Capítulo 1 - Antes

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"Escrever é terapêutico", assim falou minha psicóloga em uma de nossas sessões

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"Escrever é terapêutico", assim falou minha psicóloga em uma de nossas sessões. "Escreva como se quisesse falar com alguém, como se precisasse contar, externar sensações, sentimentos." Oras, eu lá queria falar com alguém? Nem mesmo com ela... não ainda.

Teimei, resisti como uma criança travessa e emburrada que se nega a fazer uma tarefa solicitada pelos pais: "Arruma a cama", "escova os dentes", 'ah, que saco!' Mas escrevi mesmo assim. Iniciei com textos bobos, sobre coisas aleatórias, como por exemplo, o peixe-remo que, segundo dizem, é capaz de prever terremotos e maremotos. Escrevi três páginas sobre o tal peixe e entreguei-as à psicoterapeuta que me olhou com uma decepção mal disfarçada.

— Pediu-me para escrever... eis aí.

Não era aquele tipo de escrita que ela queria. Faltou clareza na solicitação ou me fiz de desentendida? Não era para escrever sobre o peixe-remo, seu comprimento, sua cara feia ou os motivos que fizeram dele um prelúdio de catástrofes. Eu deveria narrar sobre mim, sentimentos e medos, meus alvoroços. "Fale sobre suas escuridões, Alana", "busque autoconsciência", "blá blá blá", o que considerei no momento uma grandissíssima bobagem. Claro, mantive esta opinião guardada.

Imaginei os pensamentos dela:

"Que raios de peixe-remo é este? Três páginas sobre...isto?"

E minha resposta, também imaginada:

'Isto não, doutora. O peixe-remo não é um...isto'.

E na palestra, segundo me recordo:

— Ok. Queres conversar sobre o peixe-remo?

— Já escrevi sobre...

— Por que o interesse sobre esse assunto?

— Achei interessante. Não é interessante?

Intuí a resposta, como se pudesse ler sua consciência:

"Isso é fuga, Alana. Poxa, parece criança!"

'É, pareço criança...'

Eu sabia na época, hoje em dia sei ainda mais sobre fugas.

Não sabia tanto sobre a terapêutica da escrita, aprendi na prática e lendo sobre o assunto assim que me tornei uma interessada por psicologia. "Há estratégias ou abordagens que podem ajudar na busca pelo autoconhecimento, compreensão de si, dos sentimentos e vislumbres claros das próprias lacunas. Autoconhecimento. Auto-observação. Autodirecionamento. Auto apaziguamento".

Aí então, depois de escrever sobre o peixe-remo, sobre a monogamia dos pinguins e sobre outras encheções de linguiça, desarmei a resistência e deixei fluir enfim o rio lamacento e corrediço em mim, e de mim. Inicialmente, travei os olhos fixos no papel em branco e caneta imóvel.

'Vamos, Alana, tu sempre foi boazinha em redação.'

E só precisou a primeira linha para iniciar o despejo de fluxos intensos e longos desaguando sobre as linhas tudo ou quase tudo o que havia de ruim. Gritos represados, falas interrompidas, choros guardados. Não somente: vieram os arroubos, pequenos ou maiores, de alegrias. Fragmentos de luzes do passado e do presente, que puderam ser vistas por olhos abertos e atentos – vislumbres luminosos de esperança e fé são ignorados por olhos dormentes, encobertos e turvos, e é justamente o que ocorre quando a escuridão se propaga na gente.

Desejava uma certa ordem. Começaria pelo começo. Qual? O começo foi quando fui concebida, quando nasci ou quando morri pela primeira vez?

"Não te preocupa com a forma... apenas deixe fluir." E fluiu. E assim escrevi cadernos e mais cadernos empilhados e engavetados na cômoda do meu quarto. Tantas histórias e essências naquelas linhas...

Abrindo-me para as linhas, abri-me para mim. Nadei no turbilhão da alma, rodopiei com os redemoinhos, submergi e emergi. E quando voltava de cada mergulho, olhava para o céu azul aberto e lindo. Do meu oceano, vislumbrava a terra firme que meus olhos podiam alcançar. Não foi tão acelerado este processo que me levou a poder ver de novo...

Entendi que escrever é uma boa forma de auto contato, mais profundo, exige o mareio da própria essência. Quando a gente escreve sobre o próprio caos como um narrador de um livro, observando de fora as suas criações, as impressões e os dilemas tornam-se diferentes, menores pela distância.

E a escrita tornou-se um hábito que mais tarde foi deixado de lado. Desapeguei da prática, até esqueci dela, afinal, tornou-se desnecessária. Engavetei-a junto com meus cadernos, tão logo me vi melhorada.

Dois anos deitaram nas redes do tempo. Eu consegui me fortificar no trajeto de lá para cá. Progredi na essência, devagar, passo a passo, combates travados e vencidos. Consegui me restituir, me encontrar, entretanto, recentemente, algo mudou. Deparei-me com um embuste.

Minha vida não foi constante, aliás, pouca coisa no mundo é. Foi estável, serena e alegre na infância. Alguns desajustes e quedas na adolescência – conheci a dor do amor não correspondido e do despeito, da partida de um amigo querido e as dores alheias. Após, segui como todo aquele que segue. E foi assim até experimentar o caos absoluto – queda livre rumo a um poço lamacento. Foram dessa época os cadernos escritos e empilhados. Enchi linhas e linhas com pensamentos e sentimentos detalhados em letras. No início, descrições de partes horríveis da história, explanações tenebrosas, desabafos, vez ou outra, em versos, numa caça frenética por minimização das dores e da anarquia em mim. Profundos solilóquios, ensaios para um desafogo de uma alma que se afogava. Numa água barrenta, mal conseguia nadar, tampouco emergir. A desesperança agigantada fazia morada, me acompanhava insistente e, com isto, não sentia, não via confiança mínima numa salvação.

Caí sim uma queda longa e a saída não se apresentava clara como a luz do fim de um túnel, não seria diferente, eu não olhava para cima...

Mas a tenacidade e a vontade deram as mãos, inicialmente trêmulas e inseguras. Unidas, se fortaleceram. Num arroubo, fitei o céu, vi a saída. Como todos aqueles que tentam e conseguem, fiquei em pé novamente, escalei e consegui sair. Não foi rápido e fácil, nunca é. Tive de renovar energia para soltar as mãos daqueles que me prendiam, romper amarras, arrebentar correntes para lograr.

E agora, quem diria, abro este caderno vazio, abalada, impulsionada pela necessidade e esperança de me apaziguar mais uma vez. O instante exige a utilização deste recurso.

'Coloque para fora as dores, os medos, vamos, arrevesse tudo. Abra as comportas, não represe nada ...Faça de tudo para não voltar...'

E lá vou eu de novo.

E começo assim pelo começo que me vem à mente...

Alvoroço e outras coisasOnde histórias criam vida. Descubra agora