Capítulo 4

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Minha sogra me esperou ansiosa, parecia não saber o que fazer ou falar quando me viu com o apertado vestido preto que ia até meus joelhos, as mangas 3/4 deixando ele parcialmente modesto para a ocasião.

- Um pouco demais para uma igreja? - questionei quando pela segunda vez ela olhou para minhas pernas - posso colocar calças e blusa de frio.

- No calor que está? - ela desdenhou com a mão - você está linda, quando colocar o véu ficará ainda mais, sentaremos no fundo e ninguém verá suas pernas.

Sorri agradecida e a acompanhei para fora, na curta caminhada até a igreja ela conseguiu falar sobre tudo que eu precisaria decidir para um casamento de princesa, me oferecendo o salão da igreja para nos casarmos e me convidando para provar vestidos no próximo dia. O calor sufocante do sol em nada se comparava com a sensação de asfixia que eu sentia quando ela estava extremamente animada com algo, era como uma criança segundos antes de abrir os presentes de natal após engolir um pote de pirulitos doces.

Quando avistei a linda paróquia notei que éramos umas das primeiras a chegar, suas torres ponturas altas e o enorme sino pronto para tocar e avisar a todos quando a missa fosse começar. Entramos na igreja, os nossos passos ecoando no silêncio pesado. O cheiro de incenso me envolvendo, misturado ao som distante de uma música suave, como se em algum dos cantos profundos do lugar alguém tocasse um piano. As velas tremulavam no altar, lançando sombras nas imagens dos santos, mesmo com o sol claro do lado de fora, por dentro parecia etérea, quase mística. Cada detalhe parecia familiar e, ao mesmo tempo, estranho. Meu peito apertou ao olhar para o confessionário, onde tantas vezes fui em busca de paz quando mais nova, uma prática abandonada talvez na faculdade, ou foi antes? Agora, tudo parecia distante, quase irreconhecível, como se eu não pertencesse mais aquele lugar e as práticas que tinham ali.

Poucos fiéis se espalhavam, encontramos um lugar confortável ao fundo da igreja e nos sentamos, minha sogra me entregou um véu e eu o vesti desajeitada, aproveitando quando ela fechou os olhos para orar para observar mais do local. O sino baladou e a igreja pareceu sentir em suas vigas o som correndo para chegar até nós e todos os outros do lado de fora, atraindo mais pessoas a entrarem e se sentarem. Sutilmente percebi que a maioria dos homens se sentaram ao fundo enquanto a frente se tornou um abarrotado de mulheres ansiosas por algo, olhando para o altar como adolescentes prestes a ver cantor favorito subir ao palco.

O piano parou, toda a congregação se silenciou, uma doce criança subiu próxima ao altar e com a voz mais angelical que já ouvi entoou uma Ave Maria, a voz dela ocupando o lugar que o barulho do sino antes estava, os acordes dos músicos subindo em sintonia perfeita. De trás do altar um homem subiu as escadas, seus cabelos pretos e levemente ondulados chegando até pouco abaixo de seus ombros, seus olhos afiados analisando a congregação e categorizando se todos os fiéis que conhecia estavam ali, mesmo com o maxilar apertado dava para ver sua satisfação em ver a casa cheia. As roupas escuras desciam até ao chão, ao contrario da maioria dos padres que usavam as roupas claras na missa, padre Vergil usava um terço de ouro amarrado em sua cintura e em seu pescoço uma moeda de ouro estava pendurada.

Ele não precisou falar muitas palavras para prender a atenção de todos no texto bíblico que ministrava, me vi falar "amém" instintivamente com toda a congregação nas pausas prolongadas que dava, não posso dizer em que momento mergulhei, mas como um diabo-negro desci profundamente desligando a luz que capturaria qualquer que pudesse atrapalhar minha visão dos escuros olhos dele. O movimento coordenado das mãos, a postura adequada, até mesmo o timbre de seu tom parecia algo fora dos padrões humanos, atraindo tudo ao seu redor.

Exceto por um momento, quando um grito rasgou o véu e fez com que todos saltassem em surpresa. O timbre fino, afiado e irregular correu pelas paredes não deixando que ninguém soubesse sua origem, minha sogra agarrou minha mão e se colocou mais perto, me virei tentando entender o que estava acontecendo quando pessoas correram dos últimos bancos, se agastando como se a peste estivesse entre nós.

E ela estava.

Na forma de uma mulher suja, com dentes amarelhos e cabelos desgrenhados, os pés descobertos e o fino vestido encardido que usava rasgado na barriga e costasd, como se ela tivesse tentado sair de dentro da peça, mas na verdade acabou ainda mais emaranhada no esquema de alças e retalhos.

A mulher endemoniada gritou no corredor da igreja ainda mais alto, muitos fiéis se levantaram na frente e como em uma onda todos se afastaram, mas minha visão estava presa nos movimentos de Vergil, eram de calculados e rápidos, movimentos de um profissional. Eu não conseguia me afastar com eles, mesmo quando minha sogra se levantou e tentou me levar com ela, desistindo após dois puxões leves. Com um assobio ele fez o demônio o olhar, em um rápido movimento de sua mão esquerda o terço que estava em sua cintura se soltou e se enrolou em seu punho fechado, apenas a cruz de ouro pendurada, ele apontou os dois primeiros dedos de sua mão direita para ela e a viu se contorcer enquanto se abaixava de joelhos no meio da congregação, em uma posição subjulgada e forçada, como se ela lutasse com uma parede invisível que a forçava a se curvar, acompanhando o lento abaixar de seus dedos.

Com baixas palavras em latim pareceu que ele ordenou que o demônio saísse e diante dos olhos de todos o rosto da mulher foi ao chão, seu corpo cedeu mais leve, quase vazio, enquanto ela respirava suavemente. Uma casca que o que quer que estivesse ali antes usou para tentar atrapalhar o seu sermão.

Ele expulsou o demônio com apenas meia dúzia de palavras.

Meu corpo inteiro se arrepiou e eu não conseguia parar de o encarar. Seus olhos encontraram os meus e varreram meu rosto, dois servos sairam do altar e gentilmente carregaram o corpo da mulher por uma porta lateral, alguns dos fiéis voltaram em seu caminho enquanto outros se aconchegavam mais distantes, ele se virou e voltou para o altar dando uma única respiração profunda antes de voltar ao sermão com palavras ainda mais leves que antes, encantando todos, mas não eu, eu o encarava e recebia seu olhar de volta me mostrando que sabia que aquilo me afetará.

Ele estava em um estado de espera, talvez esperando que eu me levantasse e corresse, percebi isso porque no último amém todos se levantaram para se abraçar e se despedir, eu ignorei a todos ao meu redor e caminhei com pressa até o altar, seus olhos levemente em alerta por minha aproximação repentina.

- Olá, padre - o saudei com a voz em um fio, vendo seu rosto se fechar em uma carranca.

- A missa acabou, senhorita - ele fechou sua biblia e a colocou abaixo do braço esquerdo, fazendo uma mençao para se virar de voltar para os fundos do altar e a, agora então percebida, porta que ali estava.

- Eu vi o que fez - sussurrei - com a mulher endemoniada.

- Sim, eu a libertei - ele parou, esperando que eu falasse algo mais.

- Jesus... - foi a única coisa que conseguiu sair dos meus pensamentos confusos.

- Sim, ele também estava lá - ele finalizou seu ato, com um movimento ainda mais organizado que os outros prendendo sua cruz de volta ao redor de seu manto, deixando suas costas completamente viradas para mim - mas fui em quem fiz o trabalho pesado - fiquei desajeitadamente parada e sozinha, sem conseguir processar o tom de suas palavras, quando ele caminhou de volta.

- Você está bem? - minha sogra perguntou ao se aproximar.

- Estou - sorri desajeitada - eu acho que não estava preparada para essa missa.

- Deus, minha doce menina, tem formas estranhas de agir - ela pasou seu braço pelo meu e me guiou para a saída - eu te disse do padre, não disse?

Sim, ela disse, mas o que descreveu em nada se comparou com a magnitude do homem que vi professar. De fato, ele não se pareceu com nenhum padre que eu já havia conhecido.

O Homem SantoOnde histórias criam vida. Descubra agora