Primeiro

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                         Parte 1: A notícia
Não sei exatamente como começar a contar os acontecimentos dessa conversa, então vou direto ao assunto, estou indo no enterro do meu avô. Bom, eu estava, a alguns anos atrás, sem entender exatamente o que estava acontecendo nem para onde estava indo direito, eu compreendia que ele havia morrido, mas não sabia o significado de tal acontecimento, foi o primeiro evento que eu presenciei com o sentido da morte.
Ninguém sabe como dar uma notícia ruim, mas minha tia superou o nível da pior forma de dar uma notícia ruim. Em meio a uma festa de família, onde todos estão felizes e conversando entre si, ela chega em minha mãe que estava na cozinha, como se fosse a coisa mais comum do mundo, e diz:
-"papai morreu"
Minha mãe, ao ouvir essa notícia, simplesmente não acreditou na forma que ela contou, e parou por alguns segundos em frente a porta olhando para ela, como se tivesse sido um delírio dela, um devaneio. Após quase um minuto, caiu a ficha na minha mãe, ela desabou em choro como se fosse uma criança.
E eu, uma criança completamente dissimulada e burra, não entendi o porquê daquele choro tão magoado, eu instintivamente abracei-a como se ela estivesse caindo em um buraco que estava se preenchendo com a água de seus olhos. Eu não queria chorar, não estava com medo, nem com pena, não estava sentindo nada.
Após alguns minutos meu pai chega, rindo e brincando, não havia visto o choro sentido da minha mãe, o choro dela parecia um pedido de socorro, como se estivesse perdida em um deserto cheio de areia movediça, não podendo se mexer e sem saber o que fazer, ela só parou e ficou, sem rumo e sem o do porquê tentar.
Meu pai, ao perceber o choro inconsolável, perguntou a minha tia o que havia acontecido, ao respondê-lo, meu pai, que não tinha contato com o meu avô ou apego, começou a chorar, não igual a minha mãe, claro, mas um choro de empatia. E foi aí que começou a minha intriga, as lágrimas de culpa e empatia do meu pai me deram uma incógnita, meu avô não era próximo dele, ele ao menos parecia gostar da companhia de meu avô, mas ele chorou, então me veio a pergunta.
O que define a importância de alguém? Talvez o que importa em você é o que você faz e não o que você é, ou ao contrário? Naquele momento ficou essas perguntas na minha cabeça, como se fosse um martelo tentando martelar um parafuso.

Parte 2: O enterro
É estranho como é o preparo pro funeral, é uma correria e um desespero de muitos e um pesar no ambiente, quase como se pudesse se cortar a tensão do ar, ainda assim existem alguns parentes que lidam com isso de forma tão amena, como se todos os dias morresse alguém, não sei dizer se é simplesmente falta de senso comum, ou se a pessoa é madura o suficiente pra lidar com aquilo de forma calma.
Chegando na funerária, como eu havia dito antes, um clima tenso e horrível, vc sente a tristeza de todos em um aglomerado só, como se estivesse dentro de uma piscina de péssimos pensamentos, mergulhando cada vez mais, como se a piscina fosse infinita, e quase todos aqui estão nessa piscina e ninguém sabe nadar.
Apesar da tristeza, existem outros sentimentos no ar (sempre fui sensível para essas coisas) como raiva, amargura, decepção, ganância. A ganância é muito aparente quando falamos de minha tia Dani, cujo a tia que deu a notícia daquela forma tão delicada, nunca gostei da tia Dani, sempre fria e grossa com tudo e todos, parece que todos são culpados por ela não ter marido e ser mal amada.
Minha mãe é a terceira de 7 filhos, a tia Dani é a primogênita, desde que eu me conheço por gente a tia Dani é seriamente obcecada nas coisas do meu avô, não havia muitas coisas na posse do meu avô, mas o que ele tinha sempre foi cobiçado pelos meus tios e tias, parece que todos achavam que era direito deles ter aquelas coisas, acho que por isso que meu pai não se envolvia com a família da minha mãe, ele percebeu o abismo de egoísmo antes de cair nele.
Após o enterro, sedenta por dinheiro igual um cachorro de rua passando fome, a tia Dani exigiu a leitura do testamento, a partir desse momento começou a guerra, a minha mãe, em um turbilhão de sentimentos envolvendo tristeza e repulsa, dirigiu um tapa no rosto da minha tia, seco e sem aviso pegou em cheio em seu rosto.

                     Parte 3: o testamento
Caos é o que definiu a sala naquele momento, minha tia incrédula com a mão no rosto, minha mãe com os olhos vermelhos e a mandíbula travada de raiva, ela apenas dirigiu uma frase a minha tia:
-"cale essa boca Danielle"
Um silêncio estático reinou naquela sala por longos 2 minutos, até ser cortado pelo advogado responsável pela leitura do testamento entrando na sala. Indo em direção a mesa, ele, ao perceber o clima de fervor do ambiente, resolveu ir direto ao assunto e dizer a quem ficou as posses. A partir desse momento o mundo escureceu para a tia Dani, pois o meu avô não deixou absolutamente NADA para ela, nem as suas bugigangas, nem ao menos uma porcentagem do dinheiro que ele guardava, a todos os filhos ele dedicou uma carta dizendo o porquê dele estar dando tal coisa a cada filho, para a minha tia, somente um bilhete escrito "melhore Danielle, por favor". Isso desestabilizou a minha tia, saiu da postura sempre gélida e ferveu em raiva e desespero, e eu adorei ver o furacão de sentimentos negativos no semblante da minha tia, me deu um sentimento de satisfação, quase como se ela merecesse.
E agora é a cereja no bolo das surpresas desse acontecimento, o meu avô deixou uma pulseira que ele usou do início ao fim da vida dele para... mim? Sério? Eu fiquei tão confuso quando ouvi o meu nome que olhei em volta, talvez na esperança de que fosse alguma brincadeira ou que tivesse alguém com o mesmo nome que eu na família e eu não soubesse, mas não, era realmente para mim. Foi me entregue a pulseira em perfeito estado, só com alguns arranhões, com um bilhete dizendo "espero que viva tão bem quanto eu vivi meu neto, a pulseira é o símbolo do meu desejo" naquele eu comecei a compreender o que era a morte, chorei como se fosse um bebê de colo, chorei como se não tivesse nada a se fazer a respeito e realmente não tinha, chorei até doer, chorei até não sentir as lágrimas, sentia meu peito apertando, foi a pior sensação do mundo, e nos dias aos quais eu estou sozinho as correntezas de pensamentos que eu normalmente me jogo, eu sinto a mesma sensação, ao lembrar dele.
Na ausência de uma importância, o que nunca foi verdadeiro se desfaz ao vento da própria mediocridade, essa frase define a família da minha mãe após a morte do meu avô, o contato que já era mínimo se tornou inexistente, e minha mãe mergulhou em uma melancolia tão profunda, se transformou em desprezo por todos aqueles que diminuíram o laço familiar que existia com meu avô em vida.

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