ESTOU NA BUSCA, ESTOU NA BUSCA, esperançosa nesse último fio de saudade. O que busco são respostas, um consolo, piedade para meus próprios erros — isso não mudará o passado, quem sabe que não transforma o futuro?

Açucena.

A-çu-ce-na.

Quatro sílabas, é um hiato, sílaba tônica é “ce”, ou seja, paroxítona. Açucena é um nome feminino, considerado como uma variação de Susana, originado a partir do hebraico Shoushannah, de shoushan, e que quer dizer literalmente “lírio” ou “flor branca”. Açucena significa “pureza”, “flor de lis”.

Quem é essa? Por que essa aula de gramática para citar um nome? O que fez? Qual a importância? Estes são os principais questionamentos que vieram em mente, presumo. Esta é uma história de uma memória inconsolável, minha memória inconsolável. Toda história tem começo, meio e fim, então vou iniciar para se ter um contexto melhor da situação.

Iniciarei voltando à minha juventude, quando era uma adolescente incubada, medrosa, melancólica, provavelmente seguia a moda Emo e tinha uma libido acumulada absurda. Também vivia escrevendo em um caderno, devorava livros das irmãs Brönte em madrugadas e matava aula na biblioteca do colégio ou no banheiro. Honestamente, era do tipo que sabiam que existia, não tão importante para ser citada ou lembrada. Não posso dizer que era simpática, de jeito nenhum, sempre andei de cara amarrada e com um olhar de quem acabou de ver um espírito.

Então, ela surgiu, do nada.

Posso comentar que nunca notei ela, sem sabia que ela estudava no colégio — considerando que eu não prestava atenção nas pessoas, é compreensível. Mas ela me notou. De todas as pessoas, ela me viu. Ela quis falar comigo, quis me conhecer, quis se juntar a mim, quis dividir as mágoas, quis fazer planos. Foi toda uma experiência que tira o fôlego, deixando os olhos brilharem de ansiedade e alegria.

— Vamos para o Canadá — Simplesmente soltou quando estávamos sentadas na calçada durante o réveillon. — Isso aí, meter o foda-se e fugir para o Canadá!

Minha reação foi rir, achando tudo uma grande piada da parte dela. Porém, quanto mais ela falava, mais considerei que não era uma ideia tão ruim. Sim, eu fugiria com ela para o Canadá. Sem pensar duas vezes.

— Com que dinheiro a gente iria, Açucena?

— Simples, iríamos pegar carona, sair por aí roubando a carteira das pessoas lesadas. Bobeou, perdeu! Saíriamos correndo se descobrisse, dando risada e ficando com o dinheiro, até conseguir juntar o bastante para ir morar no Canadá.

— E como iríamos sobreviver por lá? Você fala inglês? Eu só sei o verbo to be e olhe, olhe!

— Confia no processo que iria dar bom!

Atualmente, já adulta, me pergunto se ela estava falando sério ou apenas foi uma grande piada. Essa era a maior incógnita que ela proporcionava: estava blefando ou não? De qualquer forma, apenas concordei com tudo, sem pensar no amanhã.

Olhando dessa forma, Açucena despertava um lado em mim que nem eu mesma sabia que possuía. Eu, Lílian, nunca seria imprudente para simplesmente roubar de alguém ou ir para um lugar sem ter a estabilidade já pré-estabelecida. Contudo, quando estava com Açucena... Eu era imprudente, impulsiva, inconsequente, sonhadora, imoral, selvagem, sem dona. Era como o vento, ninguém segura, ia para onde queria, usando a força que achava necessária. Ela mostrou o elemento oculto que havia em mim, me guiando para um lado ainda não explorado da vida, um lado que a Lílian de sempre diria não.

Perdi as contas de quantas vezes saí pela janela da minha casa para ficar sentada com ela tarde da noite debaixo da árvore de azeitonas. Aproveitava o sono pesado dos meus pais e ia. Inconsequente. Lá dividimos nossas mágoas, nossos medos, nossos sonhos, nossas ansiedades. Dizíamos qualquer besteira pois sabíamos que uma não julgaria a outra, sempre seríamos o ombro amigo uma da outra. “Os esquisitos devem se unir”, era o nosso lema de vida. Estávamos unidas, com os caminhos entrelaçados com o da outra, fazendo parte da vida e do futuro que tanto sonhamos. Por outra ótica, percebo que ela não me contava tudo.

Açucena tinha seus problemas com a mãe negligente, o que provável pode ter desenvolvido a personalidade rebelde e a vontade de sumir para o longe possível, mesmo que por meios imorais e ilegais. Era a mais velha de três irmãos caçulas, muita pressão para ser um exemplo e também tinha que ser babá dos irmãos quando a mãe saia sem dar explicação.

— Lílian, você tem algum lugar onde pode ter paz? — Me questionou uma vez, quando matamos aula no banheiro.

— O terraço da minha casa, normalmente de madrugada. Ninguém vai lá, na rua não tem uma alma viva, seja dia, seja noite.

— Pelo menos você tem um lugar — Murmurou, fechando os olhos. — Odeio quando volto para casa. Faço qualquer coisa só para não voltar para casa, topo qualquer rolê, qualquer trabalho, qualquer encontro, só não queria retornar para casa. Tudo é tão insalubre.

Não respondi, apenas sentei-me ao lado dela, esfregando a palma da mão nas costas, na intenção de trasmitir-lhe conforto. Odiava vê-la triste. Como queria ter o poder para mudar a vida dela, dar a vida que ela merece, o amor que ela merece. Açucena merece o mundo, o mundo deveria ser conquistado por ela, alienado, vilanizado. Eu a apoiaria. Seria seu braço direito para a conquista maléfica de dominar o mundo e ser a maior tirana ao lado dela. Só do dela, apenas do dela e por ela.

— Minha mãe pode ir morar em uma casa melhor, sabe? Mas ela não quer porque iria ficar longe dos machos dela. Prefere ficar naquele chiqueiro com cheiro de merda, sem se importar com o futuro dos meus irmãos ou do meu. Honestamente, se ela não queria ser mãe, por que decidiu nos ter?! — Sua voz ficava mais embargada, seus olhos castanhos marejados. — Eu... Eu não pedi para nascer, honestamente nem queria estar aqui!

Nesse instante, abracei-a, com força, com medo das palavras dela, com o coração batendo forte. Não, não ouvi aquilo. Não queria nascer nem está aqui? Mas, e eu? Nossa amizade? Nós? Não significamos nada, nem o que construímos? Fosse por egoísmo, fosse por instinto mesquinho, não me aguentei de ouvir aquilo e quase senti vontade de chorar, mas, sabendo que não era o momento apropriado, engoli o choro. O que eu faria sem Açucena? Como seria minha triste vida sem ela ter surgido? É egoísmo, sim, sei disso, mas como evitar de pensar? Continuei a apertando contra mim, como se isso fosse a impedir de ir embora.

Então a ouço fungar, deixando as lágrimas escaparem, molhando a camisa do uniforme do colégio — é hora para se importar com essa besteira? Ela disse coisas que não entendi direito, seja por conta da voz chorosa, seja pela minha própria adrenalina no momento. Duas garotas sentadas no banheiro de um colégio, abraçadas, matando aula, uma consolando a outra... que visão mais comum para o universo feminino. Naquele instante, só existia Açucena e Lílian no mundo, existia a vontade de fazer o possível e o impossível, apenas para não ouvi-lá dizer aquela atrocidade de novo.

Tão tola, eu! Nem notei que estava me apaixonando aos poucos pela minha única amiga de verdade.

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⏰ Última atualização: May 30 ⏰

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