Depois de chegar na base, descarregamos a carroça e minha família mais a da Melissa se juntaram e juntos ficamos conversando, meu pai não estava presente, já estava com saudades, das últimas duas vezes que viemos não o encontramos na cabana. Quando o foco da conversa se voltou para mim, fiz questão de pular fora, não queria falar nada sobre os pesadelos, tão pouco sobre como as coisas estavam ficando complicadas para conseguir alimento. A última coisa que queria era trazer mais preocupações para eles, estão sempre respondia que tudo está bem.
Com o intuito de fugir dos olhos cansados, porém perspicazes da dona Alana - vulgo minha mãe - , resolvi sair e ajudar outras pessoas que estavam no local. Fui até a ala dos feridos com o intuito de prestar auxílio, porém, tive meu coração afundado ao notar o quão precária era a situação, a falta de materiais e remédios é alarmante e o número de feridos é muito grande.
__ Tem muito tempo que as coisas estão nesse estado? - questiono a uma moça socorrista.
__ Sim... porém de um tempo para cá tem estado bem pior. Já perdemos algumas pessoas que tiveram infecção na ferida por não termos as coisas necessárias. - responde, abatida e cansada.
Até quando vai ignorar os gritos de socorros?
Me sinto afundar gradativamente. O peso aumentar a ponto de eu me perguntar como ainda estou de pé.
Vai, você precisa ir.
Para onde eu preciso ir? Sinto como pequenas picadas de agulhas no olhos enquanto faço esforço para focar em algo.
O que é isso?
Olhando para todos os feridos no local, me pergunto mais uma vez: qual o sentido de tudo isso? Por que está acontecendo tudo isso? Fico zonza por um instante enquanto procurava foco para meus olhos.
__ Você está bem? - ouço a voz distante me perguntar. Balanço a cabeça e saio.
Gritos começaram a tomar conta dos meus ouvidos.
Socorro. Era o que pediam.
Socorro. É o que pedem.
Socorro. Por que essas vozes gritam nos meus ouvidos?
Sou a única a ouvi-los? Olho em volta a procura de alguma agitação, mas nada encontro. Está apenas na minha cabeça? Tampo os ouvidos e parece que as vozes ficam mais altas. Até que meus olhos se focam em uma carroça ao longe e as vozes cessam, tudo ao redor some e fica apenas a carroça e o galopar do cavalo que parece ecoar dentro de mim. Uma horrível sensação se apoderou de mim, como se eu soubesse o que estava por vir, como se soubesse quem estava lá.
Potocó.
Tum.
Pocotó.
Tum.
O som dos galopes e o retumbar do meu coração formam uma harmonia agonizante para meus ouvidos, me deixando ansiosa e inquieta. Sentia o mundo girar, porém, a carroça, continua nítida, avançando como se trouxesse um grande infortúnio.
Tum tum.
Tum Tum.
Sinto alguém me puxar logo sentindo o sopro causado pela carroça passar por mim, e tudo passa como câmera lenta ao ver um corpo desacordado juntamente com outros agonizando. Um rosto foi foco principal dos meus olhos que parece que foi e voltou do além. Arderam, parecia pegarem fogo.
O que é isso.
Alguém falava comigo, mas eu não entendia, não ouvia nada além de um som abafado. Volto para o local de atendimento para ter certeza do que vi. Vou cambaleando, tropeçando nos meus pés, vertigem toma meu estômago.
Por que eu sabia disso?
Por que eu pressentia isso?
Meus joelhos bateram no chão ao ver a negação do socorrista ao verificar o corpo, meus olhos ficaram sem foco novamente e os corpos espalhados vieram a minha mente outra vez.
Socorro. É o que eu ouvia. Por que pedem socorro a mim?
Passo a mão na bochecha e sinto algo quente e viscoso? Sangue? Eu estava chorando sangue? Como é possível sangue substituir as lágrimas? Me deu nojo.
Nojo... por que deveria existir um Distrito do Nojo? Por que deveria existir distritos divididos por emoções? Todos não são capazes de sentir todas as emoções? Então... por quê?
Vai, você precisa ir. Com urgência isso se repete em minha mente. Sinto algo estralar dentro de mim, me fazendo levantar do torpor e correr até o cavalo que guia nossa carroça. O desprendi e pulei em seu lombo sentindo algo arder dentro de mim. O cavalo cortava toda a extensão do campo com uma velocidade impressionante, antes de sumir, ainda pude ouvir alguém gritando pelo meu nome.
Num lampejo de consciência me questionei se estou realmente sã para está indo direto para o campo de batalha. O que vou fazer lá?
Apenas vá.
Depois de alguns minutos o que vejo me deixa paralisada, e o tilintar das arma ecoavam fundo nos meus ouvidos, algo rasgou dentro de mim, o sonho de hoje atingiu minha mente. Todos mortos. Todos caídos. Quantas pessoas morreram até agora? Isso tem que parar, isso precisa parar. Mas como? O que devo fazer?
Grite.
Gritar? Como minha voz vai atravessar os gritos de guerra?
Um sentimento indecifrável tomava cada vez mais espaço dentro de mim. Algo sufocante esmaga meu peito me causando agonia. Desço do cavalo e fico paralisada observando a cena que se desenrola a minha frente enquanto uma enorme aversão subia por minha garganta. Começo a me desesperar. O que devo fazer?
__ PAREM. - grito sentindo minha garganta arranhar, porém, nada acontece.
E mais uma vez gritei, e nada aconteceu. Meus joelhos se dobram no chão e lágrimas brotam dos meus olhos. Apoio minhas mãos no chão terroso curvando minha cabeça entre os braços.
Socorro.
__ Parem, parem, parem. - no lugar das lágrimas salgadas sangue começou a descer e junto com a primeira gota que caiu eu gritei.
Tudo se aquietou, os sons cessaram, meus soluços eram os únicos que rompiam a lacuna silenciosa que se formou. Voltei meu olhar para frente e, constatei, horrorizada, que tudo está paralizado, até o vento cessou e uma única folha solitária caiu lentamente na minha frente, ao mesmo tempo que todas as pessoas caíram no chão e começaram a se levantar confusas e olhando ao redor. E como se uma tempestades encerrasse de subto, todo peso dentro de mim se foi e, junto, minha consciência.
ANOS DEPOIS
O acontecimento que parou a guerra, foi contado por muitas gerações como lágrimas de sangue, lágrimas estas capazes de parar o tempo e a maldade dos corações.
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Lágrimas De Sangue
Short StoryO ano é de 1880, na Ilha das Emoções, uma guerra gradativamente envolveu todos os Distritos. Ariela é uma adolescente de dezesseis anos de idade, e por obra do destino, no encerrar do milênio, ela foi escolhida para ser portadora das Lágrimas de Sa...