficiente para não sentir muito calor.
— Claro, mamãe. — A pequena cópia da mulher se prontificou a pegar o que foi pedido, indo em pequenos pulinhos na direção do criado mudo, pegando a joia.
Era simplesmente um colar lindo, cravejado com prata e com uma pedra azul no meio. Era tão lindo que as vezes aparentava estar vivo.
— Minha pequena, está chegando o seu aniversário. — A mais velha se abaixou até estar na altura da garotinha, olhando em seus olhos de maneira pura e sincera. — Eu quero dar esse colar para você, e peço que guarde ele com muito carinho e amor. Ele é tão poderoso quanto a mamãe, por isso, se algum dia você estiver entre o vale da morte, grite "protego", ele poderá te ajudar.
— Nossa, ele é lindo mamãe. — A inocência da garota ainda existia e isso era notável. Ela ainda não havia entendido suas palavras da maneira certa, mas logo entenderia e tudo faria sentido ao presenciar o feitiço com seus próprios olhos.
— É sim, igual a você. Ele criará um escudo de resistência tão forte que te protegerá de qualquer ataque. — Deu um beijo suave na testa da menina. — Agora vamos, seu pai deve estar nos esperando lá fora.
E lá foram eles de carroça para a famosa cidade de Salém. Havanna sempre ficava encantada como se fosse a primeira vez. Tudo em volta era muito animado com danças de diversas culturas mundanas, e a garota olhava tudo de maneira tão apaixonada que aquela parecia ser sua primeira vida na terra. Havia várias barracas que vendiam coisas diversas e até comida. Ali no pequeno centro existiam outros tipos de seres sobrenaturais, porém muito bem escondidos e disfarçados, pois os humanos os abominavam e os chamavam de demônios ou criaturas das trevas.
Os três andavam tranquilamente enquanto aproveitavam o passeio, vez ou outra experimentando algumas iguarias e petiscos tradicionais. Layla comprou alguns cristais para seus rituais enquanto Luke conversava com um vendedor sobre as mandrágoras que também comprara. De longe, Havanna admirava uma dançarina que praticava a dança do ventre logo a frente. Era uma mulher negra, sua pele tinha o tom do mais puro cacau banhado à óleo de jasmim, seus cabelos eram curtos e crespos, e seus olhos reluziam verdes como a única esmeralda no meio de tantas joias baratas que eram vendidas pela cidade. Ela tinha joias por todo seu corpo e trajava um vestido colorido, vestido este, que chamava a atenção de todos por ali, não só da pequena menina. Seus movimentos hipnotizavam a criança, que inconscientemente soltou a mão de sua mãe, se movendo vagarosamente na direção da mulher. Era uma multidão de pessoas juntas, observando o espetáculo e a garota sentia uma energia boa e festiva daquele povo, uma vibração de boas intenções e pessoas com traços diversificados, tanto físicos como em sua áurea.
Aos poucos a multidão também dançava uns com os outros em pares, e logo se tornou uma espécie de celebração, uma enorme festa coletiva. Os olhos da dançarina sorriam brilhantes de alegria enquanto observavam a figura da menina, mas logo tudo se calou, a música havia parado de maneira súbita. Logo ela disse:
— DIS HAAR! DIE TOU WAT ONS VERENIG. — A fonética desconhecida por muitos significava "É ela! a corda que nos une".
Todas aquelas sensações boas haviam sido explicadas quase que automaticamente nos pensamentos da garotinha. Aquele era o seu povo, Havanna pensou. As pessoas fizeram um círculo a sua volta, ainda satisfeitos e alegres com a presença, continuando a enorme celebração com a música vibrante e com passos animados. A dançarina sabia que a criança era especial, era possível sentir que era única e tinha uma energia diferente sendo emanada de um corpo tão jovem quanto o dela.
Logo Layla percebeu que aquele povo que jogava sua filha para cima eram também seres sobrenaturais. Arrepiada ela olhou aquela cena de um povo reprimido e violado pela ausência de esperança, onde eram pressionados e marginalizados, necessitando de atenção.
Seus devaneios foram expulsos de sua mente quando um senhor muito baixo como um elfo, e bem velho corria na direção das pessoas, os alertando:
— RÁPIDO, ELE ESTÁ VINDO, SE ESPALHEM! SE ESPALHEM!
A festa virou um momento de tensão ao notarem que "ele" estava vindo. Cada ser vivente procurou o seu rumo deixando a família só, sem sequer entender o que estava acontecendo. Havanna abraçou sua mãe com força, tentando se esconder.
Um homem alto e forte de chapéu preto e roupas de couro também escuras, apareceu carregando em sua cintura uma espada e uma corrente. Suas botas eram tão pesadas que ao pisar no chão, esmagava as pequenas pedras que estavam por ali. Tinha a barba grisalha e cabelo longo. Em seus olhos emanava medo e um senso de justiça. Esse homem aparentemente caçador, andou entre aquele povo encarando cada um deles, esperando por pelo menos um vacilo de alguém para derramar sangue. Atrás da figura imponente era possível ver membros da igreja católica e um padre logo a frente, que os guiava com um incenso de purificação. Depois da passagem intimidadora, Layla segurou firme nas mãos de Hav e andou o mais rápido que podia, tentando ir mais longe e sendo acompanhada por Luke que conferia a retaguarda. Atravessaram uma multidão de pessoas bem apertada, se sentindo apavorados pelo momento de euforia.
— Mamãe, quem era aquele? — A pequena garota questionou enquanto tentava olhar para trás, sendo impedida pelos movimentos rápidos de sua mãe.
— Agora não Havanna.
— Mas mamãe-
— AGORA NÃO! — No meio da bagunça a mulher foi empurrada pela multidão, sendo ajudada por Luke a se levantar. Não demorou muito para que eles conseguissem sair dali ilesos, indo para uma área mais aberta, porém logo notando uma ausência. Sua voz saiu num fraco engasgo. — C-cadê ela?
— Ela não estava com você? — A voz de Luke reverberou mais alta do que o normal.
A ficha havia caído. Eles perderam a filha no meio de toda aquela gente. Agoniada, Layla aos poucos estava perdendo a noção.
— Cadê minha filha? Eu... eu vou... HAVANNA! — Fez menção de voltar para a baderna, mas foi impedida pelo marido. — Saia da minha frente, Luke!
— Layla, você não pode ir em hipótese alguma. Tem muita gente e é perigoso, vamos agir com racionalida-
O homem sequer conseguiu terminar sua sentença quando teve seu corpo empurrado com força para longe. Estava claro que ela não iria escutá-lo quando a mulher correu para a multidão em passos largos, mas, era óbvio que não desistiria de convencê-la. O mago a agarrou por trás, impedindo seus movimentos enquanto a segurava com o maior controle que tinha.
— HAVANNA! EU TENHO QUE ACHÁ-LA, ME SOLTE! MINHA FILHA... — Se contorceu nos braços do marido, fazendo com que ambos os corpos se colidissem contra o chão. A mulher já derramava lágrimas de preocupação e medo.
— Meu amor, olha para mim. — Aconselhou, olhando nos olhos marejados da mulher. — Não se afobe, não se desespere, não queremos chamar a atenção para nós. Quanto mais irracionais ficarmos será pior, vamos bolar um plano e dar um jeito de achá-la.
E logo o desespero nos olhos da mulher se tornou algo diferente.
— Tive uma ideia! — Disse Layla, tirando uma espécie de barbante de seu vestido. Algo parecia ter feito sentido em sua cabeça.
— Vou enfeitiçar esta linha para que ela nos auxilie na procura. Você vai ficar com uma ponta e eu com outra, à medida que fomos distanciando-a se esticará.
Luke usa o seu próprio corpo para cobrir a esposa dos olhares das pessoas, enquanto ela colocava a pequena corda em sua palma da mão e projetava:
— Benedicat tibi in regno filiar meal.
Em questão de segundos a linha flutua e se envolve em uma fina camada de magia preta. Ansiosa, ela enrola a linha em seu pulso e entrega a outra ponta ao seu marido.
— Fique calma e não chame atenção. — Deu um beijo na mulher antes de partir para a direção oposta da sua, de maneira discreta.
Ambos caminharam com dificuldade entre toda aquela gente, mal dava para respirar, mas precisavam ser sérios agora. O feitiço permite que os dois se comuniquem telepaticamente, caso precisassem trocar informações sobre o paradeiro de sua filha.
— "Luke, tem muita gente aqui, mal consigo ver o que está na minha frente, meu deus, como isso foi acontecer justo agora?" — Se movia vagarosamente entre tantos corpos dançantes e alguns até bêbados.
— "Se lembre, meu amor, devemos estar preparados para tudo." — O homem passava por trás de algumas barracas de tecidos, se escondendo entre algumas toalhas de algodão e lãs de cordeiro penduradas em ganchos.
— "Se alguma coisa acontecer com ela, eu nunca vou conseguir me perdoar."
— "Layla, não deixe seus medos falarem mais alto que você. Se concentre."
Distante dos dois, mas nem tão longe assim, o caçador percebe a linha que cruza seu caminho. Como um ótimo profissional que era, ele logo identificou o truque sorrateiro.
— Sinto cheiro de magia. — Disse para seu fiel escudeiro, o padre, que logo pegou seu terço entre os dedos de maneira furiosa. Rapidamente cortou a linha esticada com a lâmina afiada de sua espada.
No mesmo momento Layla sente que algo deu errado. Ela já não estava mais sentindo a presença de seu amado na forma astral, e ao se virar ela vê a linha folgada no chão.
— Luke? — Ela chama por ele, mas não é respondida.
O desespero quer invadir seu coração por estar perdida. Com um ato de fé ou medo, Layla dá início a uma crise e tapa sua própria visão com uma mão. Como a forte telepata que é, sua magia da obscuridade permite que ela sinta a presença somente das pessoas ruins, de mal coração ou de intenções negativas. Ela sente com pesar toda a maldade daquele lugar, mas uma energia se destaca entre as demais, uma energia tão densa que era possível ver sua forma dentro do campo astral. Ela se impressiona como simples humanos que supostamente vieram do barro poderiam ser tão perversos. Esta presença fica cada vez mais forte e ela a vê se aproximar de suas costas. Neste momento, Layla tem quase certeza de sua morte. "Meu deus, eu devo ter chamado a atenção deles, devo estar como uma louca agora no meio de todos. A essa altura já devem ter descoberto sobre mim. Por que essa áurea está vindo na minha direção? Talvez tente me matar."
Todos os seus pensamentos se cessam ao sentir um toque de uma mão pesada em seu ombro. Ao se virar foi possível sentir todo o seu corpo gelar. Seus olhos se arregalaram descrentes. Era uma mistura de sentimentos ver o caçador segurando Havanna em seu colo.
— É a sua filha? — O homem fazia um pequeno carinho nas madeixas da criança. Ele definitivamente não era amigável.
— Mamãe, me desculpa, eu... eu- — A criança foi interrompida por sua mãe, que a puxou dos braços do homem. Layla nunca havia sentido um alívio tão forte em seu peito.
— Olá! Muito obrigada, ela só se perdeu. — Disse trêmula e sorriu amarelo, agradecendo de maneira breve. Não poderia transparecer mais nenhuma emoção, caso contrário estariam perdidos.
Ao redor toda aquela multidão havia se acalmado e aberto um espaço para que o caçador de renome pudesse passar. Toda a atenção que Luke alertou sobre, ela tinha conseguido. O marido na mesma hora aparece e as leva dali o mais rápido que pode. Quando entraram pela porta da pequena casa já à noite, Layla desmorona em choro e fala firme:
— Nunca mais você passará além do lago dos bravourros até segunda ordem! Como você solta minha mão no meio de toda aquela gente? Eu... eu nem sei o que é pior, você ter sumido ou ter aparecido nos braços de Vicent! — A mulher passou as mãos pelo próprio rosto, respirou fundo e continuou. — Esse homem já matou diversas pessoas das formais mais cruéis possíveis. Nem eu uso minha magia dessa forma!
— Mãe, eu-
— Você precisa entender que nós vivemos reprimidos nesse mundo por causa dos humanos. Para eles nós somos demônios. — Andando de um lado para o outro, continuou — Por isso precisa ser forte, ser esperta. Filha, você precisa aprender a ser ágil e flexível, e é por isso que irei aumentar seus treinos a partir de amanhã. Você vai se tornar forte de verdade, pois a partir de hoje vamos jogar duro com você, mocinha. Tudo isso porque te amamos, agora já para o quarto!
Depois de ouvir tudo calada, a pequena sobe com o choro entalado na garganta, sendo observada pelo casal.
— Vamos explorar o potencial dela. — Ordenou a mulher, deixando o silêncio se estabelecer por todo o cômodo.
Naquela noite mais tarde, a mãe vai de encontro ao quarto da filha que já estava dormindo e se senta ao lado da garota, acariciando o seu rosto. Doía em si mesma ter que ser tão dura com ela, mas sabia que no fundo isso iria compensar, que seria por um bom propósito.
— Eu te amo tanto, tanto. — Sussurrou vendo o descanso da pequena Havanna.
Pela manhã no outro dia, Layla levanta a filha aos gritos como uma espécie de tenente coronel, fazendo a pequena sentir um pouco do próprio veneno do dia anterior quando acordou seus pais.
— Vamos, vamos, princesinha! Vamos levantar, é um novo dia e eu prometi que pegaria duro com você. Estarei te esperando para o café. — A voz da mulher fica distante cada vez em que ela caminha na direção oposta do quarto.
A garota se levanta sonolenta como sempre, mas dessa vez com a cara fechada em uma carranca não muito feliz, principalmente ao entrar no banheiro se deparando com um balde de água não aquecida.
— MÃE, POR QUE DIABOS A ÁGUA ESTÁ FRIA?
— SUA VIDA FÁCIL ACABOU, MINHA FILHA. ANDE LOGO!
Depois de tomar um banho frio contra sua vontade, a criança desce as escadas em passos pesados.
— Mãe, se isso tudo é pelo que aconteceu ontem, me desculpa, foi um acidente.
— Não, filha. Acidente é o que acontece quando um raio cai na sua cabeça, aquilo foi imprudência da minha e da sua parte. Veja bem, como pôde subir no colo de um estranho? Aquele homem se chama Vicent, e é um caçador implacável de todo tipo de seres sobrenaturais. — Poderia jurar ter visto a garota revirar os olhos levemente. Talvez, só talvez tenha repetido essa história algumas cinco vezes. — Sempre que suspeita de mulheres inocentes serem bruxas, ele as joga na fogueira, apenas por serem jovens mulheres sozinhas ou afastadas da grande cidade. Além de jogarem os restos aos porcos. Essa guerra de humanos e seres místicos sempre existiu desde que o mundo é mundo.
Despejava todas essas palavras enquanto limpava a mesa de jantar e colocava alguns quitutes, como uma travessa de bolo, panquecas e baguetes frescas.
— Vicent foi abençoado e consagrado para ser quem ele é. A missão principal é exterminar tudo o que é diferente do sangue deles. Filha, ele é cruel e impiedoso, talvez um dia uma libertadora se forjará e irá nos livrar dessa opressão.
— Que tipo de libertadora? — Questionou curiosa enquanto mordiscava um pedaço fofo e macio de bolo de cenoura.
— O tipo que precisa terminar o café, porque o dia vai ser longo! Ande logo, e não fale de boca cheia, mocinha. — Fez um carinho nos fios bem cuidados de sua filha, sorrindo docemente, mas ainda sim repreendendo seus modos.
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Estrada Do Chaos - A Cruzada de Havanna
FantasyAs responsabilidades são encaradas como a necessidade de manter um equilíbrio na vida, prezando por uma rotina estável. Mas, como lidar quando sua obrigação está além do comum? Salvar a vida de pessoas com o uso de apetrechos ditos como paranormais...