Prólogo.

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Acomodado em minha existência, eu não costumo divagar sobre a minha função ou sobre o meu propósito na vida de outros seres vivos. Sou tão antigo que nem me lembro do meu nascimento, mas o meu propósito sempre foi o mesmo. Irrefutável, imutável, irreversível e inevitável. O meu papel, embora seja crucial e indispensável para a ordem natural das coisas, é bastante simples, sem muitas nuances ou explicações, mas isso do meu ponto de vista. Ao mesmo tempo também pode ser extremamente complexo, pois também pode ser interpretado, sentido e compreendido ou às vezes incompreendido de inúmeras maneiras diferentes. Vai do ponto de vista de cada indivíduo.

Desde que me entendo, a minha existência ou a minha condição irreversível de estado, tem sido o que moveu a humanidade, até onde o conhecimento de vocês o leva, a única raça pensante, a me evitar, a me almejar, a me temer, a me desejar e a me adorar. Como eu havia dito, sou interpretado de incontáveis maneiras. E isso geralmente depende de como você viveu a sua vida. O modo como você percorreu a sua trajetória nesse mundo, a forma como você aproveitou cada oxigênio inalado e cada volta do ponteiro no relógio, vai definir como nosso encontro será.

Não posso colocar na balança quem mais me almejou e quem mais me temeu, quem estava pronto e quem não estava, são comparações inúteis, porque no final, eu estive com todos eles e todos eles estiveram comigo. Seja em algum momento de suas vidas ou no encerramento delas. E parando hoje, somente hoje, para divagar sobre um ser indivíduo em especial com o qual eu tive contato, eu decidi refletir um pouco sobre ela. Sobre o nosso prévio, porém arrebatador encontro.

Ela não tinha nada de especial. Não era a garota favorita de ninguém, a filha predileta, a melhor irmã do mundo ou a melhor amiga de alguém. Não tinha talentos naturais ou uma super inteligência. Não teve muito êxito na vida e na verdade, nunca conquistou nada. Ela era comum, provavelmente tão comum quanto você.

A única coisa que talvez possa os diferenciar é a alma quebrada que a habitava e o constante anseio de se juntar a mim.

Sinceramente, eu ainda não sei explicar exatamente porque ela me intrigou. Dificilmente sou pego de surpresa em minha jornada, afinal, eu já vi absolutamente de tudo. Eu só sei que queria refletir sobre o que eu vi. O que eu exatamente vi naqueles olhos, que embora estivessem perdendo o brilho de uma vida curta, pareciam buscar algo além da minha compreensão, mas que curiosamente, eu era o único que poderia cooperar.

Eu me lembro do dia que a encontrei, e do momento que ela me encontrou.

O clima estava incrivelmente agradável naquele dia, quase perfeito, pois em muito tempo naquela cidade tórrida, o sol brilhava radiante no céu e os seus raios solares atravessavam a janela do apartamento onde ela estava, atingindo exatamente o local onde a encontrei.

Quando cheguei, passei por debaixo da pequena fresta da porta, e por ela já estar no chão, eu a enxerguei no mesmo instante. Os cabelos negros estavam espalhados pela mármore fria que beijava a pele pálida do seu pequeno corpo. Suas mãos pequenas estavam derrubadas ao lado de seu rosto e suas pernas ligeiramente dobradas e igualmente despojadas. Me aproximei devagar, sem pressa. Afinal, não havia necessidade para tal, a hora dela já estava chegando. Eu estava chegando. E estava chegando para finalmente buscá-la.

Eu estive nos pensamentos dela várias vezes. Me lembro de todas elas. Ela sempre me desejou. E em alguns desses momentos ela tentava adiantar o nosso encontro, mas a ideia ao mesmo tempo que lhe era agradável também a assustava. Ela não tinha forças o suficiente para ir até o final sozinha, pelas próprias mãos, por si só. E embora ela se achasse uma covarde para tal ato, ela gostava de pensar que eu estava ao lado dela quando ela ingeria aquelas substâncias em seu organismo para poder aliviar o seu estado mental e emocional ou quando se auto mutilava, mas como eu disse, apesar de me desejar, ela não tinha culhões para se render a mim. Mas não reclamaria se eu enfim chegasse.

𝖆 𝖗 𝖈 𝖍 𝖆 𝖓 𝖌 𝖊 𝖑Onde histórias criam vida. Descubra agora