A artesã

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Tem coisas que marcam a gente, não é? Eu, por exemplo, algo que me marcou muito, foi uma boneca bailarina de porcelana chinesa, enviada por minha irmã como lembrança lá da Rússia. Ela foi estudar fora e... bem, isso não vem ao caso. A boneca, uma bailarina linda, com seu traje fino e delicado, a saia de tule parecia ser realmente transparente, pois, o artista pintou os pseudofuros de modo que o tecido circular parecesse todo furadinho. Passava horas olhando para aquela pecinha de decoração, imaginando como seria maravilhoso poder flutuar daquele jeito, com facilidade, se esticar, se abrir, se mostrar... e ouvir aplausos extasiados com a performance; nossa, deve ser o máximo.

A bendita boneca, a qual agora está entre meus dedos, estava na estante ontem à noite, mas sabe como é, quando o destino quer, ele arruma um jeito de entortar seu caminho. O meu só precisou de um filme melodramático e três taças de vinho. Caminhando trôpega pela casa, enquanto atravessava o corredor para o quarto, esbarrei na estante e ela saltou do topo para baixo, num mergulho lento e ininterrupto, girando graciosamente em direção ao solo, tal qual, uma mariposa se entregando ao glamour da luz. Pude prever o destino inviolável daquela pobre bonequinha; iria cair de vez, as lascas de porcelana voariam para todos os lados, as quais eu encontraria pela casa mesmo depois de meses do ocorrido, toda a forma dela seria reduzida a uma nuvem de poeira, tinta e farpas rígidas... não é um final tão glorioso, não é?

O fato é que ela caiu sobre o cachecol de lã, o qual havia acabado de largar pelo chão, e com a queda amortecida, apenas tombou de lado, o suficiente para que a frágil perninha pintada de rosa amarelado trincasse bem no meio e em diagonal. Um clique surto soou curto, foi o suficiente para me arrepiar dos pés à cabeça. Ainda podia vê-la bambear sobre a madeira enquanto eu olhava para trás e acompanhava o salto, impotente, letárgica, sem nenhuma reação adicional apenas observei tudo acontecer diante de meus olhos castanhos hipnotizados pela beleza da peça que mergulhava para sua destruição, conformista com a imagem que via antecipadamente, mas que foi amenizada no final; não o quanto eu desejava, mas poderia ser pior.

A deixei ali mesmo e fui dormir, não tinha condições físicas de lidar com algo tão delicado. Hoje cedo, enquanto fazia o desjejum, senti algo engraçado. É, engraçado, me fez rir inconscientemente. Uma coceira atrás da orelha que desce e contorna a nuca, subindo devagar, eriçando cada pelo por onde passa, como uma língua quente e rígida, babando em minha pele e exalando uma respiração quente no meu cangote. Nossa, aquilo foi estranhamente engraçado, não tinha motivos para ter acontecido, mas senti. Parecia que o destino me presenteava com bons sinais; mas isso eu só descobri depois.

Peguei a boneca e avaliei o estrago, havia uma falha na cerâmica, dos dois lados, fendas negras que não poderiam ser disfarçadas. Torci os lábios e me amaldiçoei até o último fio de cabelo. Coloquei numa caixa com espuma e um resto de palha que tinha aqui de um vinho importado que ganhei, e deixei sobre a mesa. Abri o laptop e busquei por restauradores de cerâmica, não achei nada. Tentei várias coisas, restaurador de obras de arte, escultor e uma caralhada de coisas, mas nada supria minha necessidade. Foi aí que aconteceu de novo, aquela sensação estranha, meu coração palpitou e senti algo soprar em meu ouvido uma direção, obediente eu segui, e lá estava, no canto da página, um pop-up anunciando uma escola de artesanato. Cliquei e fui para o site deles.

A página é um encanto à parte, mas o que me chamou a atenção foi a dona da escola e professora de artes. Um rosto fino, cabelos amarrados em coque, espetados com dois palitos japoneses, os óculos de armação larga e de cor escura, contrastando com sua pele rosada, a mulher era belíssima e tinha qualificação suficiente para que depositasse minhas esperanças nela. Coloquei o endereço no GPS e segui. O tempo todo, aquelas sensações me vinham na memória, como um lembrete, uma fisgada no músculo, daquelas que nunca desaparecem por completo, mas ao invés de doer, incomodar... agradava, me deixava feliz, abobalhada e com o riso frouxo.

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