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— Padre, dai-me vossa bênção porque pequei.
Ao erguer o rosto, o sacerdote encontrou o anônimo que acabara de adentrar o confessionário de madeira, cujos traços permaneceram envolvidos pela penumbra — resultado da forma retraída em que se ajoelhara.
Pelas poucas palavras proferidas, percebeu que não reconhecia aquela voz como pertencente a alguém da pequena comunidade, de população quase inteiramente católica. E ele conhecia praticamente todos os habitantes, suas histórias e suas vozes familiares, ouvidas em confissões regulares.
Na verdade, aquela voz...
Masculina, doce e morna...
Não pertencia a ninguém que ele pudesse identificar e o afetou, como uma carícia invisível que desliza pela pele.
Afastou a ideia, atribuindo à sua própria imaginação.
Considerou que era apenas um visitante — afinal, Nova Primavera, com seu turismo religioso, atraía muitos peregrinos e turistas, especialmente naquela época do ano — e inclinou-se para frente, quase esticando o pescoço, na tentativa de vislumbrar ao menos algum traço do outro lado da divisória.
Somente os olhos penitentes revelaram-se, em esplendor.
Um castanho quase escarlate, com uma intensidade que transcendia a escuridão, de forma fisicamente incoerente, e que indicava algo mais do que a mera expressão humana.
Brasas ardentes, acesas pelo sopro divino.
Segredos e verdades das sagradas escrituras.
A narrativa do fogo que não consome, da luz que guia o perdido.
Ramiro forçou-se a responder, mantendo a serenidade, embora um leve tremor tocasse sua voz.
— Que a misericórdia de Deus esteja sempre contigo, meu filho. Confessa teus pecados... Busca a paz para tua alma... Fala com sinceridade diante Dele.
— Meu espírito, padre... — a resposta veio em um sussurro quase imperceptível, envolto em uma sedução inexplicável que parecia permear o próprio ar ao redor deles. Assemelhava-se até mesmo a um grunhido de prazer, tão cálido era o tom da voz do desconhecido, e, ainda, de uma energia tão sinistra, que fez os pelos da nuca do padre se eriçarem. — Meu espírito está aflito pelas tentações...
— Como assim, filho? Quais são essas tentações?
As perguntas escaparam dos lábios do homem negro, hesitantes, enquanto seus olhos se fixavam nos limites gradeados do confessionário.
Pela primeira vez, em todos esses anos de dedicação à sua missão, sentiu que temia verdadeiramente o pecado que podia residir do outro lado, de forma inexplicável. E jamais temera nenhuma confissão, por acreditar no poder de Deus para curar as almas; por já ter ouvido as coisas mais horríveis e grotescas...
— Em meu coração ardem ímpetos carnais... — a voz assumiu, em uma manha necessitada, como se cada palavra fosse uma súplica por alívio de uma chama interna insaciável. — Uma luxúria consome minha alma, ameaça me engolir por completo...
Ramiro cerrou os olhos, detidamente, em uma tentativa desesperada de bloquear as imagens que sua mente teimava em conjurar se ouvisse mais.
O outro homem passando as mãos pelo próprio corpo, em busca de prazer...
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Confessor | AU! KELMIRO
FanfictionSob a imponência dos céus, a rotina sacra de um padre é desfigurada devido a chegada de um desconhecido, cujos olhos parecem penetrar o mais profundo das almas, que ergue sua voz suplicante em uma confissão.