Capítulo 1

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12 de junho de 1631
23h37m

Vejo minha própria mãe sendo queimada na fogueira pela Igreja; Talvez se eu tivesse matado o meu pai antes dele ter denunciado-a de bruxaria, não estaríamos nessa situação. Nesse momento não consigo pensar em mais nada, somente em chorar e aceitar.
Começou a chover...será que é Deus? Talvez nem mesmo ele deva ser tão impiedoso quanto aqueles que se intitulam "seguidores do Rei". Sinto uma conexão com essa chuva, é como se eu a tivesse pedido. O fogo se apagou e o sofrimento de minha mãe se estagnou... porém minutos depois a enforcaram sem piedade.Não gosto nem sequer de pensar no fato de poder ser uma bruxa, porém já estou sendo vigiada por conta da cremação de minha mãe.
Ela me falou que os sinais de bruxaria começam a aparecer a partir dos 15 anos, porém tenho 16 e ainda não me ocorreu nada do tipo, é o que me dá esperança de viver ainda, não tenho certeza se eu ainda iria querer estar viva ao saber ser bruxa, um suicídio seria melhor do que um enforcamento ou uma cremação da Igreja Católica.

13 de junho 1631
08h32m

Acordo com um barulho vindo da porta de entrada, meu pai acabara de chegar. Ele pergunta:
-Dormiu bem? fedelha!-Encaro ele com todo o ódio que jamais senti em toda a minha vida, seus olhos começam a ficar obscuros e a sair sangue de seu nariz e de sua boca-PARE COM ISSO!!
Me espanto com sua voz e acabo percebendo o que fiz, não querendo acreditar e completamente imóvel. Depois de voltar ao normal e limpar seu rosto, ele continuou com uma voz maliciosa:
-Se não quiser ter o mesmo destino da prostituta da sua mãe, terá de fazer o que eu mandar!!-Ele se retira satisfeito em ver o efeito que uma simples frase desencadeou em mim.
Sou um de seus brinquedos sexuais que ele mais gosta, mas não penso nisso agora, só consigo pensar no que minha mãe falava sobre o despertar da alma de uma bruxa. Ainda não consigo acreditar no que aconteceu: quase o matei...o que poderia me impedir de mata-lo quando chegar?...se encontrarem o corpo com as marcas de bruxa, terão provas o suficiente para me condenar. Se eu fugir, ele contará à Igreja que sou uma...Isso não pode acontecer, eu não tenho saída.

17h21m

Hoje é dia de ir a feira comprar legumes para o jantar, por onde eu passo as pessoas me olham torto...não que eu me incomodasse, porém eles nem disfarçam. Faltando somente o repolho, vou até a tenda de dona Zélita, é uma senhora na casa dos cinquenta anos que tenta se vestir como uma dama, porém falha miseravelmente. Ela me cumprimenta:
-Boa tarde Aurora!-Confio muito nela, percebo que mesmo depois da morte de minha mãe seu jeito não mudou nada comigo-O de sempre?
-Sim, por favor senhora Zélita, muito obrigada!-Ela se aproxima de mim sorrateiramente e cochicha no meu ouvido:
-Cuidado com eles querida, se precisar de qualquer coisa é só me falar-Ela se afasta com um sorriso de orelha a orelha-É por conta da casa!
-Não sei como agradecer a senhora... Preciso voltar para casa, se não ele ficará irritado como a senhora sabe.
-Aquele tarado asqueroso! Me arrependo agora de não ter posto veneno no repolho dele-Sua risada é como a de uma bruxa, porém nunca tive a ousadia de perguntar se ela era "normal".
Volto para casa pela estrada lamacenta da chuva, em meio aos meus pensamentos cogito no suicídio que pensei na noite anterior. Zélita ficaria arrasada, porém temo que ela entenderia a minha situação, não sei se devo contar a ela o que aconteceu...talvez hoje de noite eu vá a sua casa esclarecer o que está acontecendo.

22h02m

Chegando na casa da senhora Zélita percebo que não há a presença dela de imediato, sua casa é uma cabana no meio da Floresta de Elvegore distante da Cidade de Kalates. Uma cabana bem cuidada de madeira escura, porém não há iluminação dentro naquele momento. Mesmo assim decido entrar, sinto que não posso esperar por mais muito tempo, depois de passar pela sala e pela cozinha vejo uma porta que leva para o porão meio aberta, pressuponho que ela esteja lá. Desço as escadas que rangem a cada passo e vou em direção à uma luz amarela no fim do corredor escuro. Me defronto com uma sala aconchegante com almofadas e tapeçarias exóticas, Zélita está sentada em uma cadeira com detalhes estranhos, tomando um copo de um líquido verde. Ela me convida a se sentar com ela, caminho até a mesa com uma bola de cristal reluzente de luz amarela em cima. Me sento e somente agr percebo o aroma do ambiente, algo que jamais senti...um doce sucinto se propaga no ar. Então pergunto:
-Não entendo como que pode existir um lugar tão fantástico em uma cabana no meio da floresta?
-Obrigada pelo elogio minha flor de lótus-é um apelido peculiar que ela designou para se referir a mim-Não vejo a hora para começarmos.
-Começarmos o que exatamente?-Eu não consigo entender...como uma tia que vende repolho consegue ser tão misteriosa assim? Porém logo lembro o real motivo da minha vinda.-Eu preciso contar algo para a senhora.
-Se me disser que é uma bruxa, irei direto para a Igreja lhe denunciar-Nesse momento fiquei tão imóvel e dura quanto uma pedra-É claro que estou brincando!-Novamente a sua risada de bruxa reconhecível à 5km-Eu nunca entregaria uma de nós.
Nesse momento eu não sabia o que sentir, felicidade por estar certa e ter alguém que me entende? Talvez, mas naquele momento eu precisava de sua ajuda para uma coisa:
-Quero queimar a Igreja-Um silêncio se instaurou na sala durante 23 segundos. Finalmente Zélita pergunta:
-Seu rancor por Deus é tão forte assim?-com alta voz de indignação começo:
-Não é por Deus que tenho rancor, e sim por aqueles que o seguem! Ele acharia uma chacina tudo isso. Queimar injustamente pessoas por apenas elas serem o que elas são.
-Muito bem então, e você quer a minha ajuda para isso? Creio que não será possível minha querida, eles são muitos-Eu conseguia de alguma forma ver em seu rosto que ela sabia de uma maneira de acabar com a Igreja-porém percebo que não conseguirei mentir para você, bruxas são mais aguçadas em perceber mentiras. Aurora, você não tem o mínimo preparo e não faz parte de nenhum Coven de bruxas...sabe como isso acabaria.
-Não me aquietarei até ver o sangue deles ser jorrado perante a mim-Zélita olhou para baixo na mesa fixamente na bola de cristal.
Esqueci completamente da existência da bola de cristal na minha frente e começo também a olhar para ela. Zélita continua:
-Bruxas possuem suas particularidades, afinidades com algum ramo na magia, eu nasci com o dom da vidência-Sinto que muitos já fizeram essa pergunta para ela e que talvez deva ser um incômodo, porém não consigo me conter, então pergunto:
-Consegue ver o meu futuro?-Zélita me olhou com desgosto, porém eu já esperava, deve ser entediante ouvir isso de muitos.
Um "não" seco é o que recebo, talvez eu merecesse. Zélita para suprir a minha curiosidade, explica o motivo:
-Eu conseguia ver futuros com mais clareza quando era mais jovem, hoje só consigo ver através dos meus sonhos lúcidos, inclusive evitei que uma praga comesse os meus repolhos a algum tempo (a praga que ela se refere é um menino de 10 anos).
-O que faço Zélita? hoje mais cedo quase matei o meu pai, quase comprometi a minha vida...
-Um Coven de bruxas reside no oeste da Floresta de Elvegore, procure elas, vão lhe ensinar o básico e talvez lhe ajudar no seu objetivo ambicioso. E leve consigo este colar-é um colar bem feio com aparência desgastada, Zélita percebeu a minha cara de repulsa-apesar de não ser um dos colares mais bonitos da cidade, tenha certeza de que será muito útil à sua pessoa.
Conversamos por mais um tempo e Zélita me contou histórias incríveis de sua juventude (eu achei incrivelmente desinteressante), então voltei para casa antes que fosse tarde.

14 de junho de 1631
15h27m

Decidi ir para o oeste da Floresta de Elvegore às 18h. A partir do momento que meu pai perceber o meu desaparecimento, ele irá denunciar à Igreja que sou uma bruxa...é um caminho sem volta, serei uma fugitiva.
Ele me pediu para pagar o Matias pelo trigo de hoje mais cedo, usarei como pretexto para sair. Matias é um homem que possui grandes plantações, porém seu ego é igualmente grande, ele foi um dos homens que ajudou a matar a minha mãe, o homem o qual deu a ideia de enforca-la após a chuva ter apagado o fogo. Ele é um dos primeiros na minha lista a ser cremado ou dolorosamente torturado.
Zélita me aconselhou a pegar um fio de cabelo de meu pai antes de fugir e escolher o seu destino, ela disse que eu poderia jogar no rio e afoga-lo ou jogar no fogo e queima-lo. Não acredito que eu tenha capacidade para realizar esse "ritual" se é como devo chama-lo, porém mesmo assim sigo o seu conselho. Esperei ele adormecer e retirei um fio de cabelo castanho de sua cabeça horrenda, guardei em um saco de pano juntamente a um papel onde Zélita escreveu o que devo recitar para se concretizar a morte de meu pai.

18h00m

É hora de partir, me preparo e levo comigo uma bolsa de pano com roupas velhas, moedas roubadas do meu pai e o colar que Zélita me deu. Ele acorda e me pergunta antes de sair:
-Por que a bolsa para apenas pagar o Matias? Planeja fugir de mim?!-Eu não esperava que ele fosse acordar agora, me recomponho para lhe responder.
-Levo apenas o dinheiro para pagar ele. Eu não teria coragem de sair da cidade...
-É claro que não teria! Você é uma covarde como a sua mãe, uma bruxa como ela, que deve apodrecer e se decompor no fogo do inferno-Saio apressadamente da casa, porém já me acostumei com os seus insultos, lembro das noites em que eu tinha 11 anos...noites em claro chorando olhando para a lua cheia, olhar a lua era o que fazia eu me sentir melhor.
Na saída da Cidade de Kalates vejo passando Matias, porém passo reto por ele. A Floresta de Elvegore é conhecida por ser o lar das bruxas, o lugar onde se escondem, mas ela é tão grande que de algum jeito não conseguem acha-las...acredito que conheço qual é esse jeito.
Começou a escurecer, gostaria de ter vindo mais cedo, porém só dava este horário do anoitecer. Sinto sempre estar sendo vigiada por alguém, imediatamente retiro da bolsa o colar que Zélita me deu, ela me explicou que é um colar de proteção que ao usá-lo não poderiam triscar um dedo em mim até chegar ao meu destino, porém duvido ainda sobre sua eficácia, poderia um colar tão feio ser tão milagroso assim?
Ao colocar o colar senti uma sensação estranha, porém boa, era como se eu sentisse as minhas veias sanguíneas circulando pelo meu corpo e um sentimento de segurança. Continuei caminhando em direção ao oeste em busca de qualquer sinal de bruxas.

22h09m

Estou caminhando a horas e ainda não encontrei nada, preciso me apressar, provavelmente meu pai já deve ter estranhado a minha demora. Se eu não conseguir acha-las nas próximas horas, vão me caçar e serei morta como a minha mãe.
Vejo um vulto a quase 40 metros, será que é uma bruxa do Coven? Ou será que é um caçador de bruxas? Corro atrás da pessoa desconhecida, porém perco ela de vista, de alguma forma ela sumiu. Escuto um sutil som estranho que nunca escutei, corro em direção ao som e me defronto com um portal de pedras escondido com alguns desenhos gravados nas mesmas. Com certeza deve ser a passagem do Coven, Zélita me disse que os desenhos poderiam ser runas e que devo ativa-las para entrar, ela não me disse como ativar, disse que eu saberia quando chegar a hora...só que eu não sei.
Tento atravessar o portal de pedras esperando ver do outro lado...não sei o que esperar ver do outro lado. Talvez um feito de magia para ativa-lo, porém não sei nem o básico ainda...talvez eu deva adiantar a morte de meu pai e começar o ritual.
Se eu acender fogo no meio da floresta chamará atenção e revelarei minha posição, então decido afoga-lo, cavo perto do portal um buraco para prosseguir, encho de água e retiro da bolsa o fio de cabelo e o papel escrito por Zélita. Jogo o fio de cabelo na poça de água e começo a ler o papel:
-Occide, anima, mortem, merge-Repito sete vezes. Sinto minha boca ficar seca a cada palavra recitada, fecho os meus olhos e vejo o meu pai, como se eu estivesse sonhando acordada, ele está caminhando em direção ao rio aparentemente inconsciente, adentra no rio e não consigo mais vê-lo.
Depois de anos, acabou. Nunca me senti tão melhor na minha vida, agora, com certeza virão atrás de mim. Percebo que uma luz amarela sai das runas cravadas nas pedras, sua luz é ofuscante. O portal se ilumina e se abre, o que será que há atrás dele? Quantas bruxas há no Coven? Irão me ajudar a matar eles? Passo pelo portal e minha visão fica turva, embranquecida, e sinto um sentimento de acolhimento que jamais senti.






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