Capítulo 1

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Eu estava olhando para uma garota jovem, jovem assim como eu. Ela tinha cabelos negros e encaracolados, assim como eu. Sua pele era de uma cor café com leite, tão leitosa como um creme de chocolate, assim como minha pele. Eu não podia ver a cor de seus olhos por conta das pálpebras fechadas, mas eu e ela sabíamos que eram pretos, alguns até diziam que eram sombrios como a penumbra da noite.

Três médicos rodeavam a garota, a forçando a respirar, pedindo que ela voltasse, implorando para seu coração voltar a bater, mas eu e ela sabemos que isso não iria acontecer. Era tarde demais!

Aquele era meu corpo, deitado em uma maca, encharcado, morto, sem vida. Sem esperança.

Olhei para minhas mãos e elas estavam quase transparente, eu não sentia dor, mesmo com água em meu pulmão. Continuei ali, olhando para a garota falecida. Quem era ela? Muitos a conheciam, mas ninguém sabia quem era ela.

Então, uma mulher, com aparência semelhante a minha, chegou correndo e gritando. Ela ultrapassou todos os médicos e enfermeiros que tentaram barra-la ou consola-la, parou a alguns centímetros do corpo e olhou para os médicos que já tinha desistido de tentar reviver um corpo sem vida. Eles balançaram a cabeça com expressões de pena e as abaixaram. A mulher chorou, soluçou e gritou ao se desmanchar no chão.

 Eu não sabia que doeria tanto ver minha mãe naquele estado, mesmo para uma alma translúcida. Cada lagrima e lamúria doeram bem mais do que minha eminente morte. Suas mãos agarram a maca e ela parecia estar fazendo uma força descomunal para levantar seu corpo até o meu.

Ela então deixou um beijo em minha testa e continuou a chorar em meu peito. Não sabia como, mas eu podia sentir suas lagrimas quentes caindo em minha pele fria. Podia sentir as convulsões de seus soluços. Então uma lembrança me atingiu assim que a vi se jogar para cima do médico e implorar para restaurar minha vida.

Minha mãe sempre foi uma pessoa mais reservada, talvez uma boa mãe, mas péssima em escolher relacionamentos, tanto com homens e mulheres. Seus namorados eram sempre desprezíveis e ogros, suas amigas eram interesseiras e egoístas. Mamãe vivia uma vida miserável, sem amor e esperança. Talvez por isso não havia muito amor para transmitir como mãe.

Seu marido, meu padrasto, o terceiro desde que papai morreu, era infiel e só sabia extorquir o dinheiro de minha mãe. Saia com o cartão e voltava com o limite estourado, cheirando a álcool e perfume barato. Minha mãe sabia, claro que a mulher sabia, mas ela não ligava. Falava que ele era melhor que os outros dois últimos. E eu sabia que era verdade.

E sabia, também, do porque ela estava com ele. Sabia que era por minha causa. Minha mãe só estava tentando me proteger do namorado anterior dela. Dos abusos. Do monstro que ela trouxe para casa quando eu tinha 15 anos.

Mas agora ela estava livre, livre para abandonar o homem que vivia conosco, livre para viver para ela, não para os outros. E não seria difícil, dinheiro não seria problema por conta da herança que meu avô deixou e pelo sucesso que era o trabalho dela. Ela só precisava me esquecer, me deixar para traz. Seria fácil.

Não demorou muito para meu padrasto chegar. Com uma camisa preta e o distintivo no pescoço. Ele conversou com os médicos por alguns segundos e depois foi até minha mãe. A segurou enquanto as enfermeira levavam meu corpo embora e somente me proporcionou um olhar triste. Nada mais. Então sua expressão se voltou novamente para uma carranca confiante e uma falsa proteção com a mulher que se debatia em seus braços.

O policial era um idiota, traidor e infeliz homem, e eu sabia que entre os dois não havia amor e se algum dia houve, foi breve e fútil. Mamãe viu no homem uma chance de escapar do passado e eu supunha que ele fazia o mesmo. Duas pessoas tolas.

Eu estava dando uma chance aos dois, de viver e se libertarem do que os prendia. 

- Como isso aconteceu? - Pedro indagou confuso. Acho que sua tristeza se foi dando lugar a sua curiosidade, não o culpo. Em um momento ele estava me mandando mensagens para deixar a casa em ordem e em outro eu não estava mais respondendo. Quando o policial viu que mamãe não responderia sem um empurrãozinho, o idiota continuou. - O médico disse que ela...

Minha mãe saiu abruptamente de perto dele e o olhou furiosa. Me lembro de quando era pequena e ela olhava assim para meu pai, a diferença é que logo depois ele a fazia sorrir. Mas Pedro não a faria sorrir, nunca fez. Nem eu a fazia feliz.

- NÂO. Eles estão errados. Todos eles estão errados.

E voltou a soluçar com seus braços ao redor de seu corpo como se isso pudesse a proteger. Mas não iria. 

Então me movi, pela primeira vez nesse estado caótico. Dei um passo em direção a Mariana, mas parei quando percebi que o chão estava molhado, eu estava ensopada e meus passos estavam mais pesados. Eu não podia alcançar minha mãe, nunca consegui, não iria ser nesse momento que ela me veria. Mesmo com uma ansiedade em querer abraça-la, permaneci ali. Observando toda tristeza e caos. 

Acho que a morte pode ser mais parecida com a vida do que as pessoas imaginam.

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