Já estava tudo arrumado. As detestáveis flores que fiquei surpresa por estar as admirando e meu caixão no fundo da sala, onde minha mãe permanecia olhando fixamente para mim, alguns amigos do trabalho dela dando uma espiada e lhe mostrando as condolências e outros curiosos que eu reconhecia da vizinhança onde nós morávamos.
Pedro não estava no recinto e eu não sabia o por que, mas descobri que gostaria de saber onde ele estava escondido.
Então, enquanto eu vigiava a porta principal para ver se meu padrasto entrava, outra pessoa entrou. Aquele que eu direcionei todos os meus pensamentos antes de acabar com tudo. Aquele que me fez hesitar por alguns minutos.
Mateus, aquele que foi meu melhor amigo e meu salvador em muitos momentos da minha vida. E o cara que eu amava.
Mateus e eu nos conhecemos no final do ensino médio, ele era uma pessoa popular e eu era a garota do fundo da sala que ninguém conversava. Até a chegada dele. Tínhamos muitas coisas em comum, foi fácil ser amiga dele, ele não fazia muitas perguntas e me dava o apoio que eu precisava.
Acabou que começamos a fazer o mesmo curso na faculdade, engenharia civil. Ele ama matemática e eu era boa nos desenhos e nas formas geométricas. Éramos perfeitos juntos. Até eu começar a me apaixonar por ele. Não estava nos meus planos. E sentir algo tão forte, me apavorou.
Eu nunca soube lidar com meus sentimentos. A maioria do tempo sentia medo e quando sentia algo além disso, me apavorava. Minha mãe já havia feito de tudo para me levar em psicólogos e psiquiatras. Mas toda vez que eu abria a caixa de pandora, eu perdia o controle.
Me acostumei a guardar tudo a sete chaves e viver o que eu poderia viver. E por causa desse medo irracional, acabei perdendo a amizade com Mateus.
Eu não queria o magoar, e foi isso que eu disse para ele. Mas na verdade, eu só não queria correr o risco de sair machucada de novo.
Mateus foi até o caixão e abraçou minha mãe. Ela amava o menino, sempre apoio minha amizade ou o que quer que tivéssemos depois disso. Dizia ela que ele poderia me fazer bem, me apresentar o amor que não machuca, mas fui covarde o suficiente para não acreditar nela.
- Me perdoe Mariana. - Choramingou ele nos braços de minha mãe. Ela apenas afagou seus cabelos assim como fazia comigo quando eu era pequena. - Não deveria ter deixado ela ir.
- Não teria nada que você pudesse ter feito querido. Sabemos como minha filha era teimosa.
Disse por fim.Os dois ficaram contemplando a companhia infeliz um do outro até Mateus convencer minha mãe a ir comer alguma coisa. Então era sua vez de ficar sozinho comigo e o corpo. E como todos ali faziam, ele tocou em minha mão fria e deu inicio a mais uma sessão de choro. Eu nunca tinha o visto chorar, nem mesmo no dia em que seu gato morreu. Ele me disse naquele dia que precisávamos nos acostumar com a ideia de que um dia tudo vai embora. E eu acabei indo primeiro.
Mais e mais pessoas foi chegando, se aproximando, olhando triste para a pobre garota, alguns até derramavam lagrimas. Eu conhecia algumas dessas pessoas, mas havia gente ali que só veio por curiosidade ou prestar as devidas condolências a minha mãe, conhecidos do trabalho. Era o que eu pensava, até que uma mulher abraçou Mariana tão forte e chorou com ela.
Nunca vi minha mãe se apegar a alguém como ela depositava toda sua dor nos ombros daquela mulher. Mais tarde, ela a fez sorrir, um sorriso triste, mas era alguma coisa. Então eu entendi. Minha mãe tinha amigos. E mais e mais pessoas foram se aproximando e ajudando Mariana em sua tristeza e luto.
Logo mais, Pedro voltou. Ele foi em direção a ela e a abraçou. Mariana recebeu aquele abraço como eu achei que nunca iria receber um abraço de um homem como ele. Ele falou algo para ela e minha mãe concordou. Os dois partiram para a sala de descanso deixando eu e Mateus, que permanecia junto ao meu corpo.
- Quando você desapareceu, Pedro me ligou. - Mateus começou fazendo carinho em minha mão e eu desejei mais que tudo poder sentir seu toque. - Você nunca disse nada sobre seu padrasto, então pensei que ele fosse um idiota. Mas depois de ouvir a preocupação na voz dele, me deixei pensar que talvez você só não tivesse dado uma chance a ele.
Mateus sorriu triste e abaixou a cabeça. Talvez eu não tenha dado uma chance para muita coisa durante a minha vida.
- A policia já estava atrás de você em menos de poucas horas que eles ficaram sem noticias suas. Eu achei que você estava naquele lugar, sabe. Onde só eu e você sabíamos como entrar e sair. Eu deveria ter falado para Pedro que você poderia estar lá, mas pensei que eu te acharia e resolveríamos a nossa situação.
Tentei tocar na mão dele, mas como esperado, não era possível. Meu coração, que não batia mais, se cortou em pedaços ao imaginar o que Mateus estava sentindo, do que ele estava se culpando. Eu queria falar com ele. Queria gritar que não era sua culpa, foi minha.
Mas ele não ia mais me ouvir. Meu melhor amigo estava se culpando por algo que eu mesma causei. Não era para isso acontecer.
- Eu achei que... - Ele sorriu e as lagrimas rolaram de seu rosto. - Eu te acharia olhando para o rio, perdida no seu mundo caótico enquanto algumas ondas se moviam com ajuda do vento que estava naquele dia. - Sua voz ficou embargada e rouca, o que me fez dar um passo para trás. - Achei que iriamos ter uma conversa tensa e esclarecedora, eu contaria que tinha me apaixonado por você e te beijaria. Eu realmente queria te beijar. Mas não foi desse jeito que aconteceu.
Eu queria sair correndo, por que se não fosse para abraça-lo e convence-lo de que ele estava errado, não sei o que eu poderia fazer. Eu nunca quis desistir. Nunca quis ver as pessoas que amo me vendo morrer, me vendo acabar com tudo. Eu só queria que tudo parasse. As lembranças, os pensamentos, a dor.
Queria ter dado uma chance para meu padrasto que parecia se preocupar comigo e com a minha mãe, queria ter ajudado mais a mamãe, ela estava sofrendo assim como eu, talvez, juntas encontrássemos um jeito de reconstruir tudo. Queria ter ficado um pouco mais naquela ponte, olhando as ondas que se moviam com o vento, ele teria me encontrado, iriamos ter uma conversa tensa e esclarecedora, ele iria falar que estava apaixonado e eu não iria fugir, eu iria deixar Mateus me beijar e depois eu o teria beijado de novo.
Eu queria ter aceitado a ajuda, queria ter pedido ajuda. Mas agora era tarde demais. Deixei o passado viver no presente e no futuro, deixei a dor comandar minha vida junto ao medo.
Todos que estavam ali sabiam meu nome, mas nenhum deles me conheciam. A maioria sabia que eu tinha tirado a minha própria vida. Desistido. Mas o que eles não sabiam era que eu planeja viver, mas perdi o controle mais uma vez.
*
Eu dedico esse conto para uma amiga querida que nunca desistiu, mas perdeu o controle de si própria. Gostaria de tê-la ajudado mais.
Aos que leram e chegaram até aqui, essas palavras não são para culpar ou julgar aqueles que já foram ou até mesmo aqueles que desejam ir. Essas palavras são uma tentativa de mostrar que a chuva forte passa. O sol vai nascer de novo. E as coisas vão melhorar. Eu prometo a vocês.
O próprio Senhor irá à sua frente e estará com você; ele nunca o deixará, nunca o abandonará. Não tenha medo! Não desanime!"
- Deuteronômio 31;8
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Panorama
Short StoryPara aqueles que estão tendo dias, semanas ou anos ruins. Para aqueles que desejam se destruir. Para aqueles que estão sofrendo um luto mergulhado em culpa e raiva. Para você que acredita que a tempestade vai se transformar em um vendaval e não pass...