Yánsàn-Ọya

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Ọya, princípio feminino do fogo

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Ọya, princípio feminino do fogo.
Única ẹbọra-filha entre as Òrìṣà femininas da esquerda. Aquela que está ligada ao princípio físico e fenomenológico do ar,
do vento,
da tempestade,
do relâmpago – ar mais movimento igual a fogo.
Ọya é o aspecto feminino de Ṣàngó,
vermelho individualizado, vermelho-descendência no Àiyé e no Ọ̀run.
Aquela que está associada à água, à floresta e à terra,
aos animais,
aos espíritos – Egúngún.
Yánsàn-Ọya, aquela que possui como prerrogativa a organização dos nove espaços do Ọ̀run
– Ìyá-Mẹsan-Ọ̀run.
Princípio de vida no Àiyé
– só é possível a continuidade da vida, da existência,
através dos princípios de ancestralidade e descendência.









12 Oríkì (louvação) para Ọya, construído a partir das obras: “Agadá: dinâmica da civilização africano-
-brasileira”, de Marco Aurélio Luz (2000); “Os Nàgô e a Morte: Pàde, Àsèsè e o culto Égun na Bahia”, de
Juana Elbein dos Santos (2012); e “Dicionário yorubá-português”, de José Beniste (2011).

Monique Navarro Souza Míriam Cristiane Alves


Pretendemos aqui elaborar reflexões sobre a temática do amor. Partimos de problematizações sobre os livros “O Banquete”, de Platão (2011), e “O Espírito da Intimidade - Ensinamentos Ancestrais Africanos sobre Maneiras de se Relacionar”, de Sobonfu Somé (2007).
Platão, nascido na Grécia Antiga, expõe em seu texto as suas concepções sobre o amor por meio de diálogos entre os personagens. E Sobonfu Somé, por meio da tradição oral13 transferida entre as gerações do povo Dagara, compartilha suas sabedorias acerca dos modos de relacionamento de sua comunidade. Portanto, as duas obras diferem-se em relação à compreensão e o sentido dado para as relações amorosas. Dessa forma, tais leituras nos auxiliam a complexificar os modos de ver e perceber o dispositivo14 do amor.
Dentre essas discursividades, vale salientar que são os princípios platônicos que carregam a legitimidade hegemônica em suas concepções sobre os modos de amar na modernidade/colonialidade15. Assim, nos termos dessa concepção, temos a produção de uma conduta que rejeita o mundo e os sentidos dos corpos para chegar a uma suposta verdade demarcada pela natureza do amor, alcançada pelo sujeito em sua ascese16 purificadora.
Esses pressupostos demonstram em seus sentidos uma crença na existência de uma epistemologia universal de mundo. A naturalização dessas
13 Na Tribo de Dagara, os ensinamentos e sabedoria dos mais velhos são transmitidos através da ora- lidade. “Uma das características fundamentais das culturas tradicionais africanas é a palavra, a tradição oral (Aguessy). Dito de outro modo, a palavra é um elemento fundamental para a compreensão do pensa- mento tradicional africano” (ALVES, SEMINOTTI, DE JESUS, 2015, p.101).
14 É um conjunto complexo e multilinear; certo tipo de cadeias de variáveis que disputam entre si; são compostos por multiplicidades (DELEUZE, 2016).
15 A modernidade emerge de um determinado contexto sócio-histórico, em que a sua condição de pos- sibilidade se tornou possível enquanto discursividade por mérito da colonialidade (MALDONADO-TOR- RES, 2007). Ainda conforme esse autor, a partir da modernidade/colonialidade, emergem novas classifi- cações sociais que são caracterizadas por relações verticais e hierárquicas entre os sujeitos.
16 Conjunto de práticas de domínio de si, consideradas constituintes do homem grego da antiguidade, em sujeito moral e purificado, a partir do controle dos seus desejos, ou ainda, da negação das sensações do corpo em relação ao mundo. (PLATÃO, 2011)



tramas institucionais captura e internaliza verdades cristalizadas acerca das existências, e sobre o fenômeno do amor ao longo dos séculos. Os efeitos destas noções ressoam em sociedades ocidentalizadas por meio de conjuntos de discursos que produzem realidades baseadas em enunciados racistas, machistas, patriarcais, cisheteronormativos, eurocêntrico e colonial, que instituem verdades, produzem opressões e delimitações de modos de vida. Por sua vez, concepções éticas, ontológicas e epistemológicas oriundas de produções discursivas não ocidentalizadas têm a potência de abrir fissuras sobre essas verdades instituídas, ao produzir outras condições de possibilidades de vivenciar o amor.
Com isso, o presente ensaio teórico tem como objetivos problematizar discursos instituídos pelo eurocentrismo17 sobre o dispositivo do amor e produzir um olhar crítico a esse modelo, ao expandirmos as reflexões a partir da ética do viver africano, na tentativa de reaprender sentidos descolonizados para o fenômeno amoroso.
Deste modo, o ensaio desdobra-se em três movimentos. O primeiro, intitulado “Amar a Falta”, em que discutiremos a concepção de amor a partir de Platão (2011) ao salientar tal discursividade como base epistemológica na produção do pensamento colonial no Ocidente. No segundo, nomeado de “O Amor em Comunidade”, trata-se de trazer para o texto discursos não ocidentais acerca dos modos de relacionamentos, ao compreender o amor enquanto uma experiência compartilhada e vivenciada coletivamente, ao nos direcionarmos para a ética do viver africano. No terceiro movimento “Descolonizar o Amor”, busca-se, através das discursividades apresentadas, questionar os pressupostos epistemológicos que fundam os conhecimentos instituídos, ao problematizá-los a partir do pensamento descolonial, na tentativa de descolonizar os modos de compreender e experienciar as relações amorosas. Enfatiza-se, também, a importância de inventar modos possíveis de entendimento e de experiências sobre o dispositivo do amor no contemporâneo, ao afirmar as pluralidades de concepções de mundo, ou de cosmopercepções18 fora do Ocidente para esse fenômeno na existência humana.
17 Para Mignolo (2008), eurocentrismo é o nome dado à hegemonia de uma forma de pensar fundamentada no mundo grego, latino e nas seis línguas europeias e imperiais da modernidade; isto é, da modernidade/ colonialidade.
18 Oyèronke Oyewùmí (2017, p.39) ao debruçar-se sobre as discussões de gênero na sociedade Yorubá, coloca em discussão os sentidos e percepções do corpo no processo de compreensão do mundo, questio- nando, portanto, o conceito de “cosmovisão” do Ocidente que privilegia a dimensão da visão, e apresenta o conceito cosmopercepção ou cosmosensação, marcando as culturas que privilegiam outros sentidos ou uma combinação deles. Assim, cosmopersepção ou cosmosensação constitui-se como uma alternativa com maior abertura para descrever a concepção de mundo por parte de diferentes grupos culturais.

Amar a falta

O filósofo grego Platão (2011), em seu livro “O Banquete”, propõe-se a percorrer a temática do amor. A partir do diálogo dos personagens postos nessa obra, acontecem as exposições das concepções sobre o tema. Cada um dos participantes, homens brancos e gregos, manifestam aquilo que pensam sobre o amor, suas particularidades e suas implicações na vida dos sujeitos. Isso acontece, no contexto da obra, para apresentar as principais concepções filosóficas de Platão. Cada um deles salienta os diversos sentidos do amor e como ele se faz presente tanto nas práticas afetivas entre os amantes, como também na prática da filosofia, no exercício de uma profissão, entre outras.
Sócrates, personagem de Platão (2011), afirma que o amor está intimamente relacionado ao desejo, pois para ele o amor consiste na inclinação resultante de um desejo. Sendo assim, o amor exige que, quando se ama algo, exista o desejo por determinado imaginário suposto no objeto amoroso. Portanto, o amor sempre se direciona a algum objeto. Entretanto, como enfatiza esse personagem, o objeto do amor só pode ser desejado quando existe uma falta e não quando se possui.
O amor, nesse sentido, seria a falta, pois, segundo Sócrates, ninguém deseja aquilo de que não precisa ou que já tenha. Sócrates declara que o que se ama é unicamente aquilo que não se tem. O objeto do amor está ausente, mas é solicitado. Ainda, Sócrates menciona a verdade como um exemplo. Para ele, o desejo pela verdade, que é o objeto da filosofia, aponta que ela se mostra como uma falta e que, portanto, deve sempre ser buscada. Mas, por sua natureza engenhosa, a verdade é algo que está sempre mais distante, porque quando se acredita tê-la alcançado, ela nos escorre entre os dedos (PLATÃO, 2011).
O amor em Platão, então, está relacionado a uma tendência natural que visa atingir uma perfeição ética pela busca e encontro do Bem19. Seria esse amor que encaminha os sujeitos a modos de vida e de consciência mais evoluídos20. Desse
19 Em Platão as noções de Bem e Mal estão diretamente ligadas à moral e tem metafisicamente um sentido
fundamental, já que servem de base para todo o sistema de valores sociais. O bem e o Mal são entendidas como formas absolutas e universais desde Sócrates e Platão [...]. Nesse caso, tais noções têm um sentido metafísico. O Bem, em Platão - diz ele - é o sol que ilumina o mundo (SCHOPKE, 2010). Ou seja, o Bem, é uma noção criada pelo filósofo com a pretensão de instituir um sentido considerado mais elevado da existência humana; um certo tipo de “tendência” natural.
20 Aqui a ideia de evoluídos, em Platão (2011), é entendida enquanto homens que alcançam deter- minado tipo de “evolução”, demonstrada através do domínio de si (conduta “purificada” e honrosa) e da supervalorização do pensamento ideal em detrimento do corpo e das sensações. Nesse sentido, evoluídos



modo, toda ação humana tem como objetivo final alcançar o Bem. O amor, em sua compreensão mais elevada, consiste na inclinação em chegar a esse Bem. Este é um dos sentidos do amor para Platão, e que se institui nas tramas relacionais a partir de noções de ideal de amor produzido na Modernidade/Colonialidade.
Entretanto, podemos perguntar: como esse amor ideal produz sentidos no contemporâneo povoado por multiplicidades de expressões?
O amor em Platão só pode ser compreendido se levadas em consideração suas concepções filosóficas e o terreno histórico no qual elas emergiram, se desenvolveram e se tornaram possíveis. Para nos aproximarmos da compreensão dessa noção que se institui como modelo para experiência amorosa, vamos partir de uma abertura proposta por Foucault (2012), em sua obra História da Sexualidade: o uso dos prazeres.
Nesse livro, Foucault (2012) realiza uma análise das questões relacionadas ao modo como os sujeitos se constituem enquanto sujeitos de desejo e de prazer na Grécia Antiga. O autor parte do termo sexualidade para analisar o contexto teórico e prático ao qual ela é associada. Desta forma, verifica que o uso da palavra foi estabelecido em relação a outros fenômenos que possibilitaram e desenvolveram campos de conhecimentos diversos.
A instauração de um conjunto de regras, normas, instituições e as mudanças no modo pelo qual os sujeitos são levados a dar um determinado sentido e valor a sua conduta, prazeres, sentimentos e sensações constituem modos de subjetivação, e é essa dinâmica da relação consigo e com o outro que acaba sendo objeto de reflexão para os gregos.
Dizendo de outro modo, não seria propriamente o ato, e sim o conjunto dessa dinâmica do desejo que seria levado à ação, e essa ação, por sua vez, estaria ligada ao prazer, com a qual finalmente seria possível considerar que o prazer ocasionaria o desejo. Assim, trata-se de analisar a formação e o desenvolvimento das práticas pelas quais tais homens foram levados a prestarem atenção em si e a se reconhecerem enquanto sujeitos de desejo, constituindo uma experiência da sexualidade.
Na Grécia Antiga, a atividade sexual era entendida como parte da natureza humana, ou seja, não poderia ser considerada má (FUGANTI, 2008). Os prazeres, nessa perspectiva, são problematizados moralmente, justamente por serem considerados
naturalmente21 necessários, pois é por meio deles que os seres vivos podem se

são aqueles que acessam um pensamento posto como “verdadeiro” nesses termos.
21 A palavra Natural, no contexto platônico, representa a condição do corpo humano em buscar o pra-

reproduzir e perpetuar a espécie. Todavia, por ser tomado como inteiramente dependente do corpo e comum a todos os animais, o prazer é considerado inferior22. A impetuosidade, que também lhe é própria, leva a atitude sexual a transbordar na sua atuação com o desejo. Sendo assim, isso pede uma delimitação: em que medida e até que ponto é cabível praticar a atividade sexual?
A solução dada por Platão (2011) seria de que é preciso discriminar moralmente tal atividade, impondo freios: o temor, a lei e o discurso verdadeiro. Ou seja, se no pensamento grego clássico o prazer constituía demasiada força natural, para Platão seria necessário o enfrentamento de tais forças através da moral, a fim de dominá-las e garantir sua adequada economia, para que assim fosse possível viver honrosamente (FUGANTI, 2008). Esse enunciado nos posiciona diante de uma problemática ética: a preocupação grega de como se conduzir. Para Platão, essa ética e o amor constituem uma relação intrínseca.
Nessa perspectiva, a relação entre rapazes23 era vista na Grécia Antiga como algo arrebatador e comum entre os corpos. Também, por isso, os gregos procuravam exercer essas práticas de forma a constituir condutas dignas, para não desonrar suas famílias e a polis, entre outros. Percebe-se aí a produção de uma subjetividade que passa a questionar o uso dos prazeres e como se conduzir nessa relação com o ser amado.
Havia também uma preocupação com a honra, devido aos vexames oriundos da atração dos mais velhos pelos rapazes e vice-versa; e, portanto, uma forma de modificar esse modo de relacionar-se com o outro a partir de um cuidado de si (FOUCAULT, 2012). Emergem cuidados de si, e noções que, nesse contexto, se baseiam em critérios que negam o corpo a partir da abstenção como um tipo de demonstração de domínio próprio. Acontece, portanto, uma inversão da situação:
zer na reprodução da espécie. Dessa forma, por ser natural, torna-se comum aos corpos, e, portanto, deve-se controlar e dominar tal “ímpeto natural”, pois o filósofo acreditava que em demasia, tal prazer levara ao dispêndio excessivo de energia. O intuito era a economia dessa energia, para direcioná-la em um investimento em si.
22 Nesse sentido, pela condição de reprodução e prazer, ser comum aos animais assim como nos hu- manos, o que diferenciava os sujeitos era o acesso à razão através do mundo das ideias. Assim sendo, os homens (daquele contexto) são considerados evoluídos, em Platão (2011), por produzirem pensamento; já os demais seres não racionais foram considerados inferiores por estarem presos à condição natural do corpo. Esses pressupostos da colonialidade eurocêntrica fundam concepções de mundo baseadas em dicotomias e dualismos, ao diferenciar a população do mundo entre inferiores e superiores, irracionais e racionais, primitivos e civilizados (QUIJANO, 1991). Dessa forma, essa lógica classifica e objetifica os sujeitos, ao perpetuar tal hierarquia.
23 Nessa dinâmica que direciona e constitui o sujeito dito ideal para o amor, eram considerados su- jeitos de direitos apenas os homens brancos, que representavam a maior parte constituinte da cidade, sobrepondo-se a todas as diversas formas de existência daquele contexto; sua filosofia e entendimento de gestão da polis não considerava, ou ainda, desumanizava outras formas de estar em comunidade.



de uma dominação estabelecida pelos rapazes através da provocação aos corpos decadentes que os levam ao excesso e ao arrebatamento, para um domínio de si, a partir da abstenção dos prazeres do corpo, da negação e do redirecionamento do desejo (FUGANTI, 2008). Assim sendo, os homens devem estar preparados para serem os senhores de seus prazeres. Aqueles que sabem o que querem e como se portar de maneira dita honrosa na relação com o outro, demonstrando o prazer que exercem sobre si, de acordo com a moral do cuidado de si platônico.
O discurso idealista, a partir das reflexões sobre a conduta, surge com o intuito de alcançar algo que era entendido como um pressuposto existente para o filósofo: a verdade; e que para chegar nela é preciso conquistar uma conduta purificada. E é essa relação com a verdade que irá estruturar o discurso do filósofo.
Não é na conduta, mas na natureza ou verdade do desejo que está o real problema e a verdadeira prova de sabedoria e liberdade. Ou seja, o que nos diz o discurso platônico é que a condição de acesso à verdade será demarcada pela natureza do amor que o sujeito conquista em sua ascese purificadora e nas práticas de domínio de si que o constituem como sujeito moral. Assim, a relação entre o mundo dos corpos e o mundo dos ideais será possível por meio do verdadeiro amor, o amor pela verdade. Da mesma forma, o verdadeiro amor é um grande desejo de imortalidade, de eternidade e do além.
Podemos pensar uma crítica, com Luis Fuganti (2008), na qual essas normativas criam um novo desejo naquele contexto: o “amor verdadeiro” que pertence ao “homem purificado” e liberto dos prazeres corporais; o desejo de ser um homem virtuoso, aquele que purifica sua alma e liga seu desejo às ideias permanentes. Antes do discurso platônico, a preocupação dos gregos consistia em como conduzir-se diante das paixões arrebatadoras. Com o surgimento dessa narrativa, a reflexão fora direcionada para uma busca do ser do amor, definindo o verdadeiro amor e o verdadeiro amante. É o discurso purificado, de acordo com Luis Fuganti (2008), que irá impulsionar esse pensamento acerca do amor, bem como inaugurar o sujeito do conhecimento, e com o pensamento rigoroso teríamos acesso à dita verdade universal. Dizendo de outro modo, a verdade não pertence mais a um tempo particular como na Grécia Antiga, mas está fora, transcende a dimensão temporal para entrar no domínio do imperecível.
Por conseguinte, em nome de um enigmático bem, na Grécia Antiga é fundada a crença nas essências inteligíveis com valores supremos que existem separados do corpo

sensível, e também é criada uma hierarquia de sentidos, apreendidos ao mesmo tempo como causas da ordem universal e paradigmas das condutas humanas, restituindo assim a ordem ideal. Dessa forma, esse valor emerge pela invenção de uma ficção e pela condensação dessa crença em um mundo ideal e perfeito.
Por sua vez, esses enunciados atuam como vínculos que terão de permanecer durante a vida. Ou seja, discursos instituídos como verdadeiros conduziram e conduzem nossas experiências, inclusive as amorosas. É interessante saber como se constituem as experiências de si e dos outros a partir desse vínculo e dessa obrigação. Para Foucault (2016), as verdades são como um tipo de inscrições que se encontra na raiz de certos tipos de discursos, e elas fazem com que passem por legítimos, atuem como obrigações e produzem formas de viver. Com isso, podemos nos questionar como nos constituímos em relação a essas verdades e como experienciamos o amor a partir desses vínculos.
Esses mesmos valores idealizados, absolutos e verdadeiros ainda podem ser observados enquanto bases constitutivas dos valores da lógica na qual vivemos atualmente, pois estão a compor a modernidade/colonialidade. Por exemplo, no paradigma positivista, que seria como certo tipo de refinamento da instituição da verdade como instância suprema, tem como expressão máxima e legitimada a razão cartesiana. Essa ótica de mundo emerge inspirada na filosofia platônica, e apesar de constituir-se em meio às rupturas e contingências está interligada ao surgimento da epistemologia do pensamento colonial.

O amor em comunidade

Na obra de Sobonfu Somé (2007), a autora nos insere em uma discussão não sistematizada, na forma de fragmentos, sobre os modos de relações, ao produzir paisagens a partir de sua compreensão de intimidade enquanto sentido primordial do relacionar-se em sua comunidade. Sobonfu Somé compartilha suas vivências na comunidade africana Dagara, em “O espírito da Intimidade, Ensinamentos Ancestrais Africanos sobre Maneiras de se Relacionar”, apresentando outro modo de experienciar o amor.
Sobre a comunidade em Dagara, Sobonfu Somé afirma que não possui as
amenidades que o povo do Ocidente tem. É uma vida “inspirada pela terra” (SOMÉ,



2007, p.10), na qual eles plantam o que consomem; tendo como experiência outra relação com a produção e o consumo; e cuja principal fonte de negociação é a troca. Na vida em comunidade, a pessoa vive em outro ritmo menos acelerado em relação ao tempo do ocidente; de modo a vivenciar o momento e a comungar com a terra e a natureza. Nesse sentido, de acordo com Jean Kashindi (2017) uma vez que qualquer vida humana depende de outras vidas não humanas (ar, água, fogo, terra, entre outros), resulta que os seres humanos receberam e continuam a receber a vida de outros seres não humanos. Para Jean Kashindi (2017, p. 34) “a ética tradicional africana reconhece o vínculo existencial entre as pessoas e o meio ambiente, a dívida que cada geração tem com seus antepassados e sua consequente responsabilidade para com o seu legado”.
A intimidade, em termos gerais, apresentada por Sobonfu Somé (2007) é uma canção do espírito, que convida duas pessoas a compartilharem seus espíritos. Conforme os ensinamentos africanos, existe uma dimensão espiritual, independentemente de sua origem. Duas pessoas unem-se porque o espírito as quer juntas. Assim, é “importante ver o relacionamento como algo movido pelo espírito e não pelo indivíduo” (SOMÉ, 2007, p. 19). Da mesma forma, a noção de espírito auxilia a manter a conexão consigo e com o coletivo.
Os ancestrais também são chamados de espíritos; e eles têm a capacidade de ver não apenas o mundo invisível do espírito, mas também este mundo: “Eles veem dentro e fora de nós. Sua visão cria dimensões” (SOMÉ, 2007, p. 20). Em um relacionamento existe uma “tendência natural” de os espíritos se unirem (SOMÉ, 2007, p. 23). Quando dois espíritos conseguem de fato comungar profundamente, as pessoas estabelecem entre elas uma forte conexão, sincera e amorosa.
Sobonfu Somé (2007), ao mencionar os integrantes da sua comunidade que vão à cidade, conta que em estes, em sua maioria, param de desenvolver a conexão com o espírito e o deixam de lado. Quando vão para a cidade se desconectam do espírito e o procuram somente quando precisam resolver algum problema. A autora, ao pensar as relações do Ocidente, acredita que os relacionamentos são movidos pelo ego, pelo individualismo e pelo controle; e que, portanto, se faz necessário reconhecer que os relacionamentos são baseados no espírito.
Na comunidade existe uma forte crença em um espírito poderoso presente, que deve ser honrado, ao invés de desprezado, para que se tenha prosperidade

nos relacionamentos. Esse ensinamento é transmitido para a criança, para que assim ela possa se conectar e reconhecer a existência desse espírito (SOMÉ, 2007). O comprometimento com as ancestralidades, de acordo com Jean Kashindi (2017), significa que cada geração deve reconhecer uma dívida para com os seus antepassados, e por isso, deve responder à mesma através da responsabilidade pelo seu legado. Dessa forma, se dá continuidade à busca de fortalecer e solidificar a força da vida, considerada como a pedra angular da ética africana. Assim sendo, cada geração deve reconhecer e comprometer-se com a dívida ancestral.
A comunidade é o lugar onde as pessoas compartilham seus dons e recebem as dádivas dos outros. Quando não se tem uma comunidade, não se é escutado, não se compartilha experiências coletivas e espirituais. A carência desse tipo de relação enfraquece a “psique”, e possivelmente torna a pessoa vulnerável ao consumismo e a todas as coisas que o acompanham (SOMÉ, 2007). Quando não se elabora esses dons, vivencia-se um bloqueio interior que nos afeta espiritual, mental e fisicamente. Um dos princípios de Dagara sobre relacionamentos é que esse não é um assunto privado, ou seja, “nosso” relacionamento não é sobre dois (SOMÉ, 2007, p.28).
Assim, junto a Jean Kashindi (2017, p.11), vislumbra-se a relacionalidade da vida para a comunidade: “qualquer pessoa, depende de outras pessoas; a partir disso, pode-se afirmar que ninguém é totalmente independente e ninguém é definitivamente inútil”, pois para o autor, na ética Ubuntu24 toda a vida é relacional. Nesse aspecto, torna-se importante ressaltar que as perspectivas culturais sobre os modos de relacionalidades são denominadas de cosmovisões; em grande parte esse termo emerge de certas leituras eurocêntricas. No entanto, com Oyèrónké Oyewùmí (2017) tensionamos o termo “cosmovisão”, pois tal denominação demonstra o sentido da visão como primordial na produção da realidade. Ou seja, o mundo nessa perspectiva é percebido exclusivamente pelo olhar, pelo ato de ver. Esse termo, portanto, exclui outros modos de descrições culturais que consideram, na construção de significados, a relação intrínseca da combinação de sentidos. Assim sendo, o termo cosmopercepção (OYEWÙMI, 2017) diz mais sobre o conjunto dos sentidos imbricados no ato da percepção e compreensão da realidade do que o privilégio de um sobre os outros.


24 “Quando dizemos que “ubuntu” é a humanidade como um valor, a principal alusão que se faz é ao valor da vida. Uma vez que todos os demais valores que expressam ubuntu – a generosidade, a solidarie- dade, a responsabilidade, a partilha, a empatia, a compaixão – ficam sem nenhum fundamento se não ser- virem para gerar mais vida; vivenciar ubuntu é, então, viver sempre com valores no intuito de aumentar tanto a própria vida quanto a dos outros” (KASHINDI, 2017, p. 21).



Sobonfu Somé (2007) reflete sobre os modos de se relacionar e nos diz que na cultura moderna, em contraste com Dagara, os relacionamentos não acontecem dessa forma, pois não se tem uma noção de comunidade; no Ocidente as pessoas costumam apreender que um relacionamento é “nosso”, quando na verdade é da comunidade. A ausência de uma verdadeira comunidade deixa o casal responsável por si e pelas coisas à sua volta. Assim, as possibilidades de atender suas necessidades ficam reduzidas. O relacionamento se torna a comunidade da pessoa; e quando o outro não preenche esse papel de produzir uma comunidade, o sujeito se sente insuficiente, ou ainda, fracassado. E segundo a autora, isso afeta a “psique” das pessoas, pois, faz com que se sintam sem lugar de pertencimento (SOMÉ, 2007, p.28).
Desse modo, morar sozinho tambéméum modo que empobrece as possibilidades de vida. Porém, para Sobonfu Somé (2007), quando se tem um grupo em que há preocupação mútua, este ajuda a trabalhar o propósito de vida; no entanto, somente a dois, isso se torna mais difícil, pois passa a exigir demais do outro. Segundo Sobonfu Somé (2007), trazer o espírito de outras pessoas para nossas vidas é importante, pois ajuda a perceber e compreender suas próprias limitações; e que por sua vez, a realidade se expande, pois, inversamente, quando se mantém tudo no privado, o relacionamento acaba sobrecarregado. Assim sendo, “precisamos estar abertos às outras pessoas para que os relacionamentos funcionem” (SOMÉ, 2007, p. 35). Para Jean Kashindi (2017), estar com o Outro é perceber a interdependência que nos constitui como seres humanos, é estar consciente da força vital que possibilita a nossa permanência na vida. Assim, esse “Outro”, para a ética africana, não se reduz aos seres humanos, mas inclui também outros seres animados e inanimados (KASHINDI, 2007, p. 22).
Do mesmo modo, ao pensar a produção da intimidade no Ocidente, Sobonfu Somé (2007) reforça a importância de constituir uma comunidade. Para ela, aqueles que moram no Ocidente podem criar uma noção de comunidade em sua cidade. Podem fazer isso constantemente, apoiando uns aos outros, pois cada um de nós precisa de uma rede para se apoiar. Ao pensar em grupos que seguem um objetivo comum no Ocidente, Sobonfu Somé (2007) diz que são tentativas de recriar uma comunidade maior, já que as que existiam foram destruídas. A única diferença é que a maioria dessas comunidades não se concentra no espírito. Tendem a deixar o espírito fora de sua comunidade, o que se apresenta enquanto um erro, pois o espírito existe como um guia de toda comunidade.

Outro exemplo que Sobonfu Somé (2007) apresenta é que se uma criança cresce achando que sua mãe e seu pai são sua única comunidade, quando ocorre algum problema e os pais não conseguem resolvê-los, não se tem a quem recorrer. Nesse sentido, os pais são os únicos responsáveis por aquilo que a criança se torna. Existe, dessa forma, uma grande responsabilização dos pais, que se encontram presos à instituição família, representada pelo homem e pela mulher. Dar à criança um sentido maior de comunidade auxilia a não depender apenas de um adulto. Assim, a criança também pode procurar alguém de sua escolha. Como seres humanos, temos limitações; por isso a crença na potência da comunidade, pois para educar precisamos do apoio dos outros (SOMÉ, 2007, p. 38). Essa determinada interação entre seres humanos e outros seres ou entidades cósmicas produz sentido para a comunidade, primordialmente para “gerar, cuidar e transmitir a vida” (KASHINDI, 2017, p.21). Dessa forma, a vida é considerada, na cosmopercepção africana, como o valor maior, o bem supremo que deve ser transmitido desde pequeno (OYEWÙMI, 2017).
Ao questionar-se como podemos progredir para uma estrutura familiar de relacionamentos “saudáveis”, Sobonfu Somé (2007, p.38) diz que “o fator principal, é a comunidade construir comunidades que se possam confiar uns nos outros”, e continua, ao dizer que podemos começar a expandir nossa comunidade ao sair de casa, conversar com os vizinhos e nos ajudar mutuamente. Nutrir pequenos relacionamentos para que, um dia, a comunidade possa se beneficiar. Para criar uma comunidade que funcione, “é preciso observar cuidadosamente alguns de seus fundamentos: espírito, criança, anciãos, responsabilidade, generosidade, confiança, ancestrais e rituais” (SOMÉ, 2007, p.40). Para a autora, esses elementos formam uma base sólida para uma comunidade.
O sentido do ritual em Dagara é uma cerimônia em que é chamado o espírito para servir de guia, para supervisionar nossas atividades. “Os elementos do ritual nos permitem estabelecer conexão com o próprio ser, com a comunidade e com as forças em nossa própria volta” (SOMÉ, 2007, p. 47). Assim sendo, através de rituais é possível criar vínculos compartilhados de intimidade e fortalecer a coletividade.
O ritual é, portanto, como um jantar no qual cada um traz um ingrediente. Algumas pessoas trazem cebolas, outros tomates, algumas trazem alface, pimenta e assim por diante. “Depois se reunir todos os elementos, você verifica quais funcionam melhor, todo conceito de intimidade é fundamentalmente derivado do ritual” (SOMÉ,



2007, p. 52). Para os ensinamentos de Dagara, uma forma de começar a caminhar na direção de uma vida íntima saudável é reconhecer o divino em tudo.

Quando entendemos que a terra na qual caminhamos não é apenas sujeira, que as árvores e os animais não são apenas fontes para nosso consumo, então podemos começar a nos aceitar como espíritos, vibrando em uníssono com todos os outros espíritos à nossa volta. Nossa conexão com todos esses espíritos viventes ajuda a determinar o tipo de vida íntima que teremos (SOMÉ, 2007, p. 89).

Em Dagara, para além do bem-estar de seu próprio relacionamento, a intimidade saudável tem o poder de aumentar a energia curadora de tudo à sua volta. “Damos porque queremos dar e não nos isolamos ou nos retiramos da sociedade. Somos estimulados a expandir e compartilhar nossas dádivas, como casal, com a comunidade” (SOMÉ, 2007, p. 102).
Na comunidade, os conflitos nascem de desafios apresentados pelo espírito. São dádivas que ajudam a avançar. “É por meio do conflito que ganhamos conhecimento de nós mesmos e descobrimos novas situações para pôr em prática nossos dons” (SOMÉ, 2007, p.113). A autora diz que para a comunidade, o conflito não deve ser nutrido, mas escutado, de modo que devemos tomar medidas apropriadas para lidar com o espírito por trás do conflito, pois ele é como um aviso que a energia espiritual está estagnada e que, portanto, precisa de movimento.
Assim sendo, o sentido de vida para a ética africana é primordial para a continuidade da existência; da mesma forma, a transmissão de tal compreensão é um compromisso ético com o fortalecimento dessa vida. O relacionamento amoroso, assim como qualquer outro vínculo, é vivenciado em coletividade e está intimamente atrelado ao fortalecimento da existência. O existir estabelecido em rede se torna mais forte e promissor a partir dessa perspectiva. Esses pressupostos demonstram que a coletividade é o maior valor da comunidade, em contraponto ao individualismo, sentimento de falta e idealizações pertinentes a crenças em um homem onipotente/onipresente diante do mundo. Na cosmopercepção em Dagara, o relacionar-se é inerente à trama existencial, composta pela multiplicidade de expressões de vida (OYEWÙMI, 2017).

Descolonizar o amor

O giro epistêmico descolonial é uma consequência da formação e constituição da matriz colonial do poder, que tem como base o eurocentrismo atuando diretamente na constituição da modernidade; e que historicamente promove uma apropriação da legitimidade colonial do poder (QUIJANO, 2010).
Para mobilizar o descolonizar das percepções de mundo, é fundamental se desprender da ótica colonial e promover outros sentidos sobre as concepções de racionalidade e de ciências. Assim, o pensamento descolonial inaugura uma alternativa contra a hegemonia do eurocentrismo ao abrir condições de possibilidades para um pensamento que pressupõe a diferença e a pluriversidade do conhecimento (MIGNOLO; CASTRO GÓMEZ, 2007).
Walter Mignolo e Santiago Castro Gómez (2007) salientam que o pensamento descolonial tem como objetivo a descolonialidade do poder; ou seja, o tensionamento dos discursos hegemônicos a fim de possibilitar movimentos de desprendimentos e aberturas no processo de descolonizar o saber e o ser, pois a genealogia do pensamento descolonial pressupõe a pluriversalidade e a multiplicidade de existências e racionalidades. A colonialidade do ser, conceito desenvolvido por Nelson Maldonado-Torres (2007), diz respeito à experiência vivida do colonialismo e os efeitos da mesma na linguagem de uma sociedade; esse fenômeno social representa a identidade de um determinado corpo social. O conceito de colonialidade do ser emerge como um desdobramento da colonialidade do poder, e torna-se fundamental para pensar os efeitos da colonialidade na experiência existencial, subjetiva e histórica dos sujeitos.
O pensamento descolonial se opõe à lógica moderna que é fundada através de racismos, epistemicídios e genocídios de populações, e que, na formulação das bases onto-epistemológicas de conhecimento colonial, colocam as diferenças culturais como inferiores, desprovidas de racionalidade e, portanto, passíveis de opressões, silenciamentos, invisibilidades e extermínios.
Desse modo, salientamos que a colonialidade também se expressa nos modos de se relacionar e se experienciar as relações amorosas, ao perpetuar as concepções de um ideal amor, baseado em uma verdade universal. O discurso platônico sobre um ideal do amor apresenta um descaso com o mundo sensível, dos



afetos, da espiritualidade25, da pluriversidade dos modos de relação e da diversidade dos encontros; da mesma forma, a universalização de uma verdade que ocasiona e continua a produzir epistemicídios26 de outros saberes em prol de um sujeito ideal, possuidor de uma razão universal. Ou seja, tais discursos coloniais constituem mecanismos institucionais que, por sua vez invisibilizam, marginalizam e oprimem as demais formas coexistentes que se diferem do modelo normativo e hegemônico do Ocidente, com o objetivo de realizar a manutenção dessa lógica na construção da realidade social.
Estas crenças influenciam diretamente o modo como nos relacionamos amorosamente, pois essa noção de mundo se pretende enquanto modelo unívoco de experienciar as relações amorosas, gerando sofrimento àqueles corpos que não vivenciam o amor da mesma forma. A lógica Ocidental, posta e naturalizada como uma formação histórica legítima de perceber e estar no mundo, realiza a manutenção de estratificações27 afetivas no presente. Entretanto, essa lógica idealista de conceber a existência passa a cristalizar o devir dos corpos no mundo. Torna-se fundamental o movimento de tensionar os discursos regularizadores dos modos de vida e de produção de conhecimento.
Em contraponto à experiência calcada pelo eurocentrismo sobre o dispositivo do amor, os saberes ancestrais, conforme Sobunfu Somé (2007), nos apresentam paisagens de relações amorosas não baseadas na falta, ou ainda, em um ideal. Sua leitura nos sinaliza um modo de relacionar-se que não possui critérios baseados em individualismo e/ou imagens idealizadas de mundo. Inversamente, tais saberes trazem como ponto de condução um modo de relacionamento ético, com o espírito da comunidade e da intimidade produzida em meio às relações constituintes das mesmas, e desse modo, diferindo-se também de relações baseadas apenas em combinatórias dicotômicas entre homem e mulher.


25 Na matriz civilizatória africana, a espiritualidade é uma dimensão mítica fundamental da existência. “O pensamento mítico não implica ausência de racionalidade, mas uma utilização da razão de modo dife- rente daquela proposta pelo pensamento científico” (ALVES, SEMINOTTI, DE JESUS, 2015, p.107).
26 O fascismo epistemológico existe sob a forma de epistemicídio, cuja versão mais violenta foi a con- versão forçada e a supressão dos conhecimentos não ocidentais levados a cabo pelo colonialismo europeu (ALVES, SEMINOTTI, DE JESUS, 2015, p.106).
27 Deleuze (1925-1995) elabora um diagrama da subjetividade sobre o pensamento foucaultiano, constituído de três planos e uma invaginação: Plano do Saber ou também chamado de Estratos; Plano do Poder ou das forças e o Plano do Fora, contendo também uma invaginação relativa à dobra da sub- jetividade. Os estratos ou saberes que compõem esse diagrama estão relacionados e dizem respeito ao aparelho audiovisual composto por um regime de dizibilidade formado por enunciados (as palavras) e por visibilidades (as coisas).

A partir da matriz civilizatória africana, Sobonfu Somé (2007) nos apresenta o modo de relação de sua comunidade, produzida como uma rede de apoio que se fortalece no coletivo e nas bases dos relacionamentos daquele determinado espaço e tempo. Outras condições de perceber o amor; conexões com os espíritos e sintonia com os ancestrais. Nesse sentido, somos convidadas e convidados a ampliar o campo do pensável com diferentes modos de vida que resistem à colonialidade dos corpos.
Santos (2010, p.544), quando aborda a “ecologia dos saberes”, se refere a uma “epistemologia da douta ignorância”, isto é, levar ao máximo à consciência da incompletude de cada saber por meio do “trabalho de tradução” - procedimento de busca de proporção e correspondência entre os saberes. Dizendo de outra maneira, esse seria um tipo de procedimento capaz de criar uma compreensão mútua entre experiências possíveis e disponíveis (ALVES, SEMINOTTI, DE JESUS, 2015), sem destituir as especificidades de cada uma. “Esse tipo de operação se contrapõe a uma teoria geral global, que busca dar conta da diversidade de experiências sociais”, conforme Santos (2010).
Dessa forma, o objetivo pautado no pensamento descolonial, é o exercício de expandir modos de perceber e habitar o próprio corpo, questionar os modelos possuidores, em seu âmago, de uma exclusão das diversidades, singularidades e do pluralismo. Ou seja, problematizar discursos instituídos pelo eurocentrismo sobre o dispositivo chamado amor se apresenta como um movimento de construção de outras formas de experienciar e viver. Torna se, portanto, vital provocar um olhar crítico na tentativa de reaprender sentidos não coloniais para os fenômenos amorosos, intrínsecos às relações humanas. Desafia-se, portanto, o que se faz familiar e aquilo que está pautado como verdade universalista.
Por conseguinte, ao tentar produzir um olhar atento e sensível às forças instituintes de modelos de relacionamentos não coloniais, percebemos a complexidade do tema. E justamente pelas riquezas de modalidades existenciais para tal fenômeno, se torna fundamental criar condições de possibilidades para experienciar os encontros a partir de discursividades amorosas contra-hegemônicas. Ou seja, é imprescindível o reconhecimento da existência da multiplicidade de modos de produção de razão, diferentes racionalidades, e das abundantes especificidades de experienciar o amor. É necessário compreender as relações constituintes de determinadas discursividades, a partir da noção de incompletude de cada saber, relacionada à busca



pela correspondência e/ou complementaridade entre conhecimentos; e da noção de temporalidade e de espacialidade dos saberes, ou seja, a compreensão de que cada conhecimento corresponde a interesses e necessidades relativas a determinado momento, de determinado grupo, coletividade, ou sociedade (ALVES; SEMINOTTI; DE JESUS, 2015).
Sendo assim, é fundamental exercitar o corpo para conhecer cada vez mais o que podemos e o que ainda não podemos, no que tange às concepções pretensiosamente “ideais”. Ao reconhecer a legitimidade de diferentes racionalidades e existências, estamos a combater a noção de humano produzida por aspirações coloniais, para criar diferentes formas de vida, e afirmar a complexidade dos dissidentes modos de (re)existir amorosamente no contemporâneo. Portanto, com esse tipo de ética, emergem proposições para expandirmos a cosmopercepção (OYEWÙMI, 2017) sobre a realidade, os corpos, as matérias, as espiritualidades, assim como sobre a produção de outras narrativas do amor que possam vir a estimular a fabricação de novas relações, conexões e alianças possíveis.
Referências
ALVES, Míriam; SEMINOTTI, Nedio; DE JESUS, Jayro, P. Conhecimentos e verdades: racionalidades em questão! In: SILVA, Leonardo Machado da; MORAES, Maria Lúcia Andreoli de. (orgs.). Psicologia & espiritualidade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2015.
DELEUZE, Gilles. Dois regimes de loucos: textos e entrevistas. (1975-1995) Tradução de Guilherme Ivo.
São Paulo: Editora 34, 2016. (Coleção TRANS)
FEYERABEND, Paul Karl. A Conquista da abundância: uma história da abstração versus a riqueza do ser.
São Leopoldo: UNISINOS, 2006.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 2: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 2012. FOUCAULT, Michel. Subjetividade e Verdade. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2016.
FUGANTI, Luis A. Saúde, desejo e pensamento. São Paulo: Hucitec, 2008.
KASHINDI, Jean Bosco Kakozi. Ubuntu como ética africana, humanista e inclusiva. Cadernos IHUideias.
UNISINOS, ano 15, v. 15, n. 254, p.4-20, 2017.
MALDONADO-TORRES, Nelson. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un concepto. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón (orgs.). El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores; Universidad Central, de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007. p. 127-168.
MIGNOLO, Walter. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em
política. Cadernos de Letras da UFF. Dossiê: Literatura, língua e identidade, n. 34, p. 287-324, 2008.

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