Prólogo

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Desci no carro com o fuzil em minhas mãos, por mais que mantivesse a arma firmes em meu peito podia sentir a adrenalina e a tensão fazer com que minhas mãos tremessem involuntariamente.
O céu não estava como azul vibrante que me acompanhou enquanto passávamos pelas avenidas mais ao sul, estava se formando nuvens carregadas que acinzentaram o céu de forma brusca, o que me deixava ainda mais receosa sobre o desandar da operação.
O lugar a minha frente ficava ainda mais assustador com as ruas vazias e abandonadas pela população que se escondia feito ratos velhos dentro da dispensa. A coloração sem vida escurecida pelo final de tarde tenebroso me dava a sensação de estar entrando em uma armadilha, mas eu não iria ter medo, eu não vim aqui para ser refém, eu vim para matar traficante.
— Certo, a gente vai subir pelo Beco do careca e achar o número 94, dá laje pichada de azul, então vamo logo que eu não tô afim de tomar chuva. — terminou o comando pondo a balaclava acima do nariz, empunhando o fuzil no peito assim como eu.
Capitão Macedo se virou de frente para a entrada do morro, o homem imponente diante da grandiosidade que era a desigualdade de nossos mundos. Ele não temia que pudesse ser a cabeça mais valiosa de todo morro da Dandara, ainda que subir até lá em cima significasse que nunca mais voltaria, isso tampouco importava para o capitão. Nossa operação tinha um único objetivo e ele iria atrás mesmo que isso significasse o fim de sua vida.
Ele era um homem de princípios bastante evidentes em seu discurso, me fazia ser uma completa admiradora de sua ética de trabalho.
Segui seus passos calmos por entre os degraus irregulares e mal feitos do escadão que era porta de entrada para Dandara.
Hoje era segunda-feira, e o morro estava quase inteiramente silencioso, salvo algumas poucas pessoas que andavam sem nos olhar, seus passos eram lentos para não levantar suspeita, alguns portavam a documentação na mão —os que mais levantavam suspeita —, para terem segurança de que não iríamos abordar. Mesmo que esse não fosse o foco da operação, todos estavam estranhos, pareciam esconder algo para nós, tão calmo, tão silencioso, um mundo inverso em que a paz reinava absolutamente sem uma miserável frequência sonora.
Subimos em uma rua pequena e desértica, éramos de seis integrantes alinhados em uma fila indiana para cabermos naquelas ruas espremidas do morro, o capitão sempre em alerta, estava começando a dar indícios de que também estava estranhando aquela calmaria, ele olhava por toda a extensão das ruas desde as bocas de bueiro aberta e cheias de lixo, até o alto das lajes de tijolos avermelhados envelhecidas pelo tempo e pichadas com códigos que eu não conseguia decifrar.
Dava apenas para ouvir os passos de nossas botas no chão de cimento empoeirado.
— Capitão Macedo. — chama o sargento atrás de mim — A situação tá muito estranha, melhor fazermos uma vistoria e voltar.
— Sargento Brito, sua mãe já te esqueceu na creche? — questiona nosso superior enquanto caminhava calmamente sem olhar para trás.
— Não senhor.
— Já levou uma surra do seu pai por ter comido sua prima?
— Não senhor — nega convicto, embora eu sentisse no final de sua voz uma certa confusão.
Capitão Macedo para de supetão à frente, olha para trás se virando lentamente e indo em direção ao sargento Brito.
— Sargento Brito, alguma vez na sua vida já passou por uma situação estranha? — enfatiza a fala do sargento olhando-o com uma expressão de tédio, mas com o tom de voz passivo-agressivo.
Olho para o sargento esperando sua resposta, ele sabia que todos a sua volta esperavam por isso e que a situação estava começando a ficar desconfortável.
— Não senhor. — responde por fim.
— Então o que você está fazendo aqui, porra? — pergunta e o sargento continua calado — RESPONDE CARALHO!
Ouço mais ao fundo uma movimentação estranha, parecia ser o vento cortando passagem por entre as entradas dos prédios, mas algo se escondia por entre o assobio do temporal que chegava.
— Capitão, vim para cumprir com minhas obrigações. — responde inseguro de sua fala.
—Sinceramente, não tão mais treinando essa molecada pra trabalhar — desdenha voltando para seu posto à frente de todos nós. — Escuta aqui, todos vocês,  quem tá com medinho pode virar as costas e dar meia volta, eu não quero frango na minha equipe. Fim de papo, se ficar de pau molíce pro meu lado eu vô quebrar as pernas de cada um.
— Capitão — chama outro. Dessa vez sargento Brito com seus olhos amuados continuava em seu posto, calado, humilhado pelas palavras do Capitão que parecia estar em seu dia mais feliz. — Há uma movimentação estranha naquela direção— aponta com a mira do fuzil em um beco de paredes descascadas e com um poste de ângulo estranho poluindo partes do céu com fios emaranhados.
— Todos fiquem atentos, estamos chegando próximo a linha vermelha. — alerta com a arma engatilhada, seus passos se tornavam mais lentos, os joelhos dobrados e os ombros curvados para frente em sua posição de defesa nos alertavam dos perigos da região.
Embora confiasse todas as minhas cartas no Capitão Macedo, parte de mim sentiasse receosa com tudo aquilo, a movimentação quase inexistente do morro da Dandara era uma disparidade ao que eu rotineiramente havia me acostumado. Em partes sentia a mesma preocupação que o sargento Brito, pois não estávamos em território conhecido, tudo que vimos sobre o morro da Dandara foi dos arquivos de patrulha do Capitão enquanto estudávamos a operação.
Ele era a única pessoa viva que conhecia partes do morro, as ruas principais e boa parte das vielas apertadas, anos de estudos de um lugar intocável pela polícia local.
O lugar em que as baixas de oficiais era brincadeira de criança para eles, onde sentíamos nas veias o sentido de exclusão. Não éramos bem vindos e tão cedo essa visão mudaria.
Cada passo era instável diante do desconhecido, estava sentindo essa vibração a certo tempo, entretanto, a segurança que eu tinha era o Capitão Macedo, ele era indestrutível, um nome consolidado em nosso batalhão que me dava a confiança que eu precisava diante de mais uma missão.
Aquele barulho voltou a soar em meus ouvidos, a viela em que adentramos era ainda mais escura que o restante em que passamos, a confusão de fios de energia tornava uma espécie de teto provisório dentro daquela repartição, a luz que emanava a frente era mais nítida o que fazia com que o Capitão e ademais apressasem os passos para o fim daquele túnel.
Ao sair da viela, o fio de luz se transformou em um sereno tímido, mas que não durou muito e logo virou uma chuva carregada. Capitão seguiu pela entrada mais ao norte, onde conseguimos avistar as luzes das casas tomando forma no alto do morro, e o ponto onde deveríamos estar, a casa com a laje pichada de azul estava a vista, tão perto mas tão distante que sentia minhas mãos formigarem de ansiedade.
— Agora é o momento de nós separarmos para cercar a casa. — ele aponta para uma entrada a noroeste — sargento Brito e sargento Fonseca, vocês vão por aqui. — aponta para nordeste — sargento Meirelles e sargento Lira, vocês vão por aqui.
Assim que as ordem são postas, Capitão Macedo dá o sinal para entrarmos em ação e logo entra na viela defronte a visão da casa, iríamos bater de frente com o traficante em questão.
Thiago Damasceno era nosso alvo, havia um bom tempo que ele dava dor de cabeça pra gente, sempre se escondendo e deixando rastros como se gostasse de brincar com nós, mas hoje era o fim de toda essa brincadeira. Ele tinha a certeza que não poderíamos subir o morro por conta da fama do lugar, o que de certo modo dava abertura para ser um bom esconderijo para traficantes além dele.
Essa segurança iria acabar agora.
— Sargento Albernaz, quero que fique na retaguarda, tá ficando escuro e não tem um morador nas ruas. —ele estava pensando a mesma coisa que eu, e o que o sargento Brito também estava insinuando. —O negócio vai ficar feio.
Eu acreditava nele, sempre acreditei em tudo o que ele falava, mas quando a bala atravessou seu pescoço de uma ponta a outra, eu quis, naquele momento, que suas palavras finais fossem mentiras.
De repente o silêncio ensurdecedor e a calmaria tenebrosa se transformaram em um caos de gritos e ricochetes de balas por todos os lados.
Me escondi dentro de uma pequena repartição entre um prédio e outro, a entrada que dava acesso para a casa do traficante estava ensanguentada, Capitão Macedo não se mexia.
Ele não se mexia, que merda.
Minha respiração estava descontrolada enquanto engatilhava o fuzil colocando-o colado ao peito. Eu estava ansiosa de novo, eu tinha que me controlar se eu quisesse ter êxito na missão.
Tento olhar pela fresta da parede se eles estavam vindo, ouvia passos pesados vindo em minha direção mas não conseguia ver muita coisa. A chuva estava ficando cada vez mais forte e a balaclava que cobria meu nariz estava ficando úmida.
Agacho com o fuzil ainda em meu peito, respiro fundo e viro de uma vez ficando com um joelho no chão e outro servindo de apoio para meu equilíbrio.
Aperto o gatilho no segundo em que uma arma é apontada para minha cabeça. Ouço um tiro sendo disparado ao meu lado e logo o corpo do garoto de tatuagens estranhas cae em meus pés, mais ao fundo um homem com o boné pra trás grita algo que não entendi e tenta se esconder, porém atiro antes que conseguisse fazendo-o cair com diversas perfurações no peito.
Ouso sair de perto de meu pequeno esconderijo e me aproximo do corpo do capitão, seu olho estava arregalado. O projétil saiu da direita, um palmo acima da minha cabeça, se for considerar nossas alturas, aquele tiro poderia atravessar o meu crânio sem dificuldade, isso era questão de um ínfimo ângulo de diferença.
Olho por entre as diversas casas espremidas umas nas outras procurando de onde eles estavam aparecendo. Havia duas entradas, duas vielas escuras que eu deduzia ser onde nossa equipe deveria surgir para emboscar o alvo. Porém eles ainda não deram sinal.
—Na Dandara, polícia não entra — sentencia, com um tom de informalidade excruciante. Eu não conseguia identificar de onde aquela voz estava surgindo, parecia estar em todos os lugares mas em lugar nenhum ao mesmo tempo. —Vocês tudin vão queimar!
Ouço o ricochete de um projétil  bem próximo a entrada que eu estava, me afastei e logo ouço mais gritos vindos da frente, no alto das lajes em minha frente avistei diversos homens com blusas amarradas na cara, escondendo o rosto e portando armamento pesado como se fosse brinquedo.
Aponto minha arma pra eles assim como eles apontaram pra mim, houve um certo silêncio após todo o alvoroço, uma paciente espera.
No entanto, algo inesperado acontece, quatro homens sem camisas e com estacas de madeira nas mãos surgem fincando-as nos furos dos tijolos no alto da laje, uma ao lado da outra, a ação era confusa ao meu ver, porém quando eles seguraram as cabeças ensanguentadas dos meus colegas de equipe e começaram a fincá-las nas estacas com marretas pesadas como se fossem pedaços de carne em espetos de churrasco, eu entendi.
Não iríamos mais sair do morro e essa ideia estava me apavorando.
Engatilhei a arma e comecei a atirar, eles entraram de prontidão também, sentia as balas a fios do meu rosto. 
Estava entrando em estado de êxtase total, não sentia mais meus ouvidos por conta do zunido das balas e meu coração palpitava fortemente, o medo e a raiva parecia não ser mais algo que eu pudesse entender, tudo o que eu tinha em mente era ir embora dali.
A missão acabou no minuto seguinte em que o Capitão morreu, e só me deixou ter a certeza com a cabeça de meus colegas decapitados.
Consegui derrubar alguns dos caras na laje a minha frente, outros começaram a se esconder mais ao fundo, porém isso não iria acabar aqui, eu precisava fugir o mais rápido que eu pudesse.
Seguro no colete do capitão Macedo e tento arrastá-lo viela abaixo, ele era pesado, um total aproximado de 90 kg pela dificuldade que eu estava tendo, mas eu não conseguia ter a ideia de deixá-lo aqui.
Tento carregá-lo, parando defronte ao local de onde nos separamos, estava vazio ainda, o que não me dava mais a certeza se era proposital ou não.
Porém a exatidão de minha dúvida foi consolidada quando surgiram homens de todas as entradas possíveis naquela encruzilhada, da ruela sul, noroeste, norte e nordeste.
— Faltou você— o homem de regata vermelha sai da ruela atrás de mim, apontando uma submetralhadora em minha direção.
O rosto era familiar pra mim por um motivo que meu cérebro demorou a processar: era ele, era o Thiago Damasceno.
O filha da puta que me fez subir o morro.
— Mostra o rosto comédia. — exige.
Solto o corpo do capitão e empunho meu fuzil em sua direção, assim que faço isso, ouço o engatilhar de diversas armas ao meu redor.
Ele sorri com o meu ato.
— Vai memo querer fazer isso? — ri com um tom sarcástico.
— Antes de ir pro inferno pode ter certeza que eu te levo junto. —digo com toda a fúria dentro de mim.
— É uma policial? — ele sobe as sobrancelhas surpreso, mas logo ri disso — Rapaziada, hoje tem.
O pessoal ao redor riu, uma risada nojenta que eu entendia muito bem onde ele queria chegar.
Talvez ele pensasse que eu iria fraquejar pelo medo de estar rodeadas de homens, pois ele se aproximou a passos apressados impaciente com toda aquela demora.
— Aí, tira o pano do rosto pra gente saber se é dentro vai? — zomba como se não tivesse um fuzil apontado em sua cabeça.
—Ae Damão, faz ela ficar pelada logo, essa roupa é K.O. demais pra tirar— alguém ao fundo grita.
— Que tal fazermos um acordo boneca, a gente te usa por uma meia horinha e depois deixa você sair viva daqui.
Eu não abaixei minha arma quando ele fez essa proposta escrota, mesmo assim ele se aproximou convicto de que eu não iria atirar, colou sua testa no cano do fuzil ousando me desafiar.
— Responde, cachorra. — insulta aproximando a mão da balaclava revelando meu rosto. — Ai pai amado, em você eu meto até meu pau cair.
— Não é  só ele que vai cair — sussurro, com o sangue fervendo de raiva, aperto o gatilho, atirando uma única bala.
A última bala do meu pente.
O traficante caiu sobre os meus pés misturando seu sangue com a chuva forte que não perdoava aquela noite infernal.
— Vagabunda!
Tiro a bandulera do fuzil jogado para longe e saco a arma em minha cintura.
—Agora tu vai ver o que é bom pra tosse, cachorra. — grita dentre as vozes que me direcionavam os piores comentários,  aponto minha arma para eles que parecia ridícula perto dos fuzis de assalto e submetralhadoras.
Sinto um chute em minhas costa e tropeço pra frente, eles se juntam em uma roda com as armas apontada em minha cabeça. Atiro em dois a minha frente e tento chutar outro para que se afastasse de mim, porém o som alto de um tiro sendo disparado me faz cair no chão com a minha panturrilha latejando de dor.
Logo em seguida começa uma sequência torturante de chutes e socos, partes do colete conseguia me proteger de danos maiores em meu dorso, mas isso não iria durar muito.
Eles começam a ficar mais próximos e eu sentia suas mãos puxarem meu capacete e tentarem arrancar minha roupa, enquanto tudo o que eu podia fazer era me encolher, numa tentativa ridícula de me proteger.
Naquele momento, enquanto sentia chutes e mais chutes em minha cabeça que me deixava zonza e o gosto de sangue vindo em golfadas generosas, havia apenas uma coisa que martelava em minha cabeça, me dando a certeza de que eu não iria mais sair dali.
Eu fracassei.
Não havia mais nada que eu pudesse fazer para mudar aquela situação.
— Ei canivete, pega a faca que essa porra ta difícil de tirar. —o homem ajoelhado próximo a mim que tentava tirar meu colete a todo custo grita impaciente.
Ele me balançava com raiva tentando arrancar a todo custo o equipamento do meu corpo, o desespero e a raiva tomaram conta dos meus sentidos no minuto seguinte em que o envolvi em uma mata leão com as minhas mãos.
Alguns pararam de me chutar para empunhar suas armas, outros continuaram a chutar cada vez mais forte para tentar soltar o homem que esperneava desesperado em meus braços.
Eu não tinha planos, minha cabeça não conseguia mais analisar nem mais uma alternativa àquela altura do campeonato, estava prolongando ainda mais meu sofrimento, ou encurtando a minha morte, de qualquer maneira, eu iria levar o máximo de vagabundo que eu conseguisse comigo para o inferno.
Puxo a arma que estava pendurada em seu pescoço pela bandoleira e atiro no primeiro que se colocava a minha frente.
Tinha aproximadamente 15 a 20 caras com o rosto coberto por uma blusa mequetrefe, eu não sei quantos consegui derrubar quando comecei a sentir as balas perdurarem meu corpo, tentei usar o cara em meus braços para cobrir meu rosto numa tentativa falha de me proteger da chuva de bala, de viver, de conseguir ter a pequena esperança de sair do morro viva e com a irrisória possibilidade de levar, ao menos, o corpo do capitão Macedo.
Mas quando minha visão ficou turva e minhas forças foram embora, o som dos tiros ao fundo pareciam notas agudas de um piano muito bem afinado, o zunido dentro da minha cabeça confundia o som dos gritos e balas com uma bela música, acho que a trilha do meu curto filme de vida.
Sinto um peso sair de meu peito e uma luz amarelada de um poste velho tomar conta de toda a minha visão debilitada, uma figura estranha e embasada surge me colocando em seus braços fortes, me levando pra algum lugar que nunca saberei onde é.
Acho que essa foi a forma mais bonita que Deus me concedeu de morrer, em um silêncio confortável, nos braços de seus anjos que me levariam para onde eu fosse digna de ficar.
Eu não era santa, sabia da minha história e Ele também, seja para onde eu for, ao menos para ter o mínimo de paz concedido, eu pude.

Obrigada.

Aliado PerigosoOnde histórias criam vida. Descubra agora