Mizpá

25 1 3
                                    


"As mesma chagas que estavam espalhadas pelo corpo de Jesus, se achavam todas reunidas no coração de Maria"

(São Boaventura)

_______________


- Pai Nosso que estais no céu
Vem a nós o vosso reino
Seja feita a vossa vontade
Santificado seja o vosso Nome
Assim na Terra como no Céu
O pão nosso de cada dia nos dai hoje
Perdoai-nos as nossas ofensas
Assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido
Não nos deixei cair em tentação
Mas livrai-nos do mal - ajoelhada e de mãos juntas a frente de si, Roxanne conteve um espirro. Sempre fazia frio durante as horas mortas da noite, mas aquela em especial parecia anormalmente congelante. A brisa noturna entrava pela fresta da minúscula janela do quartinho, arrepiando cada pelo de seu corpo por baixo do lençol fino. Lembrava de já ter visto sua mãe reclamar várias vezes sobre aquela mesma janela emperrada. À maneira dos mais antigos, a menina se benzeu, com todo o fervor que seus 115 centímetros de altura poderiam lhe permitir - Amém.

E tudo ficou quieto de repente.

Não sabia há quanto tempo estava ali. Mas, olhando pelo vidro embaçado da janela acima, tinha certeza de que não estava tão escuro quando sua mãe a colocou no quartinho. E não estava tão silencioso lá fora.

Também não tinha ideia de quanto mais tempo deveria permanecer em seu castigo. Mais alguns minutos? Mais algumas horas? Só sabia que permanecer de joelhos era agora um suplício. Os ossos de suas pernas doíam. Suas costas doíam. E estava cansada de repetir a mesma coisa, vez após vez, dezenas de vezes seguidas. Não conseguia entender como os adultos conseguiam fazer aquilo parecer tão fácil. Será que eles não sentiam dor, como ela e as outras crianças? Pensou em como seria bom se levantar e sair daquela posição dolorida, mas sabia que não podia fazer isso.

Olhou para as tiras arroxeadas em suas coxas magrelas.

A mamãe nem sempre é perfeita.

Erguendo os olhos, observou sem expressão o pequeno altar com a imagem da Virgem com o pequeno bebê Cristo nos braços. A imagem a encarou de volta, os olhos parados. Antes, sua mãe sempre contava histórias sobre como a Virgem havia tido uma criança perfeita, tão perfeita que nunca precisou da ajuda de um homem para fazê-la, um bebê que era "a imagem e espelho de Deus". Por isso, tanto tempo depois, as pessoas ainda construíam estátuas, pintavam imagens e faziam orações para ela. A menina costumava gostar dessas histórias, cheias de santos e anjos.

Mas agora, presa naquele lugar, olhando o sorriso esculpido naquele rosto vazio, era um outro sentimento que tomava forma.

O coração pesado, como se alguém tivesse abrido sua barriga enquanto dormia e a enchido de pedras. A respiração falha. Os arrepios em sua coluna. O ar estagnado, como se, assim como ela, ele também esperasse por um final ruim.

Como no dia em que viu sua irmã cair das escadas desde o primeiro andar.

O dia que seus colegas a trancaram no banheiro escuro do colégio, quando não havia ninguém por perto.

O dia em que sua mãe se afogou com vômito no sofá da sala.

Ou o dia em que seu pai desceu aquelas mesmas escadas e passou pela porta, há muitos meses atrás.

Ela já havia experimentado as mesmas sensações antes.

Sozinha frente à Santa, a menina sentia medo.

- Mamãe? - chamou, ainda de joelhos - Eu já posso sair? Eu vou me comportar - sem ousar sair de sua posição, Roxanne virou-se devagar na direção da porta fechada. Imaginou se sua mãe ainda estaria ali, atrás da porta, escutando suas orações sussurradas - Eu não vou mais mexer nas suas coisas. Eu prometo... tá bom? Eu já posso sair, por favor? - Roxanne observou a porta ansiosa, esperando por uma resposta que não veio - Ma... mamãe? - choramingou - Você ainda tá aí?

Leucochloridium ParadoxumOnde histórias criam vida. Descubra agora