CAPÍTULO ÚNICO

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CENA 1

Não acredito que isso está acontecendo comigo. Não posso acreditar.

– Ar, preciso de ar. Não consigo respirar!

– Corre mais, pai! Pelo amor de Deus!

– Tô correndo, filha. – Em meio ao desespero, vejo o quanto eles estão aterrorizados.

Não pode estar acontecendo comigo. Eu fiz tudo direitinho. Segui todas as orientações. Mal saía do apartamento. Sempre lavando as mãos. Lavando tudo que entrava em casa. Paranoica mesmo. Como isso pode estar acontecendo?

Não posso. Não consigo respirar. Não dá. Não posso mais. Estou morrendo e não entendo como isso aconteceu. Estou perdendo os sentidos. Flashes da minha vida passando rápido. O desespero sumindo aos poucos. Uma paz estranha me invadindo.

Então, de repente, me lembro de ter entrado no elevador do prédio. As portas quase se fechando. Um grupo de jovens segurando as portas...

Meu Deus! – Puxo o máximo de ar possível, mas não suporto.

– Filha... – uso o pouco ar que me resta para tentar falar, porque é muito importante que eles saibam. – Fi... – Arregalo ainda mais os olhos que lacrimejam.

O coração acelera e sinto o desespero final. Então, o arquejo final me roubando tudo. Então não sinto mais nada.


CENA 2

Acho que não tem problema. Não é? É apenas uma festa pequena. Coisa íntima para poucos convidados. Vinte pessoas, no máximo. Só os amigos mais chegados. O que custa? A gente tá precisando mesmo desopilar depois de tantos dias de confinamento.

Abro o app do supermercado e descubro que o prazo para entrega é de mais de vinte e quatro horas. Odiando saber que o culpado disso é o próprio supermercado ao permitir que qualquer pé rapado compre no mesmo local onde pessoas como eu, gente de primeiríssima, com estilo, poder e dinheiro, muito dinheiro, também faz suas compras.

Imagino que o lugar vai estar lotado e haverá uma fila imensa. Que terei que dividir espaço com uma quantidade absurda de pessoas que nunca vi na vida. Gente de todos os lugares. Gentalha.

– Deus me livre! – Sei lá onde esse povo tem andado e o que tem feito.

Então chamo pelo meu motorista. Pobre se entende com pobre. Explico a ele tudo que deve comprar. Eentrego o cartão Black mega exclusivo, com saldo de compra ilimitado. Enquanto isso, lido com o restante dos empregados, ao mesmo tempo em que envio mensagens para vários amigos.

Imagino que, se penso em receber um grupo de trinta pessoas, devo enviar convites para, pelo menos, oitenta dos meus amigos mais chegados. Afinal, alguém mais radical pode querer não vir para não se arriscar. Acabo rindo sozinha. Estou chamando apenas pessoas de confiança.

Amigos que eu sei que estão realmente em quarentena. Uma piada isso. Quarentena que já ultrapassou meses. Acabo me perguntando quantos mais teremos que ficar trancados em casa.

Termino de enviar as mensagens e sigo lutando com esse povo incompetente que se lamenta o tempo inteiro de estarem longe de suas famílias. Deveriam estar agradecidos por ter mantido todos eles em tempos como estes. Deveria ter demitido os mais chatos, os que ficam choramingando pelos cantos.

– Minha filhinha tem apenas dois anos de idade.

– Mamãe depende do meu salário, mas...

– Não sei como conseguirei ficar longe dos meus filhos.

Muito além da pandemiaOnde histórias criam vida. Descubra agora