Capítulo 2

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DULCE VILELA

Enquanto eu avançava pela multidão, afastando qualquer pessoa que ousasse cruzar meu caminho, uma mistura de raiva e repulsa se acumulava dentro de mim ao sentir as mãos invasivas de um grupinho de mauricinhos tentando tocar meu corpo sem minha permissão.

Eu precisei de toda a minha força para conter o impulso de desferir um golpe certeiro em suas partes baixas.Por mais que minha vontade fosse expor esses idiotas ao Peruano e deixar que ele lidasse com eles da maneira que considerasse adequada, eu sabia que isso poderia resultar em consequências fatais.

No entanto, tenho certeza de que esses cretinos estão cientes das regras não escritas do Morro Nação e do que poderia acontecer se ultrapassassem certos limites. Aqui dentro da favela, as leis são ditadas pela Facção dos Nacionais, liderada por sete chefes distintos. Eu não sei como as coisas funcionam em outras favelas, mas aqu uma coisa é certa: assediadores e estupradores não escapam impunes pelos seus atos.

— Aqueles sujeitos te incomodaram, Dulce? — Peruano parou diante de mim, um sorriso sardônico dançando em seus lábios.

— Não, eles estão apenas exagerando na bebida. — Tentei manter a compostura, mas meu olhar vagou pela sala, encontrando o homem tatuado me observando.

— E onde está sua amiga?

— Ela ficou na cozinha.

O Peruano assentiu brevemente e se afastou antes que eu pudesse indagar sobre a identidade do moreno enigmático.

Antes de deixar o local, lancei um último olhar para Layane, cuja expressão denotava uma satisfação palpável com a atenção recebida pelo líder do morro.

Só existem dois tipos de pessoas no Morro Nação: os marginais e os amigos e familiares dos marginais. Todo mundo é envolvido no crime, direta ou indiretamente.

Layane costumava proclamar sua honestidade, mas sua amizade com os traficantes do Morro Nação e seu suposto envolvimento com Peruano, apesar de ser casado, me deixavam desconfiado.

Não tenho nada contra quem escolhe ser amante, mas acredito que é hipocrisia se autointitular feminista e se envolver com homens comprometidos, ignorando o impacto devastador que isso pode ter na vida emocional das mulheres traídas.

Prefiro não julgar suas ações, pois não consigo sequer imaginar o que é crescer em um ambiente familiar desestruturado, sem o suporte emocional e financeiro dos pais. Se já me sinto um pouco desequilibrada tendo nascido em uma situação privilegiada, imagino como seria crescer em meio a homens armados enquanto brincava na rua com meus amigos.

Deve ser uma infância incrivelmente desafiadora e traumática, uma realidade muito distante daquela glamourizada pelos funkeiros em suas músicas. Imagino que as letras cheias de ostentação e festas não capturam nem de longe a verdadeira essência da vida nas comunidades afetadas pela violência, onde o som dos tiros substitui as melodias alegres e a preocupação com a segurança supera qualquer desejo de diversão.

Me locomovi tanto que quando dei por mim, eu estava em uma das vielas bem longe da casa onde acontecia a festa e respirei fundo tentando pensar em como vou embora sozinha, levando em consideração que Uber não entra aqui. Instantes depois, decido descer a favela e pegar um mototáxi para ir para casa. É, essa é a melhor solução.

Deveria ter confiado em meus instintos e optado por vir de carro, em vez de aceitar a carona do amigo de Layane. Mas a promessa de uma festa animada na favela e a perspectiva de beber até cair e ter um motorista pesaram mais do que a voz da razão dentro de mim.

A noite está estranhamente fria, um contraste gritante com o clima habitualmente abafado e quente desta metrópole urbana. É um alívio temporário sentir o ar gélido em meu rosto, mas sei que não posso me deixar distrair por muito tempo. Afinal, nesta cidade, até mesmo os milagres divinos podem se transformar em armadilhas mortais se eu baixar a guarda por um momento sequer.

Sigo em frente, apressada, desejando estar em qualquer outro lugar que não esteja exposta a tantos perigos e incertezas.

Ao abrir a minha bolsa, percebo que meu celular descarregou e não tenho dinheiro em espécie, meu último recurso é sair da favela em busca de um caixa 24 horas para poder pagar o motoqueiro.

Com passos rápidos e o coração apertado, me dirijo ao banco mais próximo, determinada a sacar o valor necessário para uma corrida. Chegando lá, encaro o caixa 24 horas como minha única esperança em uma hora tão tardia.

Mas antes que eu possa sequer inserir meu cartão, o silêncio da noite é quebrado por gritos e o eco assustador de tiros. Meu corpo se enrijece de medo ao perceber que estou no meio de um assalto. Um homem encapuzado se lança sobre mim, agarrando-me com violência.

— Você tá louco? — Puxei meu braço, tentando me soltar de seu aperto.

Foi inútil tentar medir forças com um cara mais forte.

— Olha como você fala comigo, Dulce. — Uma voz grossa e fria adentrou os meus ouvidos, fazendo o meu corpo tremer.

Me assustei ao escutar o meu nome e tentei recordar de onde conhecia aquela voz. 

— O que você quer? Como você sabe o meu nome?

— Quantas perguntas... — Seus dedos colocaram uma mecha de cabelo atrás da minha orelha e por instinto, dei alguns passos para trás, fazendo as minhas costas baterem na parede. — Eu não vou fazer nada com você, relaxa.

— O que quer de mim, seu merda? — Tentei parecer firme o suficiente para assustá-lo.

Ele não respondeu e saiu arrastando-me para fora do banco, em direção a uma van escura que espera nas sombras.

Meus pensamentos se tornam uma confusão de pânico e desespero, enquanto a van parte em alta velocidade, cortando pela escuridão da cidade como uma fera faminta. Eu me agarro à esperança de encontrar uma brecha para escapar ou chamar ajuda antes que seja tarde demais.

TENTAÇÃO PERVERSA [degustação]Onde histórias criam vida. Descubra agora