Capítulo 2

2 0 0
                                    

A sala da funerária onde o caixão iria ser depositado era grande e cheia de flores. Mariana odiava flores. Eu sabia que a organização deveria ter ficado na responsabilidade de Pedro. Ou de alguma mulher que supôs que muitas flores brancas iria agradar minha mãe. 

Meu padrasto permanecia sentado em um sofá, mexendo no celular. Por curiosidade para saber qual era o nome da amante da semana, me peguei se aproximando dele e dando uma olhada no aparelho e para minha surpresa ele estava relendo as ultimas mensagens que mandou para mim.

Permaneci ali até ele desligar o celular e respirar fundo como se realmente tivesse incomodado com minha morte. Mas minha surpresa foi quando aquele homem começou a chorar. Ele não estaria chorando por mim. Não poderia. Talvez fosse por causa que enterros lembrassem sua primeira esposa que havia morrido em um acidente. Eu sabia que ele bebia por causa dela e que tinha uma foto da mulher em seu escritório na delegacia. Pedro nunca a mencionou diretamente, mas mamãe sabia da tragédia e uma vez soltou para mim. 

Pedro nunca foi um homem sentimental e eu nunca me importei com ele, então não fazia sentido perguntar mais sobre o acontecido. Continuei não me importante durante os 4 anos em que vivíamos na mesma casa, eu estava satisfeita com seu desinteresse em mim e ele estava feliz com a minha indiferença em relação a ele. 

Mas talvez não tenha sido assim.

- Que merda em garota.

Foi suas únicas palavras pelo resto do dia. Palavras estas que me consolaram e me apunhalaram.

 #

Minha mãe estava na sala particular onde estavam arrumando meu corpo para expor àqueles que nem mesmo sabiam meu nome completo. Mariana estava horrível, com os olhos inchados e o rosto vermelho. Já vi ela muitas vezes assim, mas havia algo diferente em como ela olhava para tudo agora. Era como se sua perspectiva sobre tudo tivesse mudado. Não gostei de ver minha mãe assim. Mas não havia nada que eu pudesse fazer.

Ela colocou meu cabelo rebelde atrás da orelha e acariciou meu pulso. Havia varias cicatrizes ali, marcas que minha mãe já chamou de muitos nomes. Rebeldia, imprudência, passageiras, decepção, mas sei que em todas as vezes que ela me via destruída, chorava comigo.

- Eu odiava que era você e não eu. - Mariana, com sua voz rouca e decadente, choramingou para o corpo da sua filha. - Tentei fazer sempre o melhor para você, mas tudo o que eu fazia estava errado. Você sofreu tanto quando seu pai morreu. - Ela soluçou mais um pouco. - Quando perdemos ele. Então pensei que se colocasse uma figura paterna dentro de casa, a dor poderia diminuir, mas não foi bem assim.

Minha mãe abaixou a cabeça e controlou a respiração para não perder o controle outra vez. Ela tinha me ensinado isso depois do segundo namorado dela. Depois que eu a vi toda machucada e ele em cima dela. Eu tinha 13 anos e deveria ter ajudado ela, mas minha reação foi ter uma crise de pânico idiota. Aconteceu mais algumas vezes, as surras e os hematomas, depois minha mãe denunciou o cara e nunca mais o vimos. Mas minhas crises persistiram.

Depois, Mariana apareceu com o terceiro cara. Eu tinha 15 anos e estava bem, mas minha mãe parecia pior a cada dia. O luto afetou nós duas, mas ela não conseguia seguir em frente. Se afogava cada vez mais no trabalho, homens e qualquer outra coisa que a tirava de casa e da minha vista. Me perguntei varias vezes se ela me odiava, mas descobri que eu a fazia lembrar o papai. E isso me machucou tanto na época, mas não mais do que abusos psicológicos e físicos do terceiro namorado. 

Ele sempre dormia em casa, no começo ele parecia mais um dos homens fúteis que Mariana arrumava para passar uma noite de sexo e nada mais. Mas depois de quase três meses com a mesma rotina em nossa casa, ele se estabeleceu como se fosse da família. E quando mamãe abaixou a guarda, se alguma vez ela tivesse a levantado, ele começou a invadir meu quarto.

Na primeira e segunda vez, eu gritei, me perguntava por que minha mãe não estava vindo me socorrer, mas depois descobri que ele a drogava a noite. Não importa o tanto que eu lutasse e gritasse, ninguém iria me ouvir. E sempre antes de ir embora, as ameaças eram proferidas como se fossem canções de ninar. Comecei a me deleitar em pesadelos todas as noites, noites que ele vinha e nas noites que não vinha.

Duas semanas depois, perdi o controle. Me arrastei tanto para o fundo que não vi saída. Peguei uma faca na cozinha e sem mesmo pensar, cortei o pulso. A raiva foi me consumindo tão depressa que comecei a desferir golpes contra mim mesma. Varias e varias vezes. Só queria parar tudo. Parar de me sufocar em meus próprios pensamentos e dores.

Enquanto as forças do meu corpo iam se esvaindo assim como o sangue que saia dos meus pulsos, eu me peguei orando para que essa decisão estupida não tirasse a minha vida, mas me deixasse respirar de novo. Eu não queria morrer, eu queria viver. Queria tentar de novo.

Para minha surpresa e desespero do homem que me abusava, eu não morri ali. Mas ainda não estava me sentindo viva.
Mamãe descobriu o que seu namorado fazia no meu quarto a noite e ele foi preso. Mas prometeu voltar. 

E assim começou a busca por segurança, mesmo que ela fosse encontrada em outro homem fútil. 

PanoramaOnde histórias criam vida. Descubra agora