Píer de Insônia

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O vento sopra atenuado sobre os troncos de madeira. Uma melodia quebrada ecoa na costa da vila.

— Não conseguiu dormir? — Bernardo me pergunta. Ele está iluminado sob a luz da Lua, com a aura dos espíritos lhe protegendo.

— Não...

— Posso me sentar ao seu lado?

— Claro.

Já faz algum tempo que Bernardo chegou em Kärví. No começo, todos temiam o bruxo fugitivo, mas eu nunca consegui sentir esse medo todo vindo dele.

Bernardo, digo, Hufïr, não é um garoto mau. Ele só é um bruxo, isso não é atestado de maldade alguma.

— Então... algo te tira o sono?

— É tão óbvio assim, Ber... Huf... como você prefere que eu te chame?

Ele fica em silêncio por uma fração de segundos. Foram os segundos mais longos da minha vida.

— Eu gosto muito do meu nome, mas se for melhor pra você me chamar de Hufïr, então...

Dei um sorriso contido.

— Como seu próprio pai disse: ninguém vai falar Bernardo, mas eu achei atencioso ele ter me dado esse nome...

Ele é engraçado.

— Você realmente se sente confortável se eu te chamar por Hufïr? — Não obtenho uma resposta de imediato, apenas seus olhos fitando-me de maneira confusa. Deve estar pensando algo do tipo mas o quê raios esse Kanay burro quer comigo?

Eu só quero ser uma pessoa boa. Eu só quero fazer o bem pros outros.

Eu só quero fazer bem pra ele.

Eu só quero ele.

— Claro! — Ele irrompe o silêncio com sua voz.

Seu timbre era agudo como o de um pássaro que canta aos primeiros raios de sol da manhã. Mas sua melodia era mais atenuada, como se estivesse se forçando a falar como se não fosse ele mesmo.

— Quero dizer — ele pigarreia, mudando sua melodia de algo agudo para um garoto passando pela adolescência —, fica mais confortável para você me chamar na sua língua, e você está sendo muito respeitoso comigo. Muito obrigado por isso...

De súbito, a temperatura da água começou a baixar. Ou aquele píer não é muito alto, ou eu é quem o sou, porque estavam meus pés na água.

Aquela água quente, típica das noites em Kärví, começou a perder seu calor e ficava cada vez mais fria.

— Você é um fofo, Hanvar. — Eu não consegui manter contato visual com ele nessa hora. Maldito bruxo, me desmontara por completo com uma única frase.

Foi o necessário para que meus pés ficassem congelados na água e que minha cara enrubescesse, como se ela ardesse em chamas.

— Hanvar... — Hufïr nota que meu rosto não era a única coisa que estava ardendo em chamas — seu cabelo está pegando fogo...

Minha única reação foi gritar de desespero e me atirar na água. Sua única reação foi rir de meu sofrimento.

A água já não estava mais gelada, assim como meus pés não estavam mais congelados. Aquele mergulho indesejado acabou me fazendo refletir sobre uma coisa: eu estou muito nervoso perto dele. Por que? De fato, Hufïr é um garoto fofo, bonito, trata todos na aldeia muito bem, jamais fez mal a nenhum dos moradores da aldeia ou a qualquer animal da floresta aqui perto...

Isso nem fazia sentido.

Sinto a pressão da água querendo me manter submerso quando nado buscando o píer. Apoio minhas mãos na madeira, e, com dificuldade, consigo sair da água.

— O que foi isso? — Hufïr me pergunta com um semblante de desespero em seu rosto.

— Isso? Ah, não foi nada... — eu sou péssimo mentindo.

Obviamente não era nada, meu pai me ensinou que isso só acontece conosco quando nossas emoções estão se aflorando. Um Kanay aprende a controlar seus poderes na medida em que vai conhecendo melhor suas emoções e sensações, coisa que só conseguimos quando crescemos e interagimos com o mundo.

Quando bebês nós não dominamos a magia e isso claramente ocasionaria em problemas, porém, ao menos em Kärví, todos na aldeia se sentem responsáveis pela criação das crianças. Outra fase em que isso acontece é no começo da adolescência, e depois só ocorrem em períodos muito pontuais de nossa vida, como um sentimento muito intenso que transborda em forma de magia.

Eu já não sou criança, e já passei pela adolescência há muito tempo. O quê está acontecendo comigo?

Antes que eu conseguisse refletir, Hufïr pula em cima de mim.

Nós dois caímos na água.

— Você enlouqueceu? — brigo com ele. — Você tem noção do quão perigoso é fazer isso?

— Vai por mim, eu sei bem o que é perigoso e o que não é — ele coloca sua mão sob meu ombro —, e isso daqui não é nem um pouco perigoso.

Ele sorri. Está rindo de mim. Eu sou um besta.

— Mas eu não conheço, e nem quero conhecer o que é perigo — retruco. — Me promete não fazer mais isso?

— Prometo... — ele diz com aquele sorriso no rosto. — Mas, você realmente não sabe o que é o perigo? Um Kanay tão destemido como você? Eu pensava que você era como um lobo selvagem, mas creio que você não passa de um animal domesticado

— Você está tentando me fazer mudar de ideia, Ber...

Eu quase o chamo por Bernardo. Vejo um brilho em seus olhos.

O brilho d'água azul do mar refletia em seus olhos de maneira intensa. Ele é lindo.

A maneira como ele estava, ali, todo encharcado e banhado sob a luz da noite, me era deslumbrante.

Ele me puxa pela cintura, sua mão em meu pescoço. Só então que eu entendi o que estava sentindo, e naquela hora eu entendi o porquê dele ter me perguntado se não sabia o que era o perigo. Seu beijo selou nossos destinos de formas que eu jamais imaginava.

Eu havia me encantado e me apaixonado perdidamente por aquele garoto que eu havia encontrado, à beira da morte, na clareira. Eu havia me apaixonado por um bruxo, mas não era por qualquer bruxo.

Eu havia me apaixonado por Hufïr, o bruxo do ar. Aquele que um dia já foi Bernardo de León, filho de uma das famílias de bruxos mais poderosas da colônia de Galfraim.

Hufïr é o perigo em pessoa. E foi aí que eu entendi que eu quero correr os riscos que forem por ele.

Beijá-lo é perigoso. Amá-lo é perigoso. Estar com ele é perigoso.

É motivo o suficiente para que os bruxos de seu pai queimem Kärví e nos reduzam à cinzas, mas se eu tiver de correr estes riscos por ele, eu então hei de corrê-los.

Pode parecer egoísta, mas é de fato egoísta. O que seria do amor se não uma forma de suprimir nosso ego com o ego de outra pessoa? Foi na noite de hoje que eu suprimi o meu ego com o ego de Hufïr, aquele que algum dia pôde ser o bruxo mais perigoso de toda Ilha Ëvar, mas hoje em dia não passa de meu namorado.

Píer de InsôniaOnde histórias criam vida. Descubra agora