Anoitece, e o negrume das trevas da noite cai mansamente sobre parte do firmamento. O alarido dos pássaros anuncia a volta para os seus ninhos em mais um final de dia. A angústia descia em minha garganta como um caldo espesso e espinhoso até chegar ao vazio do estômago nauseado. As lembranças dolorosas e recentes bombardearam minha mente sem que eu pudesse ainda digeri-las.Fui até a varanda para contemplar da janela a despedida dos últimos raios de sol no horizonte. A luz finda e me deixa sem guia. A alma triste e aflita encobre-se com o véu soturno da tenebrosa solidão.
O silêncio sepulcral indicava a falta de qualquer alma viva por perto na antiga casa que herdei de minha tia. Distante de tudo e de todos, a morada ficava nos confins da cidade embrenhada na mata. Sem wi-fi, sem luz e sem ninguém. Apenas memórias a serem revisitadas, queimadas e depuradas.
A casa era nutrida de quadros pintados e esculturas de tia Eleonora e estes ganhavam vida com a luminosidade das velas e lamparinas que os distorciam deixando o espaço interior ainda mais sinistro. O fogão de ferro, a lenha à espera para guarnecer a vivenda, o calor das comidas, o vapor das chaleiras e o chá de artemísia na xícara de porcelana para aquecer as mãos frias.
Lembrei de sua risada larga e poderosa, de suas histórias aterradoras e das estranhas coisas presenciadas jamais compreendidas. “A casa – gostava de dizer minha tia – tinha vida”. Conversava com coisas invisíveis que lhe faziam companhia. Não sei ao certo o que presenciava quando o breu se achegava. Na madrugada escutava a vassoura varrendo a sujeira sozinha. Tia Eleonora dizia que era o espírito da antiga moradora que ajeitava a vivenda para o dia seguinte.
Não fosse um dia corriqueiro apenas, quando me preparava para fazer a janta indo em direção à cozinha, fui surpreendida por um estrondo na porta da frente que ressoou forte e abafado aos meus ouvidos. Por um momento achei que era um golpe de uma batida desesperada de ajuda e meu coração fisgou pela tensão causada pela pancada. A racionalidade tentou achar desculpas para não me deixar levar por um medo tolo.
Desviei meus olhos caminhando até a porta e de sua vidraça nada pude enxergar, apenas um líquido vermelho escuro e espesso gotejava da parte superior do lado de fora. Congelei por alguns instantes sem saber o que faria. Ou abriria a porta para saber o que havia acontecido, ou deixaria de lado essa hipótese, me mantendo protegida de qualquer coisa que fosse. Independente do temor, minha curiosidade foi maior, e, com a lamparina em uma das mãos, girei a maçaneta devagar para não fazer nenhum barulho. Me sentia desprovida de qualquer proteção, mas tinha a sensação de que tudo não passava de um exagero. Abri.
No lado de fora tudo parecia estar normal, aparentemente. Olhei para frente e pude ver que o negror da noite já havia tomado todo o céu e a lua cheia se escondia por entre as nuvens cinzas e sobrepostas.
Percebo, no entanto, que um som incomum, como um grunhido de gato, ecoou da densa escuridão, me deixando em agonia e pavor. Lancei com o braço a lamparina para fachada da casa, tentando identificar de onde vinha aquele estranho ruído. Depois de inspecionar a varanda com a fraca luminosidade da lamparina, senti um odor forte que me entrava às narinas. O cheiro de metal ferroso e pútrido me fez perceber o que estava abaixo de meus pés no tapete de entrada: uma ave preta caída com uma grande ruptura em seu peito expondo suas entranhas, vísceras e o seu coração que ainda batia aceleradamente. Me posicionei em sua frente colocando a lamparina ao lado de seu corpo segurando a ave em minhas mãos cuidadosamente.
Na mesa da sala, alcancei o pano de prato para envolver a ave que fora deixado amarfanhado e úmido sobre o espaldar da cadeira. Em seu olhar até o momento vicejava um pequeno ponto luminoso e cálido que ia se apagando sob as pálpebras esmorecidas. Pouco depois o coração da ave começou a ceder, como sinos pendulando sem qualquer som até encontrar o centro de repouso.
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PORTEIRO DAS SOMBRAS
Short StoryO conto se insere na narrativa de causos obscuros em cidades do interior do Rio GrandedoSul. Um acontecimento quebra a normalidade de um dia. Em uma casa antiga e desolada, uma pancada à porta faz a curiosidade despertar junto ao desconforto de ouvi...