O "24005"

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“Como é difícil acordar calado/
Se na calada da noite eu me dano/
Quero lançar um grito desumano/
Que é uma maneira de ser escutado”

Trecho de “Cálice”,
Chico Buarque.

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Nova York, 1962

A noite chuvosa de Nova York já se estendia há duas horas. O infindável som das gotas de água caindo pelas superfícies, alguns trovões, um céu escuro como o infinito... Nada assustador. Na realidade, era como um calmante para o mutante Erik Lehnsherr.

Erik se encontrava deitado em sua cama de hotel, ainda repassando os eventos da tarde em sua mente, se amaldiçoando cada vez mais pela ruptura de seu controle naquele momento. Já tinha tantos anos... Por quê ele ainda se incomodava?

É como diz o ditado: “Quem bate esquece, quem apanha, não”

O mais terrível de tudo era Charles e sua reação ao ver ele pedir licença e sair apressado do local. O que seu amigo havia pensado? Ele sabia que Charles não de julgar ou repugnar qualquer outro apesar das diferenças, mas mesmo assim... Mesmo assim... Erik ainda temia a reação do telepata. Porque ele sempre era acostumado com aquilo: a pena instantânea das pessoas ao saber que ele era judeu, ao saber que tinha ido para o campo e justamente para aquele.

E, para Erik, não havia nada mais irritante do que aqueles olhares de dó, compaixão, pena.

Por quê? De que adiantava? Ninguém que descobria aquilo tinha a mínima noção de como era pisar naquele lugar quando ele estava em atividade. Só porque tinham lido livros, assistido os documentários que mostravam os filmes de propaganda nazista sobre aqueles lugares, visitado aquele lugar, que elas sabiam como tinha sido. Elas não sabiam como era o cheiro, como eram os gritos dos soldados, como era o medo de ser o próximo a ir para as câmaras de gás se não fosse o suficiente nos testes.

Elas não sabiam de nada como Erik sabia.

Gostava de Charles por vários motivos, mas o principal era de que Charles não lhe olhara com aquele olhar irritante quando leu a mente dele e viu seu passado. Charles lhe deu um breve olhar daquele tipo, mas depois foi um olhar compreensivo. Erik gostou disso. Gostou de ser entendido por alguém. E se aquele alguém era justamente um certo britânico descendente de protestantes que na verdade era seu amante, ele gostava mais ainda.

Mas agora, no presente, Erik temia a conversa que certamente teria com o outro homem. Temia as perguntas. Temia de repente se tornar alguém incompreensível.

No fundo, ele ainda era um garotinho assustado, cuja alma queria amparo e amor de bom grado, não por dever.

Erik se virou na cama enquanto enxugava rapidamente uma lágrima solitária que escorreu por seu rosto. No mesmo instante em que terminou de se ajeitar no colchão, ouviu uma batida leve e familiar na porta. Mesmo sendo apenas um simples controlador de metais, ele sabia que era o telepata. E ele ficou dividido entre o temor e o alívio ao ouvir aquele som já esperado.

--- Tá aberta --- ele disse em um tom alto o suficiente para Chales ouvir do outro lado da porta.

A porta se abriu. E o som dos passos cautelosos de Charles fizeram presença. Outro calmante.

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