Quando acordei o sol adentrava pela pequena janela do quarto, as cortinas tinham sido tiradas puxadas e a luz da manhã era forte e insistente, a cama estava mais macia, o edredom mais quente, havia um cheiro suave e fresco por toda parte, como se houvesse chovido em um dia quente de verão e flores de jasmim estivessem espalhadas por todo lado. Eu não me lembro de ter um dia sentido um cheiro tão agradável vindo deste quarto, não que eu nunca limpasse ele, eu só nunca estava presente quando a camareira o fazia, e raramente eu passava mais de dois dias seguidos nele, a não ser desta vez. Mas eu já sabia quem era a responsável por isso,e eu não iria brigar com ela, na verdade ela é que iria brigar comigo.
Levantei a cabeça com certa dificuldade, eu estava fraca, e não por causa da ressaca que provavelmente logo iria começar, mas pelo fato de não ter comido nada além de biscoitos por quase três meses, porque veja bem, você só irá ficar de ressaca se parar de beber, e como eu estava sem beber a sabe-se lá quanto tempo, visto o meu desmaio, ah sim, ela logo viria.
Apoiei os cotovelos no colchão e olhei ao redor, o quarto pequeno e antes escuro, agora estava lindo, luz entrava e dezenas de cores eram transmitidas através dos vitrais que eu nem sabia que tinha nas janelas, as paredes cheias de sombras que eu costumava ver foram tomadas por um tom de branco creme, e a mobília estava limpa e organizada, as dezenas de garrafas perto da lareira não estavam mais lá, e no lugar havia uma uma poltrona onde repousava a Fada mais linda e com o olhar mais aterrorizante que eu já vira.
- Acho que eu estou encrencada não é?- minha voz saiu embargada e rouca, ao menos eu estava sóbria, não sei se conseguiria encarar Elora estando bêbada, ela estava ainda mais linda do que a última vez que a vi, seu cabelo estava um pouco mais longo, chegando até abaixo da cintura, e tinha adquirido um tom mais claro de vermelho, ou talvez seja os raios de sol que batiam agora diretamente nela e acentua os verdes de seus olhos, e eu tinha certeza que ela escolheu aquela posição para que eu a visse daquele jeito, deslumbrante e assustadora.
- O fato de termos discutido não te dá o direito de sumir por meses e não me avisar, ainda sou sua melhor amiga Aurora Iliakós!
Eu estava muito encrencada, mas ao menos ela estava ali, iria me ajudar, eu precisava dela, no momento, era o único ser ao qual eu permitiria contar e chorar minhas mágoas, e antes que eu tivesse a oportunidade de responder, mais uma vez fui tomada pela profunda tristeza e chorei, chorei como nunca antes, e em questão de segundos eu estava aninhada nos braços de Elora.
Não me lembro de muita coisa nos meses em que fiquei me embebedando, apenas alguns fragmentos de acordar em sobressaltos e voltar a beber, não me lembro de chorar depois de ter começado a beber, apenas quando cheguei e percebi que foi real, a notícia martelava na minha mente e eu via as lembranças de anos antes com todos ao meu lado, chorei por horas naquele dia, até resolver acabar com minha coleção de vinho.
Talvez eu tenha ficado ali por horas, e pelo Vazio, eu não poderia ficar chorando eternidade na frente de Elora, mas aos poucos fui recuperando o controle, os soluços deram lugar ao respirar mais controlado e por fim a tremedeira passou, e quando eu tinha tomado forças para erguer os olhos o sol não refletia mais as luzes coloridas pelo quarto, mas deu lugar a uma linda lua prateada que brilhava no céu.
- Muito Obrigada- Consegui dizer.
- Não precisa agradecer, e eu realmente achei que você havia superado nossa briga, aquele vestido não valia tudo isso- Ela me deu uma beliscada no ombro como sempre faz quando quer me ver rir, e foi espontâneo o sorriso que expressei.
- Posso lhe garantir que chorei muito menos quando VOCÊ o roubou de mim.
- E bebeu muito menos também..- Eu a olhei cansada e ela logo se interrompeu, respirou fundo e disse - Primeiro banho, se é que se lembra o que é isto, a banheira já está pronta, enquanto se banha vou trazer seu jantar.
Ela me ajudou a chegar no banheiro, a banheira soltava vapor e parecia me chamar, -Quer ajuda para se despir? - Fiz que não com a cabeça e ela me deixou prometendo trazer a melhor canja que eu iria comer na minha miserável vida.
O espelho do banheiro acima da pia não era muito grande, mas o suficiente para que eu pudesse me ver até o ombro, e a imagem que vi foi irreconhecível.
Eu nunca fui muito bonita, mas era atraente ao meu modo, meu rosto estava murcho, como se algo tivesse sugado minha alma e deixado apenas uma casca seca, e talvez isso realmente tivesse acontecido. Meus olhos antes com uma cor de âmbar vivo e caloroso agora estava frio, e nem se falava nas olheiras, talvez roxas demais por minha pele não passar de um tom a mais do que a daquela Guirt, eu sempre fui pálida, mas os meses sem ver a luz do sol agravaram a situação.
Quando consegui me despir por completo não vi nada mais que um esqueleto abaixo da pele, os ossos pareciam saltar, nunca tive muitas curvas para exibir, mas certamente eu tinha mais carne do que agora, meu cabelo antes uma linda e grande cortina castanho claro agora parecia desaparecer, estava ralo e opaco.
Adentrei na banheira fumegante, eu podia sentir cada gota de água em minha pele, os meses sem este contato tinha cobrado seu preço, meu estado era deplorável.
Quando estava o mais limpa que um dia já estive, me permiti fechar os olhos por um instante, deixei os pensamentos se diluírem, e por fim o cansaço me reivindicou.
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A Última Fenda
FantasyUma viagem contra o tempo, uma busca pela verdade, e uma última esperança antes que a última fenda se feche.