Piloto

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Jogo as chaves descuidadosamente sobre a mesa, sentando, deixando aquele peso que me puxa pra baixo todos os dias finalmente cessar. Olho com a cabeça mal levantada pra cima, o programa aberto no computador: "Piloto", primeira página, zero palavras escritas.

Olho ao redor, pilhas de cadernos sobre a escrivaninha, o sofá. Papéis espalhados, a lata caída e o lixo espalhado pelo chão, as marcas dos pisos que já dei por cima, sem me importar.

Já fazem 16 horas que não vejo minha esposa. Mesmo que volte pra casa ainda não a verei, estará descansando, cuidando de si mesma, bem longe de mim. Mesmo assim vai deixar as coisas feitas, vai sorrir ao me olhar, vai beijar meus lábios singela antes de sair de novo. Não amo minha esposa, mas tenho muita consideração por ela.

Apesar disso, qualquer homem se envergonharia de ser sustentado por sua mulher. O último livro de sucesso que escrevi foi publicado a três anos e já não é mais mais pauta de críticos e nem mesmo de leitores. O tempo está correndo, eu sei que minha esposa se sente mal com isso e eu quero recompensá-la. Essa situação é verdadeiramente horrível.

Quando a guerra se instalou, estávamos na Europa e tivemos o desprazer de ter a visão privilegiada de suas páginas se desenvolvendo no decorrer da nossa estadia. Estava em fogo, vi uma história perfeita que o mundo precisava saber. Minha esposa esteve ao meu lado, mas sem muito tempo pra se alegrar por mim, pois o que tinha visto lá fora foi demais pra ela.

Não sei quando isso aconteceu, já fui aventureiro e espirituoso, mas algum tempo depois desse evento, minha vontade de qualquer coisa desapareceu. Já ouvi algumas conversas de minha esposa com suas amigas, algumas delas me chamavam agora de rabugento e mal-humorado, quando lembro delas risonhas no dia do nosso casamento.

Depois do meu último trabalho fui obrigado a revisar o tipo de vida que andei vivendo. Se queria ter me casado com uma médica, se queria viver em uma casa tão grande e vazia, se queria viver entre essas pessoas tão... diferentes. Agora sinto que não quero viver entre nenhum tipo de pessoa.

Eu fiz qualquer coisa tola que me veio pela frente pra escapar, li todos os livros nas estantes, fiquei horas na internet lendo conteúdos de diversos gêneros, revisei meu trabalho de pesquisa mais importante da faculdade, me esforcei pra ser um marido melhor, mas tais coisas não levaram a nada. Não virei um escritor melhor e não virei um marido melhor.

Descansei minha cabeça sobre a bancada de madeira, afastando os livros, cadernos, pranchetas e papéis avulsos. A cobri com meus braços e passei meus dedos entre meus fios de cabelo. A chave pra escrever bem é ter boa inspiração e observar coisas que as pessoas comuns não observam, odeio admitir, mas não vou conseguir escrever bem enquanto estiver preso nessa casa.

Apertei minha gravata e senti o cheiro suave do perfume exalar, eu uso perfume feminino, porque prefiro as nuances suaves e remarcantes que traz. Pus meu casaco por cima da minha roupa, caramelo, uma das minhas cores favoritas, porque combina com meu cabelo escuro. 

Peguei as chaves e saí de casa, deixando uma nota para minha esposa colada na porta da geladeira "Saí para dar uma caminhada, ver se tenho ideias para um próximo trabalho, se cuide meu bem, logo volto", deve ser suficiente.

Entrei no meu carro, perfumado, tinha acabado de ser lavado, uma Mercedes c180 dos anos 90, uma verdadeira peça. Não faço questão, mas minha esposa faz, ama a classe do carro.. então comprei logo após  nosso casamento, ela ficou muito satisfeita.

Quando o motor já estava ligado, e eu rondava pelas ruas, finalmente me permiti questionar pra onde iria de fato? Não fazia ideia de pra onde ir, decidi seguir a rota mais clichê. Estacionei meu carro e vaguei pela praça mais bonita do bairro.

Minha mente me lembrou de uma pergunta importante: Por que me tornei um escritor? Me sentei em um banco com uma boa vista.
Assim como todos os artistas escritores extraem expressões e faces da vida. Todas as faces possíveis. Assim como todas as artes, poderia ter me tornado qualquer tipo de artista, mas escolhi escrever, me sinto satisfeito com essa resposta. Eu escrevi de todo gênero, de todos os temas que me interessei profundamente. Ser um escritor me levou a lugares na vida que nunca teria imaginado, conheci pessoas importantes e senti grandeza. Agora sinto tudo escorrer por entre os dedos como areia.

Me levantei quando o pensamento sacudiu meu corpo. Não andei mais pela praça pra evitar pensamentos como esses. Pensei no que queria fazer em seguida, talvez... comer? Faz tempo que não como comida fora, não custa tentar.

Fui caminhando a uma lanchonete não tão distante da praça. Cheirava a bolo fresco recém saindo do forno e café expresso. Depois de tanto tempo sem manter contato com o mundo de fora, fiz o meu máximo pra tomar novamente aquele papel, pus o meu sorriso mais charmoso no rosto quando dei um passo para frente ao ser o próximo da fila.

–Boa tarde, você parece ser um rosto novo por aqui. – Disse a atendente sorrindo carismática.
–O que vai querer...
–Kaleb, – Completei. –Lukas Kaleb. Vou querer uma xícara de café sem leite e uma fatia de bolo de chocolate, muito obrigada.

Pelo jeito que me atendeu, não é difícil perceber que apesar de enferrujado, meu charme ainda funciona... Não sou muito velho, tenho apenas 28 anos, sempre me achei bonito e sei que os outros acham também. Apesar de nos últimos dias que passei só em casa, minhas olheiras terem aprofundado, minha barba ter crescido bem pouco nas laterais do meu rosto, e meu cabelo também estar mais longo do que eu gostaria.

Nunca gostei de café, detesto o gosto, mas desde que me comecei a namorar minha esposa comecei a tomar, sempre que os visitava meus sogros me ofereciam, e agora como costume não consigo ficar sem tomar.

Me sentei numa mesa no canto, ao lado da janela e observei as pessoas andando pela calçada, é outono, o clima está agradável. Deixei meu bloco de notas e minha caneta-tinteiro sobre a mesa, esperando meu pedido, mesmo sabendo que não usaria desses materiais tão cedo.

Ousei pegar na caneta. Uma das pessoas que andava pela calçada tropeçou e caiu, ninguém ajudou, só observaram. Soltei a caneta, o tema da empatia não interessa os leitores hoje em dia.

Senti uma presença próxima a mim.
–Aqui está seu..
A bandeja que estava sendo segurada descuidadosamente escorregou, e a xícara de café preto quente virou sobre minha camisa social, gritei de dor. A garçonete rapidamente tentou conter a situação. Foi quando finalmente pude olhar pra ela, cabelo castanho bem  levemente ondulado, uma franja que cobria seu rosto, pele clara como leite..

Passava o papel toalha sobre o meu corpo em tentativas de enxugar o café derramado.
–Eu sinto muito, vou repor seu pedido.
Nem mesmo olhou pra cima, sua voz saiu fraca. Ela se retirou, e não a vi mais.

Pouco depois uma outra garçonete que esboçava uma feição amigável, me aproximou com meu pedido, pedi que embalasse para viagem, quando o recebi novamente, peguei o pacote e saí apressado da lanchonete.

Começou a chover e andei apressado para o meu carro, estacionado do outro lado da praça. Meu casaco ficava cada vez mais molhado a medida que a chuva ficava mais violenta. Agora minha roupa está suja de café e molhada da chuva, ótimo.

Me sentei no carro, abri a embalagem e comi sozinho. Afinal de contas, sair de casa não me ajudou em nada a escrever um novo trabalho. Mas... pensei em algumas coisas que não pensava a muito tempo.

Quando voltei pra casa, minha esposa havia voltado do hospital, preocupada com meu estado, a acalmei e garanti que estava bem. Nos arrumamos para dormir juntos, sem dizer uma palavra, no silêncio conhecido do nosso casamento. Apesar de não ser tão amoroso, não era desconfortável.

Nos deitamos. Me aproximei de seu corpo, envolvendo-o desleixado.
–Seu dia deve ter sido cansativo no hospital, trate de descansar. – Beijei levemente seu ombro.
–Você também Lukas, sei que está se esforçando com seu novo trabalho, confio que logo conseguirá o que precisa.
Ela me deu um sorriso cansado e caloroso, sorri de volta e soltei seu corpo, me virando para dormir.

Por algum motivo, aquela garçonete que derrubou o café em mim não sai da minha cabeça. Parando pra pensar agora... Ela era linda. Mas o que me intrigava é que apesar de sua beleza, tinha uma das feições mais horríveis que já vi.

Palavras Manchadas de TintaOnde histórias criam vida. Descubra agora