1

8 4 3
                                    

Eu estava apaixonada...

Toda garotinha idealizava seu príncipe encantado, e um dia ele chega, mesmo que não fosse em um cavalo branco.

Como ele chegou?

Eu gostaria de dizer que foi em um dia ensolarado e quente, que ele me chamou pra tomar um sorvete e naquela mesma hora o dia pareceu se tornar mais sorridente, eu pareci me tornar mais sorridente.

Mas, nem todo romance é clichê ou feliz.

☔︎︎

Era um dia frio e chuvoso; realmente teria pago o quanto pudesse para não ter levantado naquele dia, mas eu não tinha o suficiente nem para me alimentar, quem dirá pagar as vontades da minha cabeça.

Eu agradeci mentalmente por ter sobrevivido a mais um dia na cafétéria enquanto andava até o ponto de ônibus. E foi lá que ele estava, com um terno bonito e cabeça baixa, na única pequena parte em que o telhado estava bom o suficiente para me proteger da chuva. Se dependesse de mim, ficaria em alguma pontinha com meu velho guarda-chuva, e torceria para que o vento não me presenteasse com respingos d'água fria.

Mas não dependia de mim, e sim do meu enorme histórico de doenças, principalmente de meu episódio de pneumonia na infância e minha asma na adolescência. Então, tive que me encostar perto do estranho, que pareceu só notar minha presença naquele instante, com uma feição de espanto, que se desmanchou em um leve sorriso.

- Boa tarde. - Lhe disse com a voz trêmula.

Ele não respondeu, na verdade, mirou o relógio de pulso que continha no braço.

- Boa tarde. - ele respondeu, finalmente.

- Atrasado. - Pareceu estar confuso - Atrasado pra me responder.

- Queria saber se é boa tarde ou boa noite.

- Mas está claro. - Apontei para o céu. - Só pode ser boa tarde.

- Nunca se sabe, o sol pode não ter acordado a lua hoje. - Ele abriu um grande sorriso.

- Ele sempre acorda, é pontual. - Também abri um sorriso, o que com certeza pareceu menos atraente que o dele.

- Com certeza mais pontual que o ônibus. - Dei uma alta gargalhada. - Qual a graça?

- Hoje é domingo. - Completei entre risadas.

- E você trabalha? - Apontou para a minha blusa, não parecia preocupado se eu ria dele.

- Alguém precisa fazer a cidade funcionar, mesmo aos domingos.

- Faz sentido, mas o motorista também devia saber disso. Não há ninguém para fazer os ônibus funcionarem aos domingos?

- Não, mas tem alguém para te fazer um bom café e torná-lo acompanhado por fatias de bolo. - Sorri. - Você vai voltar pra casa ou vai esperar a segunda aqui?

- Acho que não existe "voltar para casa". - Abaixou a cabeça e eu o acompanhei, vendo duas malas aos seus pés.

- Minha casa fica logo ali. - Apontei para o fim da rua, minha linda casinha de tijolos brancos e cerquinhas fofas me esperava.

- Foi um convite? Porque eu aceito. - De repente ele me olhou em pura confusão. - Você ia pegar o ônibus só até o fim da rua?

- Eu não ia, só não queria me molhar. Este era o único lugar coberto até a chuva passar. - E como se me ouvisse a chuva foi cessando, até parar.

- Passou, vamos. - Ele já tinha as malas na mão, ele parecia cheio de si. Invejei isso, ele estava indo pra casa de uma estranha.

- Você não tem medo de abrigar um estranho na sua casa? - Não, o que ele podia fazer? Não sabia onde estavam as facas.

- Não, você parece inofensivo e, bem, meu braço é maior que o seu. - Dei de ombros. Eu era dona de um físico excelente e fiz muitas aulas de luta na vida.

- Eu pareço um frangote pra você? - Apontei para o seu braço e ele dirigiu o olhar até lá. Era fino, não maior que o de um adolescente. Parando para reparar como um todo; tinha uma baixa estatura, era muito esguio, quase como desnutrido. Será que ele não comia? - Ei não fique olhando pro meu corpo assim, 'tô começando a achar que você é o perigo aqui.

- Garanto que não mordo. - Propositalmente lambi meus caninos, possuidores de uma extensão, dinheiro muito bem gasto. - Só se você quiser.

Ele ficou vermelho como um pimentão e abaixou a vista. Foi quando um enorme raio cortou o céu e ele me olhou amedrontado; segurei a mão dele o mais delicadamente que eu pude e sorrateiramente a abri, tomando a maior das malas.

- Não precisa. - Estendeu a mão para que eu devolvesse a mala.

- Mas eu quero. - ignorei sua mão, o guiando em um passo apressado.

Parecia loucura antes também, mas acho que as coisas malucas ficam piores quando envelhecem. Afinal, vinho ainda são uvas podres.

E mesmo que, spoiler: nada tenha acontecido (nada ruim tenha acontecido), eu ainda ficava boba de como chegamos tão rápido na vida um do outro e, eventualmente, me perguntava como chamei um estranho para minha casa. Logo eu, que desconfiava até de passarinhos... Mas acho que a resposta devia ser o destino. Aquele ser prepotente que se achava no direito de mudar o curso dos corações alheios.

Sim, dos corações, pois meu coração batia diferente desde que o conheci. Algumas meses tinham se passado, e vez ou outra ele aparecia no meu trabalho.

Nem sempre porque as coisas lá não eram baratas e ele realmente não podia gastar todo o seu dinheiro lá, mas ele ia na minha casa com frequência.

Descobri também que ele era estudante de uma pequena faculdade e trabalhava como aprendiz no marketing de uma rede de lojas de roupa. Ele era muito talentoso nisso, tive certeza quando quis comprar toda a coleção outono-inverno do ano. Também descobri que no dia em que nos conhecemos, ele foi expulso de casa, mas não me disse o motivo nem morto, nem mesmo quando eu o chantageei com um pedaço de bolo por minha conta.

Logo foi algo que deixei quieto, abandonei de vez as perguntas quando ele apareceu todo animado. Um amigo havia terminado com a namorada e ofereceu um quarto do apartamento, com a condição de que fizesse as tarefas domésticas. Achei estranho, já que, pelo pouco que entendi, a casa era cuidada por uma empregada antes do tal término; e ele já era tão cheio de coisas... Mas ele ficou tão feliz que me privei dos pensamentos desconfiados.

Ele me visitava cada vez menos, a desculpa era sempre a mesma.. A casa bagunçada e uma possível promoção no trabalho.

Depois de bastante tempo, ele bateu à minha porta. Era sexta à noite e...

Maremoto Onde histórias criam vida. Descubra agora