"A vida queima fácil! Tal cigarro entre os dedos". -Sannio
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Celeste Ferraz
19 de Março de 1986Assim que a chave faz o segundo crack ao trancar a porta, retiro os tamancos dos pés marcados pelos sapatos; Quase pude ouvi-los agradecer ao encostar os pés quentes no chão frio, dando um alívio momentâneo.
Cruzo a sala, seguindo para a cozinha. Abro a geladeira, experiencio os pelos eriçarem e pego a garrafa de vinho, sem cerimônia, virando um grande gole. Torci o nariz e sacudi a cabeça de um lado para o outro pela forma que desceu.
Havia se passado uma semana desde a madrugada no cemitério e até então, não conseguia pregar os olhos e quando, acordava de súbito, sem ar.
Vou em direção ao banheiro, a fim de ver meu reflexo no espelho, como todos os dias após o trabalho. Parecia uma baleia em um blazer prestes a arrebentar e mal cabia no próprio reflexo.
Elevo as mãos até o lateral da minha barriga apalpando-a, analisando as manchas roxas abaixo dos olhos e cada curva indesejada. O vinho que segurava só destacava que era fraca e me seduzia facilmente pela comida.
Gorda.
Encaro o reflexo da minha pele cor de ébano. Confesso que nunca gostei dela, afinal, fazia com que as pessoas me destratassem em lojas ou que desconhecidos me parassem no meio da rua para falar que eu estava na moda, devido ao meu cabelo cacheado e a minha cor.
Isso sempre me incomodou. A única exceção eram meus olhos, que são de um verde claro, quase que envidraçado. O que dava mais motivo para as pessoas me encararem de forma estranha. Seja por admiração, inveja, ou até mesmo nojo.
Suspiro, voltando a cozinha e sentando na banqueta da ilha, me permitindo mais um grande gole, que desceu ainda mais quente que o primeiro.
Tinha acabado de ser demitida por um erro que nem foi meu. Isso estava acabando comigo; minha cabeça parecia que ía explodir de tanta dor.
Encosto a cabeça no mármore gelado, cansada de tudo o que vem acontecendo. Esfrego os dedos na testa, sentindo a enxaqueca aumentar. Fecho os olhos, permitindo que as lágrimas caiam uma a uma. Não sabia o que fazer. O trabalho vinha sendo muito desgastante e engordava dia após dia.
Deveria me punir...
Nunca fui do tipo de pessoa que se machucava, mas quando minha mãe morreu, percebi que ela levou para o túmulo o que mais desejei e ela nunca me deu, identidade.
Talvez, fazer isso, me desse ao menos uma vez na vida, a sensação de tomar uma decisão. Por mais burra que fosse.
Respiro fundo, só querendo gritar até que o mundo parasse ou que meus pensamentos se calassem. As lágrimas se transformaram em soluços, desejando um fim para tudo isso.
Levanto e abro a gaveta do armário, onde sempre deixava uma carteira reserva. Subo a manga do blazer, vendo alguns arranhões e outras queimaduras por ponta de cigarro. Uns estavam avermelhados, pela ferida recente, outros cicatrizados...
Não é de agora que venho pensando na possibilidade de fugir dos meus problemas, de preferência, para não mais voltar. Mas será que seria possível escapar dos próprios demônios, ou eles sempre acabariam por me encontrar?
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Até que a morte vos mate
Romans"Celeste Ferraz passou a vida tentando agradar sua mãe e quando esta morreu, se viu perdida pela culpa de se sentir aliviada. Tudo o que lhe restou foi pôr para fora os prantos de ter matado a si mesmo para tornar-se a pior face de alguém". Na noit...