Hoje finalmente saio do Hospital Psiquiátrico Santuário do Silêncio (HPSS). Oito anos perdido da minha vida aqui, nesse maldito lugar com pessoas horríveis. Olho em volta uma última vez, me olho no pedaço de espelho que foi grudado na parede, estou pálida, a magreza consumiu meu corpo, meu cabelo está curto agora, lembro-me de ser vaidosa, cuidar de mim, do meu cabelo, a vaidade é algo proibido nesse hospital. Hoje é um dia triste. Ao contrário do que pensam, o HPSS é pura farsa, não tratam e cuidam dos pacientes, fazem experimentos, drogam, abusam, alguns acabam mortos. Por isso ando sempre com um canivete no bolso.
— Senhorita Marlowe? — odeio esse sobrenome e ele sabe. Viro para a porta, o psiquiatra que me perseguiu todo o tempo que estive aqui, ele quem deveria estar sendo tratado, não eu.
— Confesso que estou muito entristecido com sua partida, sentirei sua falta, senhorita Marlowe. Venha, sua carona chegou.
Ele faz sinal para que o acompanhe, não esperava que alguém viesse, não tem ninguém, estou receosa e com medo de quem está me esperando.
— Não acha que agora não é um bom momento da senhorita falar comigo? como amigos, sabe? não para me ameaçar de morte com o canivete que carrega no bolso — ele me olha de cima a baixo, sinto meu estômago embrulhar, aperto o canivete com força.
— Sei que não tivemos bons momentos, nunca pensei que iríamos passar por isso, uma das minhas favoritas vai embora e sinceramente, jamais imaginei que a senhorita sairia daqui.
Ele sorri, sinto raiva, nojo, tenho vontade de abrir a garganta dele agora mesmo e deixá-lo vivo para que sofra ainda mais durante a morte.
— É uma pena você ser tão quieta, deve ser este lugar, o ambiente, as pessoas, seus traumas...
Paro, o homem me olha, mais uma vez, de cima a baixo, como se estivesse me analisando.
— Sabe senhorita Marlowe, confesso que tenho uma grande atração pelo seu caso, mas nunca tive coragem o suficiente para tratá-lo, sabe o que dizem pelos corredores — o homem gargalha — Dizem que a senhorita só tem uma carinha bonita, mas é o próprio diabo.
O homem me encara por alguns minutos, mantenho-me de cabeça baixa, sinto o olhar predador me perfurando como agulhas grandes de crochê.
— Diga alguma coisa, senhorita Marlowe — sinto os dedos gelados encostarem no meu queixo, minha cabeça é levantada, encaro o homem, é uma pessoa que dorme pouco.
— DIGA ALGUMA COISA, QUALQUER COISA, PRECISO OUVIR SUA VOZ
Acabo no chão, não esperava gritos, encosto na parede, coloco minhas mãos nas orelhas, fecho os olhos, sinto o homem se aproximar, fico no modo defensiva.
— Não queria assustá-la, peço que me perdoe. Sabe você encanta qualquer um, ficaria lisonjeado em ajudar você, caso precise de ajuda fora daqui, aqui meu cartão.
Ele coloca um pedaço de papel mal cortado nas minhas pernas que tremem. Chegamos na grande porta da frente, tem tantos cadeados, a porta se abre e sinto pela primeira vez depois de muito tempo a luz do dia na pele. A claridade invade meus olhos, demoro um pouco para conseguir ver tudo nitidamente.
Vejo um carro parado em frente ao portão, não consigo reconhecer a quem pertence. Sinto-me fraquejar, apesar de odiar o HPSS, o lugar acabou se tornando minha casa.
A porta do carro se abre, um homem com terno sai do carro, não o conheço ou reconheço. Os dois se cumprimentam com um aceno de mão.
— É um prazer vê-lo novamente Doutor — o homem sorri.
— Digo o mesmo. Então? vamos? — o homem me olha, realmente olhando para ele agora de uma distância considerável, não o conheço. — Ah, desculpe, era amigo de seus pais, Hannibal Lecter, muito prazer — o homem estende a mão, dou um passo para trás.(QUERIDAS E QUERIDOS LEITORES, Hannibal Lecter aparece na história por que tenho fascínio nos filmes, livros e série, é um personagem, o qual quero explorar do meu jeito, pode acabar em uma grande merda, mas estou pronta, não tanto, para arriscar. Passem bem e vão ao psiquiatra depois desta história. Abraços).
O homem me olha e sorri pouco. Papai nunca falou deste homem. Não sei se devo confiar, mas se não sair agora, jamais vou embora do HPSS, ou morro de velhice ou acabo morta por uma experiência.
— Podemos ir senhorita Marlowe? — maldito sobrenome.
— Ah, antes Doutor Lecter, devo avisá-lo que ela não fala desde de que chegou aqui, sabe como é, traumas do que aconteceu — o homem ri. Percebo que a mandíbula de Hannibal se contorce.
— Obrigado pela informação. Talvez ela não fale com o senhor de tão inconveniente que é — o homem faz sinal para que eu passe para fora do portão — Nos vemos por aí, Doutor Caspian.
Hannibal abre a porta do carro para mim, penso antes de entrar no carro, mas não tenho mais vida social, se acabar assassinada, não vai fazer muita diferença. Antes de entrar, olho para Caspian e mostro o dedo do meio.
Hannibal força um sorriso para o homem e entra no carro. Liga e acelera, olho para trás, finalmente livre do HPSS. O caminho foi em silêncio. Mas o silêncio é quebrado.
— Sei que não nos conhecemos e deve ser estranho, mas a maleta do seu lado, tem tudo que precisa saber, pode abrir quando quiser, são suas coisas.
Espero alguns minutos, o homem volta a olhar para a estrada, voltamos ao silêncio. Pego a maleta com cuidado e abro. Muitas fotos, cartas, jornais, revistas, tem muito papel.
— Esse envelope amarelo é algo do seu pai, ele pediu que entregasse a você na hora certa, acredito que agora é a hora certa.
Pego o envelope e abro, um testamento? Leio atentamente."Querida, se está lendo isso significa que está com Hannibal Lecter, um antigo amigo do papai, deve estar se perguntando por que nunca falei dele, bem... Hannibal gosta de viver sua vida em silêncio, é um homem misterioso, mas não fique intimidada. Seja o que for que tenha acontecido, saiba que você sempre terá um lugar no meu coração, você é minha filhinha. Escrevo isso antes de enlouquecer, confesso que tenho medo de minha doença passar para meus queridos filhos. Mas você querida, sempre foi especial, sempre soube que seria você. É você que carrega este fardo, sinto-me mal por ter causado isso. Querida, confie em Hannibal, ele irá ajudar e proteger você.
M.M"
Amasso o papel e jogo na maleta, jogo para o lado. Maldito, minha vida foi arruinada por sua culpa, papai.
— Parece que seu pai deixou algo desagradável, é a cara dele.
Franzo as sobrancelhas, ele parece conhecer bem o papai, deveriam ser muito amigos.
— Deve estar se perguntando, como conheço o seu pai? Não se preocupe, podemos falar disso, caso você queira, você quer?
— Sim... — Hannibal parece surpreso com minha resposta, não estava esperando.
— Bem... seu pai era louco, maníaco e eu era seu psiquiatra, mas no final nos tornamos bons amigos, teve um dia que ele chegou insano no consultório, suava frio, estava com medo e ansioso, ele pedia para que cuidasse da sua amada pequenina Lucy, no começo não entendia, então ele explicou que, você era igual a ele, louca. Perguntei a ele como chegou a essa conclusão, não tive respostas, ele não falava sobre isso, também não sei por que pediu a mim que cuidasse de você.
Devo confiar em Hannibal, mas por que? mal o conheço.
— Não se preocupe, não vou lhe fazer mal, quero ajudá-la a construir uma nova vida e quando encontrar essa nova vida, pode viver como quiser.
Voltamos ao silêncio do começo. Não lembro exatamente da noite que tudo mudou, estava tudo bem, aconteceu tudo tão rápido. Lembro-me dos gritos, sangue, minhas mãos tremendo, o suor frio, papai gritava muito, estava nervoso, muito nervoso, parecia um animal feroz. Eu tive medo, chorava, chorava e chorava, mas aquilo não acabava, implorava para que parasse, mas não adiantava de nada, papai esfaqueou a mamãe na minha frente, ele sorria, estava se sentindo realizado fazendo aquilo, finalmente liberando o demônio que habitava nele, mal sabia o que ele havia planejado, naquela noite o demônio que habitava em mim, também foi liberto.
— Chegamos — Volto a realidade com a voz de Hannibal. Estávamos parados de frente a um portão grande, percebi que o homem me olhava do espelho retrovisor do carro.
— Você precisa de um banho, parece que viagens de carro fazem você suar frio.
Ele sabe que não é isso. Descemos do carro, Hannibal pega minha mala, não tenho muita coisa, algumas roupas e dois sapatos já usados, o HPSS recebia muita doação, mas as coisas "boas" as enfermeiras pegavam para elas. Você sabe "inspeção" para ver se as roupas não eram trapos velhos.
Entramos na casa, uma empregada idosa veio na nossa direção, forçando um sorriso.
— Ah, finalmente chegaram — a mulher estendeu a mão para mim.
— Ela não aperta mãos Rita — a mulher me olha sem expressão — Prepare o banho da senhorita Lucy e mostre a ela onde ficam as roupas — Hannibal me olha — Mandei que comprassem roupas novas para você.
Acompanho Rita até um quarto, que de agora em diante será meu, confesso que é uma suíte premium comparando ao quarto que tinha no HPSS.
— Lucy é um nome bonito — A mulher tentava puxar assunto. Rita é de idade avançada, me pergunto por que ainda trabalha de doméstica, seus cabelos grisalhos prendidos em um coque bem apertado, nem um fio solto, me dão medo. Ela deve ter toc de limpeza, só pode ser isso, ela mesma é super limpa. Deve estar enjoada de estar perto de mim, meu último banho foi há dois dias atrás. A água gelada do HPSS, não era fácil de ser enfrentada, é ainda mais um banheiro no qual qualquer um pode entrar, nenhuma privacidade, nenhuma. E confesso também que, tinha medo de sofrer abuso, por esse motivo só tomava banho de madrugada, mas era difícil sair sem ser pega nos corredores.
Rita falava onde ficava cada coisa, não prestei muita atenção. Ela percebeu e foi preparar a banheira. Depois de tantos anos, meu primeiro banho de banheira. Olho para o guarda roupa, Hannibal comprou muita coisa, nunca tive tanto opção de vestidos e calças. Rita separou tudo por cor, os sapatos por categoria.
— Tudo pronto, senhorita Lucy — A mulher vai para a porta e para, olho para ela — Precisa de ajuda no banho?
Balanço a cabeça negativamente e Rita sai. Entro no banheiro e tranco a porta, olho para a banheira com espuma. Entro, respiro fundo e fecho os olhos, finalmente posso tomar um banho em paz.