-- Prólogo.
A Estátua da Liberdade banhava-se serenamente na chuva que se derramava sobre Nova Iorque. Os suspiros do vento iam sussurrando segredos aos ouvidos desatentos que se escondiam sob capas e guarda-chuvas, incapazes de reconhecer as vozes que se misturavam à água fria que as nuvens esmaltadas em prata jogavam na cidade. Sob à sombra da mesma estátua, duas figuras pairavam silenciosas, os olhares se cruzando, asas abertas – as de um deles, brancas como a alma de uma criança, as do outro, negras como se enegrecidas pelas cinzas do inferno. Nos olhos do primeiro havia um brilho azulado, cortante e líquido, cintilando uma força sobrenatural que somente os anjos possuem. Nos do segundo o vermelho sangue que, embora obscuro, tornava tão intenso o valor de seu brilho que certamente seria capaz de aumentar a pressão sanguínea de qualquer humano que pudesse vê-lo.
— Você finalmente apareceu, Michael. – o timbre tênue e pesado do anjo de asas negras soou mais alta que o açoite da chuva no chão aos pés da estátua.
— Sabe como é, Seth. Não consigo passar muito tempo sem trocar umas fofocas com meu anjo favorito.
Michael esticou suas asas, elas subitamente se mostrando maiores do que a impressão inicial. Seu maior inimigo estava diante dele, com aquele sorriso de escárnio que aprendera a ignorar. Por mais que a presença dele o incomodasse, aquele encontro era inevitável. E quando Seth abriu, também, suas asas, Michael ergueu a cabeça. Não lutariam ali. A alma da cidade se rendia aos pés de ambos num pedido, num lamurio silencioso, para que não lutassem. Se o fizessem talvez a grande estátua, única testemunha daquele encontro, fosse a primeira a cair por terra.
— Aproveitando que estamos aqui, obrigo-me a perguntar: por que infernos você e sua família de cobras peçonhentas escolheram crianças como principais alvos? Nos velhos tempos você escolhia guerreiros, comandantes, governadores. Como é que chegamos ao nível “adolescentes”? Temo que ao iniciar uma guerra eles corram pra mim e peçam um abraço ao invés de começar uma luta.
Um riso sarcástico liberou os lábios finos do hospedeiro de asas negras Seu olhar, tão mordaz quanto o timbre de sua voz, cortava a imagem de Michael com voracidade, como se tentasse decorar cada mínimo detalhe do rosto que o arcanjo usava como seu. Ponderou sobre a pergunta do outro por mais tempo do que julgara necessário. Não tinha pressa, afinal. Michael estava ali em busca de respostas que jamais teria em totalidade, e a diversão daquele momento se derretia de forma açucarada ao paladar do demônio.
— Degolar soldados era mais fácil do que exorcizar adolescentes, não era, Michael? Quase me sinto triste por causar-lhe tamanha dor de cabeça. – Aproximou-se sorrateiramente, abaixando as asas e dirigindo-se à cidade que no horizonte se erguia como um lampejo de luzes afundando em uma tempestade. – Mas ainda acho graça do fato de você acreditar que eu lhe diria o porquê de ter escolhido a eles desta vez. – Seth elevou o olhar ao céu, as gotas da chuva ofuscando seus olhos, como se indiretamente Deus lhe enviasse uma mensagem para manter sua atenção ao único lugar que o pertencia: as profundezas.
Um riso divertido escapou da boca de Michael. Recuou alguns passos, examinando o mesmo cenário que o outro. Não atribuía tal coisa aos humanos que lá habitavam, mas à aura diabólica que se arrastava pelas ruas dela como uma praga, uma maldição impregnada nas calçadas como um vírus sem cura.idade do pecado, ouvira num filme. A cidade dos malditos, lera num livro. Nenhuma das menções se referia à Nova Iorque, mas na cabeça de Michael nenhuma outra cidade poderia receber tais
— Eles encontraram vocês, é? Mas que azar, Seth. Suponho que eles não tenham regras de conduta do tipo “nada de matar crianças”. Infanticídio é crime, li isso num panfleto, tenho certeza. Chame a polícia. Oh, a menos que você não saiba ainda quem eles são. Opa! Parece que não sou o único com dores de cabeça, afinal.
Michael suspirou, dando as costas para Nova Iorque e focando sua atenção no monumento de concreto diante deles. A chuva estava finalmente diminuindo, embora suas roupas estivessem mais pesadas, o frio tomando seu corpo humano e fazendo-o sentir saudades do céu.
— Por que estamos aqui, Seth? Por acaso vamos contabilizar nossos números e ver quem tem mais chances de vencer essa gincana infantil?
— Estamos aqui porque tenho um aviso para lhe dar, Michael. A você, aos seus anjos. – O brilho vermelho que vinha dos olhos de Seth se intensificaram, quase a ponto de provocar um relâmpago nas nuvens. – Se seus anjos começarem a usar as armas deles, nós começaremos a usar as nossas. E não importa se são guerreiros ou debutantes. O inferno vai ser aqui.
Michael não evitou o sorriso. As palavras do outro soavam como o prefácio de uma maldição, transformando o frio da noite numa cortante lâmina invisível a destruir a fina camada que separava anjos e demônios de um embate direto. O arcanjo mal podia conter sua excitação.
— Está declarando uma guerra aqui? Baseado num clã que sequer está sob nosso comando? Você já foi mais moderado.
— Mas nunca fui idiota. Quer que eu acredite que eles vieram até aqui nos seguindo pelo cheiro? Você os convocou. Você e sua mania de se aliar a esses seres inferiores. Pretende ser o sucessor d’Ele um dia, por acaso?
— Não me importa o que você acredita, Seth. Se você quer uma guerra, teremos uma guerra. Eu não vou me aliar a você para evitar catástrofes quando a coisa que mais espero desde que desci mais uma vez a esse mundo é, exatamente, uma catástrofe. As cartas estão na mesa, garotão. Hora de mostrar seu jogo.
Foi a vez do moreno de rir, recuando uma distância considerável. O cessar-fogo se desfazia bem diante dos olhos de ambos, caindo como a chuva que se desprendia do céu, teleguiadas por sussurros noturnos trazidos por nuvens tempestuosas, cinzentas como a fuligem que marcara em negro as asas de Seth. Se os anjos podiam contar com a ajuda extra das fadas e lobisomens, então que se estivessem preparados. Se eles queriam um jogo, uma outra guerra, eles teriam.
— Vamos jogar então.
A imagem de Seth foi substituída por uma sombra que logo se desfez numa nuvem negra. Michael respirou fundo. Estava avisado. Ele, seus anjos e o céu. E a única certeza que tinha naquele momento, além de que anjos, vampiros, lobisomens, fadas e feiticeitos se enfrentariam muito em breve.Retraiu suas asas, fazendo-as desaparecerem como se fossem uma ilusão, desvanecendo em um brilho azulado que se reduziu a um mero vulto levado pela escuridão da noite. Michael, como bom conhecedor das artes do outro anjo até mesmo no que se tratava dos feitos humanos, não pôde deixar de exibir uma citação que no momento brincava em sua mente como uma piada mortal.
— Que os jogos comecem.
Por um segundo soube como se sentiam os vilões dos filmes e, que Deus o perdoasse, a sensação não era ruim.
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A Era das trevas
RandomExiste um lugar no mundo onde a única regra social é a de não ser pego no flagra. Onde a beleza não têm muita importância. Onde cada uma das pessoas é a representação de tudo aquilo que você sempre quis ser, mas nunca conseguiu. Alakis, a terra nata...