Então eu acordei. Tinha grama por toda minha face, invadindo até mesmo minha boca. Mais à frente havia uma árvore baixa, onde uma garota dormia em sua sombra. Era Anastácia... estava limpa e úmida, como se tivesse se banhando e vestido as antigas roupas novamente. O céu estava azul e limpo, sem nem uma única nuvem, com o sol forte a brilhar. Eu me sentei com um leve esforço, e tentei recordar o que havia acontecido... juntando as peças... recompus toda a história pela qual eu havia passado nos últimos instantes até que tudo fizesse sentido. Havia eu saído finalmente daquele lugar profano?
Eu estava num morro de relva baixa, onde era impossível ver qualquer horizonte, pois em todo o redor via-se árvores longas, que rasgavam o céu. Ao examinar melhor o lugar, notei que o morro formava um círculo, como uma panela, e em seu centro havia A Lagoa.
Não uma lagoa qualquer, A Lagoa. A mesma pela qual eu havia entrado naquele novo universo. Como eu sei que era a lagoa do centro de João Pessoa? Simples... como você reagiria se mostrassem o seu rosto numa foto, ou se pusessem um espelho em sua frente, e perguntassem quem você via? Eu passei toda a minha breve vida passando por aquelas ruas... aquelas calçadas que circulavam a lagoa. Eu aprendi a amar o lugar onde nasci desde muito jovem, e aquilo havia se tornado uma parte de mim. Eu sabia que era A Lagoa.
Fui me aproximando lentamente, de boca aberta, impressionado. Eu estava há tanto desesperado para sair dali... eu praticamente podia sentir em meu ser que aquela era a porta de saída. O que era um andar em choque e lento se tornou num ágil e caminhar, que facilmente passou a ser um correr com todas as forças do meu ser. O pé não doía mais, eu nem se quer o sentia, havia me esquecido dele, assim como... sim, eu a esqueci na árvore. Meu egoísmo foi tanto que deixei Anastácia sozinha, mas não ache que foi propositalmente, pois não foi. Eu simplesmente havia me esquecido.
Então me atirei na lagoa. A água morna dominara todo o meu ser. Eu nadava com toda felicidade que eu conseguia encontrar dentro de mim... cada vez mais fundo... e mais fundo... até ficar sem ar.
Voltei à margem frustrado. Apesar de não ser tão fácil enxergar de baixo daquela água, eu havia mergulhado novamente várias vezes à procura de uma nova porta ou algo do tipo. Sentei-me com os pés na água, chorando, desesperado. Foi quando eu ouvi uma voz masculina... tenra e profunda, como se saísse de todo aquele espaço em si. Não de uma direção, ou de um lugar, mas de toda aquela clareira.
- Então tu queres sair?
Senti o arrepio percorrer o meu corpo como se fossem roupas que eu vestia. Arregalei os olhos assustado, e tornei a cabeça, à procura de alguém.
- Diga, humano.
-S-sim... - me agarrei debilmente aos capins ao meu redor... Em horas como essa você não pensa - Quem gostaria de saber?
- Alguém quem tu não entenderias nem mesmo a natureza da existência. Diga-me, por que eu deveria deixar-te ir. Tu morreste sem nem mesmo merecer um julgamento, por que acha que seria justo voltar-te a viver?
Aquela pergunta havia me derrubado. Por algum motivo, aquela voz grave e autoritária passava-me mais confiança do que a mulher dos lábios vermelhos. Eu realmente estava morto.
- Você é... Deus?
A voz pareceu se divertir.
- Diga-me, então, o que é Deus, criança?
- O criador do universo? Detentor de todos os poderes?
- Estás me perguntando?
- Não posso?
Seguiu-se um longo momento de silêncio. Eu me levantei e andei em círculos esperando que a voz respondesse.
- Como eu morri? - perguntei, com medo que a voz nunca mais voltasse.
- Não deves se lembrar muito bem, mas conhecias uma garota chamada Ellen. Ela é filha de um traficante de drogas em teu mundo. Beijaste outra mulher, e ela, para se vingar, mandou o pai matar a ti. O caso todo aconteceu em tua última noite voluptuosa no Centro Histórico da cidade. Quando percebeu que estava condenado, tu correste em direção ao centro da cidade. Bloquearam-te num beco qualquer, e três traficantes te esfaquearam até a morte. Antes mesmo do corpo esfriar, arrastaram-no até a lagoa, se divertindo, e o deixaram lá, jogado num banco.
Pus-me a chorar como uma criança. Que bela forma de morrer, hein? Que belo motivo pelo qual morrer...
- Ora, teu mundo já presenciou mortes bem piores do que esta, não seja imaturo. Afinal, já estás morto, de nada adianta.
- Eu quero voltar! - exclamei, entre o choro - eu preciso voltar... tenho sonhos, eu não sou uma pessoa tão má... prometo que...
- Não me julgues ingênuo - o lugar todo pareceu sucumbir à voz, que agora mostrava-se muito mais profunda e catastrófica - eu te conheço! Eu sei o teu nome e quem tu és!
Caí de joelhos. Não havia em mim um pingo de esperança que fosse... Já imaginava aquela vil mulher aparecendo para me buscar e me condenar à danação eterna.
A voz falou. Ela disse que naquele mundo era A Lagoa, e que em nosso mundo, podia ser encontrada em vários lugares. Explicou-me que aquele universo onde estávamos não era o fim, e que apesar de dizer-se que eu estava morto, minha alma ainda não havia sido realmente acabada... meu fim ainda não havia chegado completamente. Aquele universo era um lugar de transição. Propôs-me um acordo... ah, maldito seja aquele acordo miserável, que me fez aceita-lo sem nem mesmo pensar direito... eu estava tão desesperado... Ela me explicou que só a vida paga pela morte, e que se caso eu desse a ele uma vida em troco da minha, uma vida que ainda não houvesse sido condenada, eu poderia retornar, mas quando eu finalmente morresse, meu fim seria muito pior nas mãos da mulher dos lábios de rubi. Algo que fez muitos se arrependerem, pois eu não seria o primeiro a tê-lo feito. Para um humano, destruir uma alma, diferente de mata-la no nosso mundo, é algo muito mais profundo, absoluto e repulsivo. Algo que a condenação padrão não poderia filtrar.
Eu voltei ao nosso mundo. Vivi. Tive momentos felizes e tristes como qualquer ser humano normal... mas eu não trouxe Anastácia comigo, e por isso, hoje, o meu maior medo é a morte.

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O Mundo na Lagoa
HorrorUm jovem paraibano acorda no centro de sua cidade natal. Fétido e levemente bêbado, ele se depara com acontecimentos peculiares e aterrorizantes no meio da madrugada deserta da capital. Logo ele se vê em um universo paralelo ao seu, onde criaturas m...