Capítulo 1

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— É uma questão de humanidade. — Diz Lara — Não sei se entende, é um sentimento um pouco infantil.

Eu já havia parado de prestar atenção há muito tempo, provavelmente no segundo diálogo. Estamos na minha casa, duas semanas e 4 dias para voltarem às aulas. Por dentro, há um fio de excentricidade minha por isso, mas nada que transpareça.

Durante o primeiro mês das férias — e mais um pouco, Lara passou todo o tempo em oficinas e ensaios após ter conseguido um papel em uma peça de um grupo local, parcialmente conhecido. Desde então, não a vejo falar de qualquer coisa que não seja ligada a teatro, drama e o seu incrível papel de quaseprotagonista, como ela dizia.

Minha mãe, desde que me assumi trans, vive dizendo que sonha com quando eu me tornar uma pianista, atriz e bailarina de sucesso e que vá para a França (especificamente França) fazer minhas apresentações para que todos vejam sua progenitora talentosa brilhar, numa forma de mostrar que me apoia.

Eu sou um desastre quando o assunto é dança. Por isso (e alguns outros, vários motivos) nunca participei de uma festa sequer: porque sabia que seria arrastada por alguém em instantes para alguma pista cheia de adolescentes dançando. De tão ruim que eu sou, com muito esforço, minha mãe se rendeu ao meu com-certeza-não-talento e me deixou largar as aulas. Desde este dia, nunca mais ousei dançar novamente.

Nunca gostei de teatro. Na verdade, odeio qualquer coisa relacionada a teatro. Filmes, peças, apresentações escolares, odeio tudo. Uma pena é que não sou tão ruim assim em atuar. Eu sempre fui acostumada a mentir. Mentir não ser mulher, mentir não ter quebrado um copo, etc. No começo, mentia mais por defesa; agora se tornou um hábito. E, no fundo, é isso: teatro é a arte de mentir. Claro que não sou uma das melhores atrizes. Não é algo pelo qual dedico o tempo necessário, e sinto uma enorme preguiça toda vez que participo de qualquer peça, resultando num personagem completamente indiferente. Mas ainda tenho potencial para fazê-lo, infelizmente.

A única coisa que posso me considerar boa, é piano. A minha mais profunda paixão, desde que me entendo por gente, foi o piano. Não sei exatamente o que me fascina, mas há algo mágico e fora do normal nos sons que emite. A música é a coisa mais poderosa que já passou pelas minhas mãos. Sentada em frente ao piano, sou capaz de fazer com que uma multidão inteira ria, chore, se anime, se emocione, se enraiveça... A música é um exercício oculto de metafísica no qual o espírito não sabe que está filosofando. Com as teclas em mãos, não sou diferente de um coronel ao comandando um exército. Talvez isso não faça sentido, e eu não duvido, mas não acho que o amor deve fazer algum sentido; existindo, já basta.

Ver Lara ensaiando seu roteiro me deixa frustrada. Como amiga, deveria sentir orgulho. Mas não consigo. Não quando a vejo fazendo algo que ama tão bem, e que eu odeio sendo uma completa catástrofe, e ainda faço contra a minha vontade. Talvez devesse tentar me esforçar no quesito atuação, mas realmente não consigo imaginar algum jeito de que isso me leve a um bom caminho, sem me deixar insana antes.

Sou arrancada a força de meus pensamentos pelo abraço mais apertado e cheiroso que já recebi.

— Eu tô tão feliz! — Diz para mim em meio a um gemido excêntrico — Você vai poder me ver, né? Eu nunca conseguiria passar por uma situação dessas sem você para me dar forças!

Imediatamente me sinto culpada. Culpada por ser a pior amiga do mundo; culpada por ser uma péssima filha; culpada por ser horrível na droga do teatro.

— Hum, claro — Respondo, com a voz abafada por ainda estar sendo esmagada por Lara, e me sinto como a maior cara de pau do universo por ousar falar com ela.

17 Dias em MetrônomoOnde histórias criam vida. Descubra agora