Lembro-me claramente da sensação esmagadora que sentia na barriga. Acordei com os olhos nas estrelas e, lá encima, elas pareciam rir, observando aquele pobre jovem bêbado que acabara de acordar quase vomitando em si mesmo. Encontrei-me num banco ao redor da Lagoa, no centro da cidade. Tão linda outrora, agora encontrava-se cercada por montes de lama e barro, jogadas sem preocupação pelos tratores despojados entre a calçada e a água.
O gosto ácido e o ardor dominavam a minha garganta, de modo que não poderia falar uma única palavra se houvesse alguma necessidade. Após acordar, lembro-me de ter passado algo em torno de um quarto de hora delirando entre vômitos e vislumbres da cidade ao redor. Num desses vislumbres percebi que, na ampla visão permitida pela Lagoa, não se encontrava alma viva nas ruas, calçadas ou paradas de ônibus; nem mesmo podia-se encontrar uma única luz acesa em meio as centenas de janelas dos prédios que a cercavam.
Tornei a sujar a calçada.
Esforcei-me monstruosamente para tentar lembrar o por quê de estar ali jogado e fedendo a comida regurgitada e álcool, num banco do centro da cidade, mas de nada serviu.
Esperei recuperar-me um pouco da tontura e do enjoo até levar a mão aos bolsos. Lá estava um batom vermelho como sangue, o meu celular, e nada mais além de um pequeno pedaço de papel amarelo, sujo como se houvesse sido pisado, e este continha um escrito feito a mão, por uma letra bastante redonda e peculiar, que encontra-se a seguir:
"É triste tudo isso, afinal ainda quero saber o seu nome, você me prometeu... mas espero que aprenda a ser bonzinho da próxima vez, papai vai cuidar de você. Com o ódio mais amoroso possível, Ellen."
Ainda meio bêbado, levantei perguntando a mim mesmo quem demônios seria Ellen e que relação ela teria com o estado em que eu me encontrava. "Com o ódio mais amoroso possível" ela havia escrito com o batom, aquilo soava tão absurdo quanto o vazio encontrado no centro do que havia sido a movimentada João Pessoa. Julguei ser madrugada, mas nem às horas mais tardes os jovens deixavam de voltar pra casa após uma noite de bebedeira no Centro Histórico da cidade.
Aquelas ruas antigas eram muito do que havia pra se aproveitar na juventude, tal como agora, e não me surpreenderia se me dissessem que, horas atrás, eu estava por lá à procura de mulheres e diversão com meus amigos de faculdade. Após muito andar em círculos analisando todo o absurdo, dei-me conta do celular que havia esquecido no bolso, e decidi ligar para Márcio, meu fiel amigo de faculdade e companheiro das constantes noites de luxúria.
Mas aparentemente todos os números salvos haviam sido apagados do meu celular.
Espantado, decidi ligar para o único número que eu jamais esqueceria, o do meu pai, mas no mesmo momento em que levei o celular ao ouvido, ouvi algo que só poderia ser comparado à uma voz pela difícil possível distinção de deficientes e pausadas palavras. O grunhido sórdido fez-me sentir sujo, como se todos os meus pecados tivessem sido atirados em minha cara, e apesar do calafrio sentido dos meus braços a minha nuca, lutei para concentrar-me nas palavras, que diziam o seguinte:
"Náom, náom. Esta morto. Vodê. Vem. Morto."
Em seguida ouvi um som metálico vindo de dentro do celular, antes da tela escurecer e não voltar a ligar.
Costuma-se dizer que quando nervosos, sentimos borboletas no estômago. Mas borboletas não saberiam nadar nas ondas de enjoo que eu sentia constantemente. Ao Invés disso, peixes de fogo incendiaram o álcool que ainda habitava minha barriga. O ardor subiu ao peito, junto ao terror que imobilizou minhas pernas enquanto eu pensava naquelas palavras. Estaria meu pai morto? Meu único familiar? E para onde estaria aquela aterrorizante voz me chamando? "Vem" a voz havia dito... Mas para onde? E com que finalidade? Numa situação como essa, eu teria facilmente roubado um veículo e dirigido para casa, mas assim como as pessoas, os carros haviam sumido. Toda aquela situação estranha, todo aquele mistério foi se agregando, pensando em minha mente e aumentando o medo que me consumia aos poucos. Se ao menos houvesse vaga alma naquela maldita cidade... Isso era o que mais me intrigava.
Foi quando percebi que nenhuma luz refletia na Lagoa. Nem a luz dos postes, nem a luz da Lua. Nada. Nem mesmo um lampejo nas miúdas ondas e ondulações que eram levantadas pelo movimento do frio vento da madrugada.
Aproximei-me de olhos arregalados e terrivelmente surpreso com a natureza daquela anomalia física. Tinha algo de mágico naquela água negra, algo que me atraía, e por um momento me esqueci de todo o mistério que cercava aquela breve noite após o meu acordar. Meu pai não existia mais, nem o meu enjoo, nem o vazio mudo daquela cidade, e nem mesmo o meu terror. Só existia aquela água negra e suplicante, que eu sentia me chamar para dar uma olhada. Ao chegar perto o suficiente para observar a água perto dos meus pés, inclinei-me a fim de encarar o meu rosto refletido, mas assim como as luzes, ele não estava lá. Enchi-me de assombro.
O que vi não é tão simples de descrever, e sinto que mesmo que passasse eras tentando, nunca conseguiria fazer você, leitor, compreender com exatidão o quão monstruoso era aquele olhar; ele pareceu me arrancar as roupas como uma amante faria. Pareceu abrir meu peito como um médico na sala de cirurgia. E pareceu mastigar minhas vísceras como um verme na minha sepultura. O olhar pertencia a uma mulher branca como a Lua, e apesar do manto negro que a cobria de modo incerto, como um cobertor após uma noite de sono, era possível perceber que estava nua, com partes do corpo ossudo para fora. Ela não possuía cabelos, nem aparentava ter seios ou curvas femininas. O maxilar era forte e reto, e suas maçãs do rosto estavam há muito podres e secas, prevalecendo os ossos que praticamente rasgavam a pele pálida e engelhada; e só o que me permitiu identifica-la como mulher foram os lábios carnudos e vermelhos como o batom que encontrei em meu bolso, e os rastros de lágrimas negras que caíam dos seus olhos contornados pelo negro da maquiagem. Bom, ao menos eu esperava que aquilo fosse batom e maquiagem. A imagem no fundo do lago assemelhava-se muito a um cadáver, mas de alguma forma aquilo me atraía, contrariando todo o meu instinto de fugir correndo dali.
E após um tempo que eu confundiria facilmente com horas, vi-a sorrir para mim. Um sorriso azedo e exótico, como limão e mel, que me provocou uma nova ânsia de vômito, mas o que caíra na água não fora o que eu havia ingerido horas atrás.
Senti a frieza espalhar-se por todo o meu corpo, passando da minha fronte às costas. A mulher não estava mais à vista, assim como qualquer outra coisa a não ser uma luz muito longe, através da água escura. Entre eu e a luz, enormes blocos irregulares de pedra deitados de forma descomunal e nada simétrica, como uma escada torta e profana que desceria até o fundo do inferno, apesar de levar apenas ao fundo da lagoa, que se mostrava extrema e hediondamente mais longe do que eu sempre imaginei, vendo-a de fora. E apesar do meu instinto novamente me mandar para fora dali, não me parecia possível forma alternativa de agir que não fosse descer ao encontro da luz.
Nadei depressa, com medo de meu fôlego acabar antes que fosse possível chegar a luz, mas quanto mais fundo eu chegava, menos necessário parecia-me respirar. Após um tempo, aquilo que eu suspeitava ser uma escada, me atraía como imã, até que me deitei num bloco maior que os outros, como me deitaria num chão onde a gravidade me puxasse. E quando me coloquei de pé e continuei a descida, percebi que a escada que antes descia, agora subia; e quando olhei pra trás à procura da superfície da lagoa, encontrei-a embaixo, como um buraco no chão, e apesar de mais uma vez surpreso com a falta de sentido em tudo que me cercava, corri para frente, em busca da luz e de qualquer explicação que poderia ser obtida.
Muito ao fundo, ou melhor, acima, estava uma porta de pedra em formato de arco, e na altura do meu joelho, encontrei uma maçaneta muito trabalhada e detalhada, ao contrário da porta, que deixava escapar a luz pela fresta abaixo, agora fraca e sem vida. Sem pensar duas vezes, reuni toda a pouca coragem que ainda habitava em meu ser e girei a maçaneta.
Empurrei a porta suavemente e adentrei num recinto mal iluminado que jamais sairia da minha mente.

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O Mundo na Lagoa
TerrorUm jovem paraibano acorda no centro de sua cidade natal. Fétido e levemente bêbado, ele se depara com acontecimentos peculiares e aterrorizantes no meio da madrugada deserta da capital. Logo ele se vê em um universo paralelo ao seu, onde criaturas m...