Era sexta a noite e...
Como se o universo nos beijasse com todo seu escárnio em um riso debochado, chovia como naquele domingo de 1 ano atrás...
Os gotejos pareciam cantarolar "não há pra onde fugir", até porque não havia mesmo. Éramos eu e ele, trocando olhares, com a boca seca daquele ódio denso, o que cria barreiras e uma dor na parte baixa do estômago.- Lembrou o caminho da minha casa? - Tive coragem de dizer.
- A casa de tijolos brancos com cerquinhas fofas. - Levantei os olhos, a procura do mínimo vestígio de espinhos, mas só encontrei um sorriso leve... O mesmo do dia em que nos conhecemos.. - A casa é essa, é certeza, mas não posso dizer o mesmo da dona. Posso?
- Não fui eu que sumi como uma cobra.
- Como uma cobra? - Ele repetiu com uma risada anasalada.. Eu amava essa risada, mas me mantive firme..
- Mordendo calcanhares e rastejando pra longe. - Mordi a parte interna da minha bochecha. - Vai ficar na chuva? - Fiz menção de fechar a porta.
- Se me permitir, não. - Agora ele segurava suavemente a porta, e eu a abri mais um pouco, indicando pra que ele passasse. - Obrigado, minha borboleta.
- Não me chame assim. - Eu fechei a porta e me virei pra ele, que estava sentado no sofá. - 6 meses sem me ver já foram suficientes pra perder a noção do perigo? Levante daí.
- Não seja maldosa, não posso mais me sentar? - Eu o olhei de baixo a cima, ele estava completamente encharcado, suas roupas pingavam constantemente, deixando uma mancha escura no meu estofado.
- É bom você levantar, tomar um banho e torcer pra que meu secador arrume essa bagunça. - Ele olhou pra baixo, notando a bagunça.
- Eu.. Me desculpe, de verdade. Eu achei que não tinha pego chuva - Revirei os olhos, ele nunca nota nada não é? Isso é tão irritante.. - Você tem uma roupa que me sirva?
- Pegue qualquer uma, todas te servem - Ele me fitou de bochechas coradas, sempre tinha essa reação quando nossa diferença de tamanho vinha atona.. Eu tinha gargalhadas guardadas pra esse momento, mas não hoje.. Talvez nunca mais - Vamos, de pé.
Ele me olhou com um olhar estranho, e eu devolvi, mesmo que não soubesse que tipo de olhar ele tinha.
- Você realmente ficou chateada por esses 6 meses, não é? - Ele finalmente levantou, suspirei aliviada. Se o perder, pelo menos meu sofá ficará inteiro.
- Primeiro banho, depois conversamos. - Ele pareceu pronto pra protestar, mas eu virei as costas. Indo pra cozinha. - Eu já disse, primeiro banho. E reze pra que meu sofá esteja inteiro quando voltar.
- Eu não sei rezar.
- Então xingue a Deus. - Respondi lembrando do antigo ditado.
Ouvi um estalo de língua e passos se afastando.
Respirei fundo, e naquele momento, mesmo sem permissão.. A saudade me arrematou, como se acompanhasse aquele sentimento a forte chuva cessava lá fora, deixando um frio acalentador no ambiente. Me aproximei do fogão, focando os últimos resquícios de sanidade em fazer um café.Algum tempo depois ele saiu do banheiro, com uma blusa grande demais e segurando a bainha da calça que insistia em cair.
- Eu tinha me esquecido de como seu café cheira bem.
- Meu café sempre esteve no mesmo lugar, você não o tomou porque não quis. - Eu o olhei, minha raiva borbulhava dentro de mim, era como se eu chiasse como uma panela de pressão. Tamborilei os dedos sobre a mesa, alcançando minha xícara. Derramei o café nela, olhando nos olhos do garoto a minha frente.
- Eu não podia.. Só, eu não sei como explicar. - Ele deu um sorriso amarelo.
Continuei a encher a xícara, o encarando. Senti o café quente esquentando meus dedos, pelo contato com a cerâmica. Logo senti o líquido descendo pelos meus dedos, os abraçando com o calor crescente.
- Sua mão está queimando. - Ele fez menção de levantar, me olhando preocupado.
- Agora você se importa? - Ele recuou, com um olhar de que começava a notar toda a merda.
- Eu não sou um monstro.
- É a minha mão, na minha casa, queimada com meu café, feito na minha cozinha. - Repeti as palavras que ele havia dito a alguns meses atrás, trocando algumas coisas.
- Você diz que eu sou egoísta, mas parece que tudo se torna sobre mim. - Eu engasguei quando aquilo veio aos meus ouvidos. - Posso ser um tolo, mas ainda sou um homem adulto.
- Acho que tola sou eu, de cair no conto do "homem adulto" - Larguei a xícara, indo lavar minha mão que ardia em um vermelho vigoroso. - Ser de maior não te faz um homem, não agir como um idiota é que faz.
- Você age como se 6 meses fossem algo. - Ele disse em um tom tão acusatório, parecia saber algo que não devia.
- Pra mim foi. - Disse mais baixo do que queria. - Tem todos somos os Senhor Super Insensível ou o Garoto Desapego. - Eu disse mais alto dessa vez.
Ele suspirou e eu me virei, não esperava que ele estivesse ao menos escutando. Ele tinha essa mania irritante de não ouvir coisas importantes, ou qualquer coisa que não seja "fiz bolo".
- Me desculpe por tudo, ok? Eu não estou feliz longe de você... Tem razão, eu não deveria vir aqui e agir como um adulto responsável que passou todo esse tempo longe por querer.
- Deveria ter dito isso a 6 meses atrás, naquele dia. - Senti todo o meu estômago se remexer. - No dia em que eu me declarei, covarde.
Me virei pra ele, ódio pingando de cada palavra. E tudo foi tão rápido que não lembro de nada, ou de quase nada...