Capítulo Único de "Um Salto Da Alma".

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          AO som de La Bohème de Giacomo Puccini, meu corpo fraquejara-se naquela melodia: percebi o meu coração latejar e o suor tornar-se tão gélido quando o pé estremeceu, tal como as mãos e a visão turvara num breu embaçado. Apesar de tudo, consegui manter-me diante daquele abismo nas piruetas e controlei-me para não cair no centro de patinação francês, repleto de arquibancadas e uma extensa pista.

          — A perna entortou-se. Repita cinco vezes a música. — ecoou em meus ouvidos a rouca e alemã voz da treinadora Meryl, enquanto eu alisava o meu uniforme e o coque ruivo incontáveis vezes.

          — Minha pressão caiu. — Vacilante, defendi-me.

          — Isso não é desculpa, senhorita Herstmann. Como representará a nação alemã caso sequer consegue piruetar? — Ao escutar, meus olhos marejaram silenciosos e evitei encará-la: — Cinco não, repita sete vezes. Até piruetar perfeitamente!

          — Ma… Mas já são onze horas, trainer! — Um repentino arrependimento alcançou-me quando os seus olhos castanhos tornaram-se cruéis às minhas palavras.

          — Dez vezes. Repita dez vezes. — Após pegar a sua bolsa da Dior num apoio próximo, retornou a mim estressada: — Irá desapontar a tua treinadora? Tua equipe e a tua nação, Herstmann? Também irá desapontar Gerhard? — Quando escuto o nome de meu pai, nego sem hesitação. — Ótimo.

          Ela retirou-se e logo constatei a desdenhosa expressão de meu pai sobre mim numa arquibancada, com a casaca de pele e sua bengala prateada. Retornei ao rinque exausta e remoendo as lágrimas.

          Às seis e meia da manhã eu já patinara outra vez e, portanto, aquelas pouquíssimas horas de sono atormentavam-me cada vez mais — assim como todo o meu estresse e a ansiedade.

          — Terá que repetir os saltos com exatidão. — ordenou Meryl, prendendo os fios grisalhos num coque.

          — Eles são difíceis.

          — Difíceis para os amantes da patinação, já tu deve fazê-los de maneira divina, só assim os jurados e os espectadores te admirarão como os romanos à deusa Vênus. Entendeu? — “Vênus”… Uma súbita memória dum passado não tão distante perambulara a minha mente: Vênus, uma liberdade momentânea.

          Apenas concordei com ela.

          Passaram-se as horas quando meu pai e eu dirigíamos ao Hôtel Million após acabarem os treinos. Apesar de olhar aquele céu penumbroso do carro, a esbelta Vênus e um resquício da liberdade vagara em minha cabeça.

          — Gute nacht, vater¹ — cumprimentei meu pai antes de adentrar em meu quarto, mas nem olhara para mim. Repeti, mais alto: — Gute nacht, vater.

          — Gute nacht apenas aos excelentes profissionais. Hoje fora apenas desprezo. — disse e entrou em seu quarto, deixando-me só com as minhas lágrimas que saíam inevitáveis. Tentei me controlar naquele oceano lúgubre, mas a cada segundo afundava-me em suas profundezas.

          Só percebi a presença do camareiro com pele de oliva e cabelos negros e quando o vi estatelado, de olhos arregalados e as bochechas rubras e gordas.

          — Gute na… Désolé, bonne nuit². — disse ainda fragilizada.

          — Bonne nuit mademoiselle. — Com o carrinho nas mãos, sumiu acanhado nos corredores.

          Quando finalmente entrei, tranquei novamente a porta e só então debrucei-me à cama. Não se havia lágrimas, apenas um vazio sobre o peito e o som do relógio no silêncio.

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