Ṣàngó

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Ele é Rei, Ọba!
Na dinâmica social e cosmológica negro-africana tem a prerrogativa biomítica da justiça

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Ele é Rei, Ọba!
Na dinâmica social e cosmológica negro-africana tem a prerrogativa biomítica da justiça.
Na diáspora, assume a função da justiça reparadora.
Está ligado ao princípio físico e fenomenológico
do fogo, dos rios,
dos trovões.
O mistério das árvores também o constitui.
Vermelho, branco, vermelho e branco.
Oṣé-Ṣàngó – grande transmissor de àṣẹ.
Possui a função genitora masculina.
Aláàfin – dinastia, corrente de vida ininterrupta.
Ọba de Ọ̀yọ́ – aquele que assegura a expansão da linhagem, a expansão do reino.
Káwó Kábíẹ̀sílẹ̀!











28 Oríkì (louvação) para Ṣàngó, construído a partir das obras: “Agadá: dinâmica da civilização africa- no-brasileira”, de Marco Aurélio Luz (2000); “Os Nàgô e a Morte: Pàde, Àsèsè e o culto Égun na Bahia”, de Juana Elbein dos Santos (2012); e “Dicionário yorubá-português”, de José Beniste (2011).



AFROTSOLOGJA DO ORÒ29


Introdução




Hendrix Silveira

religiosas possuem uma teologia própria. O cristianismo transformou sua teologia em uma disciplina formal. Outras tradições religiosas – como o judaísmo, o islamismo e o hinduísmo –, que têm como revelação um livro sagrado, fizeram o mesmo. Essas teologias são reconhecidas pelo ocidente eurocêntrico, mas as teologias das espiritualidades cuja revelação está na tradição oral sequer são entendidas como tal. No tocante a este ponto, o racismo e a afroteofobia (racismo religioso) têm

A relação entre a teologia e a filosofia, assim como as demais ciências, deve ser dialógica. Entendo que a teologia não pode ser o princípio e o fim em si mesma. Dialogando com as demais ciências e com a filosofia, a teologia se torna fértil de sentidos, o que fortalece nossa fé de forma a intelectualizá-la. Agostinho de Hipona fez isso ao se debruçar sobre Platão, e Tomás de Aquino, ao estudar Aristóteles. Mas se, neste sentido, a teologia enquanto área acadêmica é um grande guarda-chuva que pode abrigar outras ciências, por outro lado, costuma ser menosprezada por elas.
Já ouvi relatos de que professores universitários de outras áreas teriam apontado erroneamente, saliento, que a teologia sequer deveria receber recursos governamentais, uma vez que trataria de doutrinas e não de conhecimento científico. A despeito disso, o Ministério da Educação brasileiro e seus institutos de fomento à pesquisa reconhecem a teologia como área acadêmica e também algumas instituições formadoras. Da mesma forma, a profissão de teólogo é reconhecida pelos órgãos federais como ocupação formal no mercado de trabalho brasileiro.
Por outro lado, há dentro da teologia as ideias recorrentes de que as tradições de matriz africana30 são objetos de pesquisa e não sujeitos, que estas tradições não possuem uma teologia ou ainda que esta é incompleta, como deduzem Franziska
C. Rehbein (1985) e Raimundo Cintra (1985). Em meu livro “Não somos filhos sem pais” (SILVEIRA, 2020), pude contestar tais afirmações e legitimar a teologia dessas tradições como afroteologia.
Afroteologia foi o termo que empreguei para definir de forma mais conceitual a teologia das tradições de matriz africana. O senso comum costuma atribuir à teologia uma natureza exclusivamente cristã, ignorando que todas as tradições


29 Este artigo é uma adaptação de parte de um dos capítulos de minha tese de doutorado em Teologia, defendida em 2019, intitulada “Afroteologia: construindo uma teologia das tradições de matriz africana”, orientada pelo Prof. Dr. Oneide Bobsin e que foi indicada ao prêmio de melhor tese da CAPES na área.
30 Prefiro usar a expressão “Tradições de Matriz Africana” para definir todas as manifestações da espi- ritualidade africana na diáspora que preservaram o culto aos Òrìṣà, Vodun e Nkisi como divindades e não como outra categoria de seres espirituais. Sobre isso já discorri em outros trabalhos.

contribuído para a negação da existência de uma teologia das tradições de matriz africana. O mais ferrenho denunciador disto foi o professor Jayro Pereira de Jesus31, o primeiro afroteólogo acadêmico brasileiro, que viajou o Brasil todo para reafirmar a existência dessa teologia e que tive a oportunidade de conviver por quase dez anos. A afroteologia brota da experiência espiritual nas tradições de matriz africana. Ela parte de princípios próprios da percepção de mundo ancestral africana. Essa percepção confere à afroteologia uma relação singular entre os sujeitos e os signos que os cercam, empregando sentidos próprios, seguindo a lógica cultural das
observações desse povo sobre o mundo visível e o invisível.
Tenho chamado a Revelação Divina nas tradições de matriz africana de Ọgbọ́n Mẹ́fà (Seis Sabedorias) ou corpus oral epistêmico das tradições de matriz africana. Identifiquei Ifá, Oríkì, Adúrà, Orin, Òwe e Orò como sendo partes deste corpus oral sagrado. Os Oríkì são um tipo de louvação, uma série de versos que exaltam as qualidades das divindades, dos ancestrais e também são usados para dignificar pessoas ilustres e importantes para suas comunidades como reis, portadores de cargos ou títulos e chefes de família. Adúrà são as preces entoadas em forma de cantigas, porém sem o acompanhamento de instrumentos musicais. São empregados como invocações à presença imaterial dos Òrìṣà. Orin são os cânticos sagrados dedicados aos Òrìṣà e que lhes servem de evocação para a manifestação em seus descendentes míticos. Assim como os adúrà, também servem de invocação para a força imaterial das divindades. Neles estão relatadas histórias sobre as divindades que nos revelam muito de sua natureza. Nestes cânticos há o acompanhamento de instrumentos musicais tocados por uma orquestra sagrada liderada pelo sacerdote do tambor, o Alágbe.
Cada um destes Ọgbọ́n foi objeto de minha pesquisa no doutorado, mas neste
artigo tratarei especificamente dos Orò, os ritos e liturgias das tradições de matriz


31 Jayro Pereira de Jesus (Olorodè Ògyán kalafò) é licenciado em Ciências Religiosas (2000) e bacharel em Teologia (2006) pela PUCPR, atuou como Conselheiro Técnico do Conselho de Desenvolvimento Eco- nômico e Social do RS, presidente da Associação Nacional de Teólogos e Teólogas da Religião de Matriz Africana, e diretor geral da Escola de Filosofia e Teologia Afrocentrada.



africana, com ênfase no Batuque, tradição que vivencio. Assim este trabalho tem como objetivo atribuir sentidos e propósitos aos Orò a partir de uma reflexão afroteológica.
Como método foi utilizado a exunêutica. Este método foi desenvolvido por mim a partir do mestrado e aprofundado durante o doutorado. Consiste na observação e interpretação “desde dentro” das tradições de matriz africana, convergindo alguns conceitos afins como nos Estudos Culturais, Estudos Decoloniais, Teologia da Libertação, Marxismo Cultural, Pedagogia do Oprimido, Pensamento Pós-Abissal e Afrocentricidade. De forma alguma farei aqui descrições densas dos ritos, pois não é esta a proposta. Este não é um trabalho antropológico e desejo que os ritos sejam preservados o máximo possível, pois, como diz o provérbio: “Biri-biri bò wọn lójú ọ̀gbẹ̀ri nko mo Màrìwo. Trevas cobrem seus olhos, o não iniciado não pode conhecer o mistério do Màrìwò” (SANTOS, 2002, p. 21).
Assim, quando os ritos forem de alguma forma detalhados, será apenas para que se faça a análise afroteológica sobre eles, de forma a auxiliar na sua compreensão. Buscarei nestes ritos semelhanças entre as diferentes tradições, entendendo que essas diferenças são apenas na forma, nunca nos propósitos. Por fim, apresento minhas considerações finais.
Darei ênfase a três ritos neste trabalho, pois estão presentes em quase todas as tradições de matriz africana, seja as que foram estruturadas na diáspora, ou mesmo as originárias do próprio continente africano: o Borí, o Ọ̀sẹ́ e o Ìsinkú.
Borí3233


O Borí é um rito de (re)nascimento. Coloco o “re” entre parênteses porque para as tradições de matriz africana o ser humano nasce duas vezes: o parto biológico,

32 A forma escrita deste termo está propositalmente em desacordo com a literatura antropológica atual, pois tenho refletido de modo diverso dos pesquisadores dessa área. A maioria – que se repete sem se aprofundar no sentido da palavra – apresenta a escrita bọrí ou ainda ebọrí intentando criar uma

advindo do ventre de sua mãe e o nascimento espiritual ritualizado no Borí. De acordo com a cosmopercepção africana34, o nascimento de uma pessoa só se completa após concluído o rito de Borí, pois este rito reúne o indivíduo ao cosmo, algo rompido no momento do corte do cordão umbilical.
De acordo com a tradição oral, este é o rito mais importante, pois quem o realiza estabelece um vínculo com o seu Òrìṣà, garantindo um relacionamento mais íntimo e profundo. Este rito também é escatológico, pois garante longevidade e uma pós-vida plena, garantida na ancestralização.
A feitura de Borí está relacionada à noção ontológica de humanidade, uma vez que somos seres antropoteogônicos35, ou seja, possuímos uma origem biológica e teológica. A cabeça é considerada a parte do corpo mais importante, o que é comprovado pela própria natureza, ao ser a primeira a surgir no momento do nascimento, e é a sede do conhecimento, da inteligência, da individualidade, da sabedoria e da razão, pois possui todas as ferramentas para que o ser humano os adquira (olhos, ouvidos, nariz, boca) (BENISTE, 2008).
O ara (corpo) enquanto elemento físico está teologicamente relacionado à criação divina. A constituição do ser humano enquanto ser biológico está relacionada com a contribuição dos Òrìṣà na construção de seu DNA. Ou seja, quando o ser humano é criado, um Òrìṣà contribui para completar o código do DNA dessa pessoa, que assim passa a estar diretamente relacionada a ele; se torna seu descendente mítico. É por isso que percebemos semelhanças físicas e arquetípicas entre filhos de um mesmo Òrìṣà. A isso convencionamos chamar de orixalidade. Mas além da orixalidade também há a ancestralidade, ou seja, a contribuição de nossos ancestrais biológicos para a construção de nosso corpo enquanto seres biológicos. Então, somos frutos de uma contribuição mítica e ancestrálica na nossa concepção. Juana Elbein dos Santos (2002) explica bem isso:

palavra que expresse o que acreditam significar “alimento à cabeça” (ebọ + orí). No entanto, levanto a

suspeita, em outros trabalhos, sobre a veracidade deste termo e deste significado, sobretudo por causa de sua pronúncia: bọrí, pronúncia “bórí”, que é bem diferente da pronúncia corrente em todo o Brasil e na própria África: “bôrí”. Isto pode indicar um significado diferente: bi + orí, o nascer ou renascer da cabeça.
33 O rito de borí sempre foi entendido no Batuque como um rito de vinculação ao Òrìṣà e de fortaleci- mento da cabeça, o que acaba por ser entendido pelos vivenciadores e vivenciadoras como uma classe ou categoria de iniciação. Mas para o Candomblé, a iniciação se dá apenas quando a pessoa realiza a “raspagem”, rito de vinculação com o assentamento de Òrìṣà. Para estes, o borí é apenas uma oferenda de fortalecimento que não cria laços com os Òrìṣà, nem inclui quem o realiza no quadro de membros da comunidade terreiro. Entendemos que é justamente a falta de conhecimento afroteológico a respeito do borí que promove, no Candomblé, um entendimento mais superficial e pragmático deste importante rito.

34 Em sua obra, a pesquisadora nigeriana Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí (1997) faz uma crítica aos usos univer- sais do conceito de cosmovisão. Ela cunhou a expressão world-sense para marcar a diferença, em relação à percepção da realidade, entre os yorùbá, da “cosmovisão” ou “visão de mundo” (worldview) utilizada no Ocidente. Sua crítica aponta para o fato de que ao privilegiar a “visão” no contexto de apropriação cognitiva das coisas do mundo, o Ocidente valoriza o que aos olhos parece ser diferente, o que propagou as discriminações de todo o tipo. Mas, segundo ela, os africanos percebem o mundo por meio de todos os sentidos e não apenas a visão, daí o world-sense ou “cosmosensação”. No entanto, Wanderson F. Nasci- mento, professor de filosofia da UnB, ao traduzir o texto sugere a expressão “cosmopercepção” por julgar que a palavra sense é mais abrangente.
35 Expressão criada pelo afroteólogo Jayro Pereira de Jesus (informação verbal).



Se os pais e antepassados são os genitores humanos, os òrìṣà são os genitores divinos; um indivíduo será “descendente” de um òrìṣà que considerará seu “pai” – Baba mi – ou sua “mãe” – Ìyá mi – de cuja matéria simbólica – água, terra, árvore, fogo, etc. – ele será um pedaço. Assim como nossos pais são nossos criadores e ancestres concretos e reais, os òrìṣà são nossos criadores
simbólicos e espirituais, nossos ancestres divinos (SANTOS, 2002, p. 103).

Outra parte do corpo que integra essa percepção de mundo são os membros inferiores (ẹsẹ̀). Wándé Abímbọ́lá (1981, p. 17) aponta os ẹsẹ̀ como “uma parte vital da personalidade humana” e completa:

Ẹsẹ̀, para os iorubás, é o símbolo do poder e atividade. Ele é, entretanto, o elemento que habilita o homem para lutar e agir adequadamente na vida, para que ele possa realizar o que foi designado para ele, pela escolha do Orí. Como Orí, ẹsẹ̀ é reconhecido como um òrìṣà que precisa ser cuidado, na intenção de conseguir o sucesso. Por isso, quando um homem faz um sacrifício para seu Orí, parte do sacrifício é também oferecido para ẹsẹ̀. (ABÍMBỌ́LÁ, 1981, p. 17)

Sob o ponto de vista espiritual, orí (cabeça), ara (corpo) e ẹsẹ̀ (pernas) são partes constituintes da personalidade humana que se inter-relacionam com o meio físico e o espiritual ao mesmo tempo. Isto nos constitui como seres antropoteogônicos, ou seja, somos criados como seres biológicos e hierofânicos, pois nossos corpos também são uma manifestação do sagrado.
Basicamente o nosso ser espiritual possui “múltiplas almas” (BASCOM, 1960), mas neste texto abordarei brevemente cinco delas: òjìji, ẹ̀mí, èémí, orí-ínú e ẹsẹ̀.
Òjìji é a sombra. Ela surge no nascimento e não tem nenhuma função especial senão a de acompanhar o corpo. Ela “não possui substância e não requer nenhuma nutrição”, por isso não são realizados rituais a ela, contudo, segundo alguns é ela que viaja pelo mundo dos sonhos quando estamos dormindo e caso não retorne a pessoa jamais acordará. (BASCOM, 1960, p. 4) Para outros, essa é a função do Ẹ̀mí. A sombra é o símbolo do “doble espiritual”, o ẹnikéjì36 que reside no Ọ̀run (SANTOS, 2002, p. 205; 216).
Ẹ̀mí é geralmente traduzido como “alma” em português e em inglês “soul”.
É a expressão simbólica dos sentimentos e emoções, que no plano físico está
36 “Ẹnikéjì é o nome dado ao duplo que vive no ọ̀run. Todos os seres têm o seu ‘outro lado’ exatamente como é aqui na Terra; quando são feitas obrigações, as oferendas visam atingir o ẹnikéjì das pessoas. Ẹni – pessoa, kéjì – segunda.” (BENISTE, 2008, p. 181)

representado pelo coração (ọkàn). Èémí é o espírito sagrado, o ar insuflado por Olódùmarè em nossas narinas logo ao nascer, que nos dá vida e é representado pela respiração. Tanto William Bascom (1960) quanto Wándé Abímbọ́lá (1981) fundem essas duas “almas” em uma só e a chamam unicamente de Ẹ̀mí, cuja manifestação física é a respiração; é a própria força vital que garante a vida e permite desenvolver atividades laborais. O Ẹ̀mí se nutre dos alimentos que consumimos – se não comermos ele irá embora, extinguindo nossa vida no Ayé –, mas também se fortalece com parte das oferendas sacrificiais ao Orí. De acordo com William Bascom (1960, p. 4), há dúvidas entre seus informantes sobre qual das “almas” viaja nos sonhos:

De acordo com os informantes de Meko, é a respiração que deixa o corpo durante sono, visitando em sonhos, lugares distantes. Quando a pessoa desperta ele pode dizer sobre as coisas que ela viu e fez em outras cidades, considerando que outros saibam que o seu corpo permaneceu no mesmo quarto com eles. Quando a respiração for longe, não se pode acordar depressa esta pessoa [...]. Os informantes de Ifẹ́ concordaram que é a respiração que parte do corpo em sonhos, mas nos asseguram que não há perigo de despertar uma pessoa quando está longe, desde que ela retorne imediatamente. Por outro lado, um informante de Iganna manteve que é a sombra que viaja em sonhos, argumentando que se pode ver uma pessoa dormindo respirando normalmente, e que se a respiração deixar uma pessoa ou sua sombra não retornar, ele morrerá.

Para Wándé Abímbọ́lá (1981), na concepção da criação humana, Òṣàálá criou os corpos humanos (ara) feitos da massa/lama primordial, mas são estáticos, enrijecidos. Ele leva esses corpos a Olódùmarè, que lhes dá o Ẹ̀mí, a alma, que reside no ọkàn, o coração físico que bate indicando que aquele ser está vivo. Ajàlá, o oleiro, é a divindade responsável pela construção das cabeças, não a cabeça física – esta quem faz é Òṣàálá -, mas a cabeça mítica, o orí-ínú, a “cabeça de dentro”, ou seja, o centro mítico de nossa existência individualizada.

Orí é a essência da sorte e a mais importante força responsável pelo sucesso ou fracasso humano. Além disso, Orí é a divindade pessoal que governa a vida e se comunica, em prol do indivíduo, com as demais divindades. Qualquer coisa que não tenha sido sancionada pelo Orí de uma pessoa, não pode ser aprovado pelas divindades (ABÍMBỌ́LÁ, 1975, p. 2).



É no orí que está determinado nosso “projeto mítico-social”37, que muitas vezes é entendido como destino, o Odù, falado anteriormente, por isso ele também é chamado de ìpọ̀nrí ou ìpín. Já o ẹsẹ̀, como disse antes, é o “símbolo do poder e atividade” da possibilidade de realização das designações do Orí. (ABÍMBỌ́LÁ, 1981, p. 4) Todos estes elementos estão representados no Igbá-Orí que recebe oferendas de tempos em tempos através do rito de Borí.

Se por um lado o Orí-inú do àiyé reside no corpo, na cabeça de cada indivíduo, sua contraparte, o Orí-ọ̀run é simbolizado materialmente e venerado. Durante as cerimonias de Borí (= Bọ + orí = adorar a cabeça) ele é invocado e os sacrifícios são oferecidos ao Orí-inú, sobre a cabeça da pessoa, e a Igbá-orí, cabaça simbólica que representa sua contraparte no
ọ̀run. (SANTOS, 2002, p. 205)

Em África, o Òrìṣà é uma divindade que pertence à coletividade de uma família, bairro, aldeia ou reino, por isso o culto a Orí é importante, pois é ele que individualiza cada ser humano tornando-o único. O Orí é entendido como uma divindade poderosa que define os caminhos dos seres humanos antes mesmo dos próprios Òrìṣà. Isto é percebido em um de seus Oríkì, narrado no Odù Ògúndá Méjì (ABÍMBỌ́LÁ, 1981, p. 11):

Orí, pẹ̀lẹ́
Atèté níran.
Atètè gbe ni kòòṣà Kò sóòṣà tíí dá nií gbè Lẹ́yín orí ẹ́ni
Orí, pẹ̀lẹ́ Orí àbíyè
Ẹ́ni orí bá gbẹbọọ rẹ̀ Kó yọ̀ sẹ̀sẹ̀

Orí, eu te saúdo
És aquele que sempre se lembra de nós És o que abençoa antes de qualquer òrìṣà

37 Expressão criada pelo afroteólgo Jayro Pereira de Jesus (informação verbal).

Nenhum òrìṣà abençoa uma pessoa Sem o consentimento de seu Orí Orí, eu te saúdo
És quem permite que as crianças nasçam vivas
Aquele cujo sacrifício é aceito por seu Orí
Se alegrará abundantemente

Então temos, na concepção africana, os Òrìṣà como divindades representativas da espiritualidade coletiva e o Orí como representativo da espiritualidade individual. Contudo, no Brasil, Òrìṣà e Orí se fundem na concepção de espiritualidade individual e coletiva, pois se lá um único òrìṣà é o conector de toda uma comunidade, clã ou família – o que também ocorre aqui –, na diáspora vários Òrìṣà se convergem na constituição de uma única pessoa.
Se tornando uma divindade pessoal, o Òrìṣà se relaciona com o orí, o ara e o ẹsẹ̀. Assim temos um Òrìṣà principal que reside e rege a cabeça (orí) do iniciado, outro que rege o corpo (ara) e outro que rege as pernas e pés (ẹsẹ̀). Muitas vezes, na tradição do Batuque, as pernas e os pés são separados por acreditarem ser de categorias diferentes, ficando os pés a cargo exclusivo do Bara, um Èṣù específico e individual para cada pessoa.
O que dinamiza a relação entre todos estes elementos é o poder de Èṣù, cuja função é a de transmissor do Àṣẹ, o poder divino de criação e manutenção da vida. Como ele é o intercessor de tudo, Èṣù também se estabelece como o mediador das forças que agem no corpo, um agente espiritual que garante a funcionalidade de todos os órgãos do corpo humano, além de seu potencial espiritual. Talvez por isso que Juana Elbein dos Santos (2002, p. 181) o considera como Ọbara, um epíteto para o Èṣù, que é o “Rei do corpo” (Ọba + ara).
É durante o rito de Borí que, no Batuque, o orí, o ara e o ẹsẹ̀ recebem oferendas sacrificiais. A longevidade e a pós-vida garantidas na ancestralização são asseguradas pelo rito escatológico. A feitura de Borí está intimamente relacionada à noção ontológica de humanidade e deve ser refeita todos os anos como num contrato mítico entre a pessoa, as divindades envolvidas na sua constituição e Ìkú, a Morte.
Ao observar as liturgias das tradições de matriz africana é perfeitamente perceptível o simbolismo sexual que dela emerge. Isso é aparente nas principais



liturgias como o borí que, a partir da análise, figuram como representações simbólicas de um ato sexual, elemento da ordem cósmica; uma hierogamia38. A teologia aqui é de que o ato sexual é gerador de vida, logo, representações simbólicas desse ato se apropriam de forma teológica de sua força que, então, será direcionada para a intenção do ritual.
No Batuque, tradição de matriz africana que vivencio e estudo, podemos perceber essas nuances nitidamente. Na concepção afroteológica, o espaço sagrado onde se destinam os rituais imolatórios de iniciação, que no Batuque é o pejí ou “quarto de Òrìṣà”, ou ainda “quarto de santo”; e no Candomblé é o hunkọ ou camarinha, é um verdadeiro útero mítico. Ali são realizados os ritos de borí.
O borí, reforço, é um ritual iniciático de renascimento e cosmologização que garante a individuação da pessoa diante do coletivo em que ela está incluída, possibilitando a construção de sua identidade; também a reintegra ao cosmo, laço este rompido com o corte do cordão umbilical no seu nascimento biológico. O borí garante ao indivíduo plena integração à comunidade, estabelecendo vínculos familiares tanto com as divindades como com os outros membros do grupo; e ainda mantém as estruturas sociais e hierárquicas dentro da comunidade, como aponta Jay (1997, p. 99-100):

O ritual sacrificial poderá servir, assim, de várias maneiras, como garantia e, por conseguinte, como meio para criar uma descendência patrilinear, não como um fato da natureza, mas como princípio de organização social. Todo a vez que o sacrifício atuar dessa maneira realizadora, ele será aquilo que Tomás de Aquino denominou de “sinal eficaz”, isto é, que produz aquilo que ele significa: neste caso, a incorporação como membro da descendência paterna (Summa Theologica, III, q. 62;1). Segundo Tomás de Aquino, como também segundo os sacrificadores tribais, a atuação eficaz de um ato simbólico dependerá, é claro, indiretamente da existência de outras estruturas (social, religiosa, linguística, legal, etc.). Em outras palavras, o sacrifício nunca “causaria” a participação como membro de uma linhagem
paterna lá onde não existissem linhagens paternas.

É no centro do pejí/hunkọ/útero que o neófito é colocado sentado no chão ou sobre uma esteira, representação da terra. No linguajar do Batuque há a expressão “fazer chão” ou “ir pro chão”, que significa cumprir o rito de borí, ficando recluso por


38 Para Mircea Eliade (1992, p.31), o resultado da hierogamia, ou seja, do ato sexual primordial ou divino, é a criação cósmica.

alguns dias no terreiro, devendo dormir no chão, sobre um colchonete. O uso de um colchonete no lugar da esteira, corrente no Candomblé, se dá provavelmente devido às baixas temperaturas do território gaúcho. Na maioria das tradições religiosas não patriarcais a terra é entendida como uma divindade feminina associada ao poder gerador de vida. Este entendimento se dá pela percepção material do crescimento das plantas que brotam do “ventre” da terra. O mundo natural e o espiritual estão sempre conectados. Para os yorùbá, o chão (Ilẹ̀) não é uma divindade, mas sim a morada de Onílẹ̀, uma divindade feminina que ganhou de Olódùmarè o governo da terra (PRANDI, 2001. p. 410-415).
No Batuque, além de o neófito ficar sentado no chão, parte do àṣorò39 é recolhido numa vasilha com água chamada de ẹkọ. Esta água é despachada no solo, seguindo alguns preceitos, alimentando a terra/Onílẹ̀. O chão está presente em todos os momentos do (re)nascimento do indivíduo. A saudação mais simbólica nas tradições de matriz africana consiste na pessoa se deitar ao solo, com o corpo estirado. Mais uma vez notamos aqui a importância do chão como símbolo feminino: mulheres deitam de lado e viram para o outro, sem encostar o ventre no chão, pois isso poderia ser entendido como se ela estivesse ofertando seu útero à Onílẹ̀. Já os homens deitam de bruços, com seu órgão genital encostando no chão, pois não há problema de se oferecer o poder gerador masculino à Onílẹ̀. A mesma teologia é pensada no tocante à morte dos iniciados. Os corpos dos mortos são enterrados para que assim, no “útero da terra”, possam renascer no outro mundo.
No colo do iniciante é depositado o ìgbá, um grande alguidar de barro, espécie de vasilha onde o fundo é muito mais estreito que a borda, mas também pode ser uma grande bacia de louça ágata; assim como o peji, todas as vasilhas, vasos, panelas e objetos cuja forma pode conter algo são representações simbólicas do útero que contém a força e poder de fertilidade feminina. Dentro dele é que ficam certos implementos que serão sacralizados.
Temos aqui dois elementos cruciais para a geração de vida: a faca/falo e o alguidar/útero. É a fusão de ambos que garante a geração, manutenção e continuidade da vida. E isso se dá pelo àṣorò, o sangue que verte dos animais sacralizados e que carrega
a sua força vital e, ao mesmo tempo, é a representação simbólica do sêmen que fecunda.
39 Àṣorò é o termo empregado no Batuque especificamente para o sangue dos animais sacralizados, nunca empregado para qualquer outro tipo de sangue (ẹ̀jẹ̀). Identifico duas possibilidades sobre a origem dessa palavra: a) Àṣẹ + orò, significando “a força criadora que emana do rito”; b) Àwa + ṣe + orò, signifi- cando “nós fazemos o ritual”. No Candomblé o termo empregado para o sangue das sacralizações é ẹ̀jẹ̀.



Segundo Eliade (1992. p. 29): “Cada ritual tem um modelo divino, um arquétipo, [...] todos os atos religiosos são considerados como tendo sido fundados pelos deuses, pelos heróis civilizadores, ou por ancestrais míticos”. Assim, os ritos imolatórios são a representação ou representificação, no sentido de “tornar presente novamente” os eventos contidos nas histórias sagradas:

Um sacrifício, por exemplo, não só reproduz com exatidão o sacrifício original, revelado por um deus ab origine, no princípio dos tempos, mas também é realizado naquele mesmo momento mítico primordial; em outras palavras, cada sacrifício realizado repete o sacrifício inicial e coincide com ele (ELIADE, 1992, p. 38).

É o que ocorre nas tradições de matriz africana. De acordo com a tradição oral e amplamente registrada na literatura antropológica (VERGER, 1997; BENISTE, 2006, 2008; SANTOS, 2002; PRANDI, 2001), Òṣàálá recebeu de Olódùmarè a incumbência de criar o mundo. Para esse fim, ganhou dEle o “saco da criação” que continha um punhado de terra, uma galinha e um pombo. Depois de uma série de aventuras (ou desventuras) narradas nas mais variadas versões deste ìtán (história sagrada), Òṣàálá – por vezes chamado de Ọbàtálá em algumas versões ou Odùduwà em outras – chega ao pântano primordial que era o próprio caos e derrama a terra nesse caldo formando um montículo, colocando a galinha e o pombo a ciscar. Este ato fez com que o montículo se expandisse ao ponto de se tornar toda a Terra.
Embora a criação do mundo não tenha se dado em função de um ritual imolatório, percebe-se a importância dada à galinha (adìẹ) e ao pombo (ẹiyẹlẹ̀) para a criação e expansão do mundo. Nos ritos de borí, os principais animais imolados são o pombo e a galinha ou galo. Durante esse processo, o àṣorò desses animais é vertido sobre o orí do neófito, esperando que isso o cosmologize, amplie, expanda seus sentidos e sua espiritualidade como um ser individual e único. Isto também é observado quando, na continuidade do processo iniciático, os pombos são temperados e assados, regados com um pouquinho de mel (símbolo natural de doçura e, por extensão, coisas boas, agradáveis) e entregue para os iniciados comerem. Ao contrário do que acontece com a galinha que é servida em pratos típicos para toda a comunidade no banquete comunal, o pombo nutre tão somente os iniciados, reforçando seu papel de individuação. A importância do pombo está

alicerçada numa simbologia que “representa honra, prosperidade e longa vida. É o que se espera daquele que o use nos sacrifícios. A sua serenidade quando voa, sua aparência e elegância de movimento atribuem-lhe uma espécie de santidade” (BENISTE, 2008, p. 307). O pombo voa alto, o que é símbolo para a expansão, a dinamização e a cosmologização do orí.
Retomando o sentido hierogâmico que apontei nestes rituais, pode-se ver o ọ̀bẹ/falo que faz verter o àṣorò/sêmen que fecunda o igbá/útero que aguarda fértil de implementos que então se tornarão cheios de vida. O mesmo acontece com o iniciado, que será entendido a partir daí como um (re)nascido, uma (nova) pessoa, cheia de vida e plenamente humanizada. Da mesma forma que um nascituro está coberto com o sangue de sua mãe biológica, o neófito (re)nasce coberto pelo sangue sagrado (àṣorò), que assim se torna símbolo de seu (re)nascimento como uma (nova) pessoa para a tradição; se inscreve num projeto de humanidade que o individualiza; se torna parte da comunidade por laços de consanguinidade mítica, descendência do Àṣẹ; e se confirma a sua ascendência mítica com o Òrìṣà ao qual foi consagrado.
Na sequência da liturgia batuqueira, o neófito, ainda dentro do pejí/útero, é erguido pelo Bàbálórìṣà ou Ìyálórìṣà e pelo padrinho ou madrinha, um de cada lado, como se fossem os parteiros deste novo ser. Em seguida ele é conduzido até a porta do pejí/útero numa clara alusão a um parto. Ao final desse processo o iniciado será considerado um, com os Òrìṣà e com a comunidade. Será um ser humano completo.
Ọ̀sẹ̀

Os ritos de renovação e restituição são chamados de Ọ̀sẹ̀. Nos dias de hoje, esta palavra define a semana yorùbá de sete dias40, mas antes da colonização a semana possuía quatro dias, sendo que cada um deles é consagrado a um Òrìṣà. De acordo com Pierre Verger (1997, p. 88), este dia consagrado – que ele chama de “domingo” – também é chamado de Ọ̀sẹ̀. Nenhuma das duas formas está errada já que a semana é um conjunto de dias, sendo que para alguns grupos religiosos geralmente um deles é o de devoção à sua divindade particular. Para os judeus, por exemplo, o shabāt é o dia dedicado a Javé, enquanto que para os cristãos é o domingo

40 A semana moderna yorùbá é definida da seguinte forma, de acordo com Beniste (2008): ọjọ́ ajẹ́ – dia do sucesso financeiro (segunda-feira), ọjọ́ ìṣẹ́gun – dia da vitória (terça-feira), ọjọ́ rú – dia da confusão (quarta-feira), ọjọ́ bọ̀ – dia das novas realizações (quinta-feira), ọjọ́ ẹti – dia dos problemas (sexta-feira), ọjọ́ àbámẹ́ta – dia das três resoluções (sábado) e ọjọ́ ìsinmi – dia do descanso (domingo).



(dies Dominicus, “dia do Senhor”). Neste contexto, o uso da palavra “domingo” por Pierre Verger (1997) refere-se ao dia de dedicação ao culto das divindades. Assim, no dia chamado de ọjọ́ Awo, é o dia em que os devotos de Ọ̀rúnmìlà o cultuam; ọjọ́ Ògún é o dia para os devotos do Òrìṣà civilizatório; no ọjọ́ Jákúta é a vez dos iniciados à Ṣàngó; e ọjọ́ Ọbàtálá é o dia consagrado a Òṣàálá. Para cada um dos grupos o dia consagrado à devoção de um Òrìṣà é o seu domingo.
Seguindo a linha de pensamento de Pierre Verger, há os pequenos “domingos” (Ọ̀sẹ̀ kékeré), onde são renovadas as oferendas incruentas, ou seja, quando se oferecem pratos à base de vegetais como cereais e tubérculos. E os grandes “domingos” (Ọ̀sẹ̀ nlá), quando são realizadas procissões, onde o assentamento do Òrìṣà é lavado com água da nascente de um rio, e sacralizações acompanhadas de grandes festas coletivas, muitas vezes patrocinadas pelo rei local ou dono de mercado; onde os Òrìṣà podem se manifestar em seus neófitos, dançar entre seus descendentes e abençoar todas as pessoas que estiverem presentes.
Os sacerdotes fazem um grande banquete público onde o povo se farta em agradecimento às bênçãos das divindades e de seu descendente vivo, o rei. Os próprios Òrìṣà se apresentam na festa: primeiro Èṣù se manifesta em oluponán, seu sacerdote; depois vem os outros Òrìṣà: Ògún, Ṣàngó, Ọya e, por fim, Òṣàálá. Todos se curvam para receber as benesses dos que vieram do Ọ̀run especialmente para o festejo.
Existem dois grupos bem definidos durante os festejos. Os sacerdotes são saudados com a expressão em yorùbá kabiesi, a mesma saudação aos reis, o que nos mostra a importância desse cargo; e os Ìyàwórìṣà, as “esposas” do Òrìṣà. Apesar desse nome, os Ìyàwórìṣà, ou na sua forma diminutiva Ìyàwó, podem ser tanto homens como mulheres. Isto porque o neófito está sujeito ao Òrìṣà do qual é consagrado, não tendo nenhuma outra conotação. Os Ìyàwó são em grande número e foram todos iniciados por um Alàṣẹ. Em alguns casos, o Òrìṣà pode se manifestar em vários Ìyàwó ao mesmo tempo; em outros lugares, apesar de todos serem suscetíveis à manifestação do Òrìṣà, ele possuirá apenas um.
Mircea Eliade (1992) define que povos e culturas antigas possuem um rito de “renovação do tempo”. Este rito reflete a percepção de mundo de que o tempo é cíclico, logo os anos não avançam no tempo, mas se renovam a cada ciclo. “As divisões do tempo são determinadas pelos rituais que orientam a renovação das reservas alimentares, isto é, os rituais que garantem a continuidade da vida

da comunidade por inteiro.” (ELIADE, 1992, p. 55) Devido ao caráter urbano das tradições afrodiaspóricas, as datas já não coincidem mais com as da colheita como ocorre entre os diferentes povos da África. As datas se tornaram mais dinâmicas, mas o propósito ainda é o mesmo: garantir a subsistência da comunidade por meio do alimento. As grandes festas do Batuque (ẹbọ) e as do Candomblé (ṣiré) são a adaptação a essas condições, daí sempre haver um banquete.
Era comum, em tempos idos, que as pessoas desejosas de que certa festividade acontecesse diziam que esperavam pelo “retorno da festa” e não “pela próxima” como dizemos hoje. Isso demarca a concepção de uma ciclicidade e, por extensão, da renovação do tempo e dos eventos.

O fato essencial é que em toda parte existe uma concepção de final e de começo de um período de tempo, baseada na observação dos ritmos cósmicos e que faz parte de um sistema mais abrangente [...] de regeneração periódica da vida. [...] uma regeneração periódica do tempo pressupõe, de um modo mais ou menos explícito – e, em especial, nas civilizações históricas – uma nova criação, ou seja, uma repetição do ato cosmogônico (ELIADE, 1992, p. 56).

Os ritos de renovação do tempo são importantes justamente porque garantem a continuidade das estruturas conhecidas. Segundo Mircea Eliade (1992), há três aspectos presentes nos ritos de renovação do tempo: as purificações; a demolição dos altares e subsequente reconstrução; os sacrifícios seguidos de festas e banquetes.
No Brasil, muitos dos elementos ritualísticos africanos permaneceram na estruturação dos cultos aos Òrìṣà, Vodun e Nkisi, como no Candomblé da Bahia, no Tambor de Mina do Maranhão, no Xangô do Recife, na Macumba do Rio de Janeiro e no Batuque do Rio Grande do Sul. Da mesma forma, conseguimos perceber os três aspectos delineados por Mircea Eliade (1992) nos ritos de Batuque e Candomblé, tanto na forma coletiva quanto individual.
No caso específico do Batuque do Rio Grande do Sul, durante o mês de dezembro são realizadas purificações coletivas nas pessoas da comunidade, tanto iniciadas quanto não iniciadas. Estas purificações, chamadas de “limpeza de final de ano”, visam tornar essas pessoas aptas a entrar no novo ano, mesmo que secular, expiadas de suas faltas. “E este é o significado das purificações rituais: uma



combustão, uma anulação dos pecados e das faltas do indivíduo e da comunidade como um todo” (ELIADE, 1992, p. 57).
A palavra Ọ̀sẹ̀ permaneceu como um rito anual, embora deturpada pela nova realidade. No Batuque, Ọ̀sẹ̀ tem o significado de “limpeza ritual dos assentamentos dos Òrìṣà”, o que não difere muito da realidade do Candomblé.
Durante o Ọ̀sẹ̀ batuqueiro – que geralmente ocorre no mês de dezembro, mas pode ser realizado a qualquer tempo – os assentamentos dos Òrìṣà são retirados das prateleiras onde estão guardados dentro do pejí. Os òkúta, o coração desses assentamentos e elemento hierofânico do culto, são retirados de suas vasilhas com cuidado e carinho para serem limpos, juntamente com os implementos sagrados que compõem o Igbá. O quarto sagrado onde ficam os assentamentos dos Òrìṣà pode ser completamente desmanchado, as prateleiras podem ser destruídas e substituídas por novas, as quartinhas esvaziadas, tudo é limpo, deixado como novo. Cortinas e adereços são retirados e trocados por novos. Todo o quarto dos Òrìṣà, representação mítica do útero que se renova a cada ciclo menstrual, e que também representa simbolicamente o “centro do mundo” (axis mundi), é rearranjado, deixado como novo, regenerado a cada ano. Os implementos sagrados serão realocados em seus lugares, representação da presença das divindades no mundo.
Por fim, refeito, reconstruído, reorganizado, o pejí está pronto para as renovações anuais das imolações que servirão de repasto ao povo e às divindades na grande festa pública que acolhe iniciados e não iniciados, assim como os Òrìṣà que se manifestam em seus Ìyàwó.
Todos esses elementos completam o ciclo ritual anual garantindo a continuidade da vida e do cosmo. “Cada Ano Novo é considerado como o reinício do tempo, a partir do seu momento inaugural, isto é, uma repetição da cosmogonia” (ELIADE, 1992, p. 57).
Ìsinkú41

Pode-se dizer que a filosofia de vida yorùbá está sustentada no tripé: riqueza (ọlà), filhos (ọmọdé) e vida longa (aìkú). A vida longa é o mais importante, pois possibilita a conquista das outras duas. De fato, a vida é entendida sempre como boa, uma dádiva de Olódùmarè, por isso os yorùbá entendem que a vida é o bem mais


41 Este subtítulo é uma adaptação revisada e atualizada de um artigo que publiquei na Revista Identi- dade! das Faculdades EST. (SILVEIRA, 2012).

precioso que temos e viver bem significa seguir os valores civilizatórios legados pelos antepassados que são rememorados, de tempos em tempos, em rituais específicos.
Foram os antepassados que deixaram para seus descendentes os princípios éticos e morais, assim como o conhecimento da cultura religiosa que serve de cimento na construção das suas vidas. A vida tem que ser vivida na sua plenitude.
A percepção de mundo yorùbá é completamente sensitiva: o tato, o olfato, a visão, a audição e o paladar estão presentes em todos os ritos, seja de nascimentos, casamentos, iniciações ou morte.
A vida é sempre celebrada. Entendo que na visão de mundo ocidental, bom é estar morto, pois a vida é vista como algo difícil, o sofrimento é entendido como inerente à vida e que o melhor lugar para se estar é perto de Deus, ou seja, morto.
A palavra “escatologia” é oriunda do grego “éscatos” (εσχατος), que significa “finais” ou “recentes eventos” e “logos” (λογος), estudo, sabedoria ou conhecimento (CAUTHRON, 1984, p.304). Segundo o autor, este estudo se refere à interpretação dos textos sagrados sobre os acontecimentos no final da história do mundo (CAUTHRON, 1984). Neste sentido, a escatologia yorùbá busca responder à questão: para onde vamos ao morrermos?
Para os yorùbá, a existência transcorre simultaneamente em dois planos: no Ayé e no Ọ̀run. O Ayé42 é a Terra, o mundo material, imanente, onde vivem os ara-Ayé, os seres naturais. O Ọ̀run é o espaço mítico sobrenatural, imaterial, transcendente, onde vivem os ara-Ọ̀run, os seres sobrenaturais. Quanto ao Ọ̀run, Juana Elbein dos Santos (2002, p. 72) é taxativa ao descrevê-lo:

[…] o espaço ọ̀run compreende simultaneamente todo o do àiyé, terra e céu inclusos, e consequentemente todas as entidades sobrenaturais, quer elas sejam associadas ao ar, à terra ou às águas, e que todas são invocadas e surgem da terra. É assim que os ara-ọ̀run são também chamados irúnmalẹ̀ [...].

É no Ọ̀run que se encontra Olódùmarè, os Òrìṣà e os ancestrais. Olódùmarè é o Deus único na percepção de mundo dos yorùbá e os Òrìṣà são divindades criadas por Ele para serem agentes da manutenção da Criação.

42 Em todas as produções textuais investigadas, a palavra yorùbá para “Terra”, no sentido de planeta, é escrita pelos autores como àiyé. Mas durante o curso de fruição no idioma yorùbá promovido pelo Prof. Gideon Babalọlá Ìdòwú, nativo de Lagos, Nigéria, este escrevia Ayé. Ao ser questionado, informou que, as- sim como ocorreu com a língua portuguesa, a língua yorùbá também sofreu reformas ortográficas. Então, desde 1974, esta é a forma oficial de escrever.



Cada Òrìṣà ganha seus poderes de Olódùmarè. Esses poderes são muito específicos, fazendo com que os Òrìsà se tornem interdependentes no cumprimento de seus papéis no cosmo. Este é o valor civilizatório africano da complementaridade, fazendo com que alguns Òrìṣà tenham papéis importantes no processo escatológico como é o caso de Ọ̀rúnmìlà, Ìkú e Ọya.
Ọ̀rúnmìlà é a testemunha de Olódùmarè, conforme anunciado anteriormente. Ele estava na criação do mundo e dos seres humanos, por isso é regente do mundo- além e também deste mundo. Por ser testemunha, Ọ̀rúnmìlà sabe tudo o que deve ser feito quando chegar a morte de cada ser humano, incluindo a data de morte, já que Ele presencia quando os seres humanos a contam a Èṣù Oníbodè, o guardião dos portões que separam o Ọ̀run do Ayé.
Outra importante divindade escatológica é a Morte, pois, segundo José Beniste (2008, p. 191), ela é vista “como um agente criado por Olódùmarè para remover as pessoas cujo tempo na Terra tenha terminado”. Ìkú, a Morte, é uma divindade masculina cuja lógica de existência é dirigida a pessoas velhas, motivo pelo qual a morte de um jovem é vista como uma tragédia. Um ìtán revela a origem de seu nefasto ofício:

No dia em que a mãe da morte foi espancada no mercado de Ejìgbòmẹkùn, a Morte ouviu e gritou alto enfurecida. A Morte fez do elefante a esposa de seu cavalo. Ele fez do búfalo sua corda. Fez do escorpião o seu esporão bem firme pronto para a luta. (BENISTE, 2008, p. 192)

De acordo com José Beniste (2008), este evento fez com que Ìkú matasse indiscriminadamente, criando grande caos no mundo43. Então, Ifá foi consultado e ensinou as pessoas a fazerem oferendas para acalmar a Morte. Assim foi feito e a ordem se estabeleceu novamente. Ìkú então se dedicou a levar apenas aqueles que já viveram o bastante na Terra. Em outra história sagrada, Ìkú ganha sua missão de Olódùmarè por ter sido o Òrìṣà que deu a Òṣàlá a lama primordial para fazer os seres humanos:

Quando Olódùmarè ordenou que Òṣàlá criasse os seres humanos, pediu para todos os òrìṣà que trouxessem o material que melhor servisse.

43 Talvez por isso, para Abímbọ́lá (1975), Ìkú também é um ajogun, que são seres sobrenaturais ma- léficos.

Trouxeram madeira, pedra, água, areia, mas nada resolvia. Ìkú pediu para que Nàná cedesse o elemento de seus domínios, a lama primordial, para que Òṣàlá fizesse os seres humanos. Ela concordou desde que Ele ficasse incumbido de trazer a lama de volta ao final da vida de cada indivíduo. Assim se sucedeu: Òṣàlá cria os seres humanos da lama primordial e Ìkú os
trata de devolver para Nàná. (BENISTE, 2008, p. 193)

Então quando a pessoa é tocada por Ìkú, seu corpo biológico perece - é abandonado por Bara tornando-se imóvel – e é restituído à natureza ao ser enterrado. É crucial que o corpo seja enterrado, pois na percepção de mundo dos yorùbá é na decomposição dos corpos que sua força vital se redimensiona, fortalecendo a família, e a comunidade. Além disso, o Ẹ̀mí permanecerá junto ao corpo por um período de dias, que em África é de nove e no Brasil é de sete, provavelmente devido ao sincretismo com a missa de sétimo dia católica.
De forma alguma o corpo pode ser cremado, pois isto é entendido como a destruição do corpo, o que impede que sua alma, o Ẹ̀mí, seja imortalizada. A cremação é até mesmo aplicada como castigo aos “feiticeiros”, aqueles que manipulam as forças cósmicas para prejudicar alguém:

Por sua vez, o castigo que a sociedade africana impõe ao feiticeiro corresponde à concepção de vida e à escala de valores que lhe são próprias. Sendo a vida, sua propagação e conservação o valor máximo, aquele que com toda a força vital entregou-se à destruição desse valor, recebe também a punição máxima, isto é, a eliminação total da vida. Assim, contrariamente a todos os outros homens, o feiticeiro, após a morte, não é enterrado, mas incinerado ou jogado como pasto às hienas. O feiticeiro é o único a quem não é permitido sobreviver, sendo excluído da “imortalidade” prometida aos homens. Sua força vital se dissolve com a morte, e ele não pode mais ser chamado à existência por palavra alguma. A sociedade africana reserva, pois, a mais terrível punição metafísica àquele que destruiu a vida e fez mau uso da palavra: a aniquilação total, a única morte verdadeira e definitiva. (REHBEIN, 1985, p. 57)

Esta morte é considerada definitiva, porque para os africanos de modo geral, e mais especificamente para os yorùbá, a morte não é o fim, mas um portal para uma nova vida que continua no Ọ̀run e, posteriormente, será restituída novamente à vida em um novo e infindável ciclo.



Já vimos, na parte desse trabalho dedicado ao Borí, que o nosso “corpo espiritual” é composto de várias “almas” reunidas. Estas almas, de acordo com Juana Elbein dos Santos (2002), José Beniste (2008), Reginaldo Prandi (2005), Wándé Abímbọ́lá (1975) e William Bascom (1960), terão um destino próprio, cada uma com o perecimento do “corpo biológico”. Imediatamente Bará o deixa, e a evidência é a imobilidade do corpo; o Òrìṣà pessoal, que define a origem mítica da pessoa, retorna ao Òrìṣà primordial, do qual é uma parte infinitésima. O orí-inú, o princípio de individualidade, perece com ela e a acompanha na morte, juntamente com o seu projeto mítico-social. Esta narrativa está contida no longo ìtán reproduzido por Reginaldo Prandi (2001, p. 476-481) no livro, Mitologia dos Orixás.Neste ìtán fica evidente que os Òrìṣà nunca acompanharão seus filhos, seus descendentes míticos, na morte. Apenas o Orí, ou seja, apenas a divindade pessoal representada tanto pela cabeça física quanto pela mítica, o Ìgbá-Orí, que simbolicamente se apresenta como o ìpọ̀nrí, se finda com a morte. Mas este não é um fim de fato. Nessa percepção de mundo o indivíduo não acumula consciência, como ocorre no hinduísmo, no budismo e no espiritismo. De acordo com William Bascom (1960) e Wándé Abímbọ́lá (1981),
o orí-inú é constituído também pelo iyè’rántí, a memória individual da vida, de quem
o indivíduo foi e o que fez. Ele se juntará ao òjìji, a sombra, ao èémí, a respiração/ espírito, e ao ẹ̀mí, a alma, que abandonam o corpo e vagam unidos pelos lugares que a pessoa conhecia quando viva, como um fantasma, visitando amigos e parentes. Após os ritos escatológicos a alma do indivíduo será levada por Ọya ao Ọ̀run Àsàlú, onde será julgado pelo próprio Olódùmarè em um processo chamado de Ìdájọ̀.

[...] os mortos são encaminhados a um desses espaços após o fator decisivo do julgamento divino, pois, na realidade, o julgamento ocorre durante todo o tempo de vida da pessoa na Terra. As divindades contrárias ao mal acompanham as pessoas em sua vida diária e dão a sua punição: o juízo final fica a cargo de Olódùmarè, decidindo quais são os bons e quais são os maus, e os encaminham para os respectivos ọ̀run. O julgamento é baseado nos atos praticados na Terra e devidamente registrados no orí inú, que
retorna para Olódùmarè. (BENISTE, 2008, p. 201)

Após o julgamento, o “composto de almas” se desfaz: òjìji desaparece; èémí
retorna a Olódùmarè, seu gerador; o ẹ̀mí aguardará o retorno ao mundo e ao seio

familiar, continuamente, através do àtúnwa (renascimento); o orí-inú se torna apenas iyè’rántí que será cultuada como Égún, espírito individual de antepassado familiar, se tiver sido uma pessoa que mereça este reconhecimento pela comunidade, se não, fará parte do culto coletivo aos ancestrais como okù-ọ̀run. (AWOLALU, 1996; ABÍMBỌ́LÁ, 1981)
Aquele que não recebe os rituais prescritos pode se tornar um Ápáráká, espírito perturbador, sombra ou fantasma. O mesmo ocorre com aqueles que não alcançaram o tempo de morrer ainda. Para os yorùbá, quando o ẹ̀mí se encontra com Èṣù Oníbodè a caminho do Ayé, este lhe pergunta quando regressará ao Ọ̀run. Oníbodè não permite que haja regressos antes do tempo que lhe foi dito, por isso òjìji vaga como uma sombra fantasmagórica; e quando é um espírito falante, é porque está acompanhado do èémí, a respiração. “Eles permanecem na terra até que seu dia finalmente chega” (BASCOM, 1960, p. 6).
De acordo com essa cosmopercepção, o regresso ao mundo, ou seja, o àtúnwa, não é exatamente uma reencarnação como aponta José Beniste (2008, p. 203), já que a permanência do iyè’rántí no Ọ̀run indica que o ser individual permanece único e não retorna mais do “além-mar”. Por isso, cada criança que nasce em África, ainda que seja reconhecida como o retorno de um antepassado seu, deverá cumprir todos os ritos – sobretudo o Borí – que garantem a sua individuação como um novo ser. O que efetivamente retorna é o ẹ̀mí.
Divindade feminina, Ọya está intimamente relacionada com as almas dos mortos – os Égún. Ela carrega um ìrùkéré, um pequeno espanta-moscas feito com rabo de cavalo que serve para controlá-los. É a divindade escatológica por excelência, pois é quem leva as almas dos mortos para um dos nove espaços de Ọ̀run (SANTOS, 2002, p. 182-186).
Alguns ìtán narram seu poder sobre os Égún. Em um deles Ọya é esposa de Ògún, o Òrìṣà ferreiro. Ela atiça o braseiro que esquenta o metal, fazendo um som melodioso que atraiu um Égún que vinha passando, o dominando. (VERGER, 1997)
Noutro ìtán, Ọdẹ Odulẹkẹ – o grande chefe caçador – encontrou uma órfã Nupe no mercado principal de Kétu, seu reino. A garotinha estrangeira parecia uma cabrita levada. Odulẹkẹ resolveu adotá-la dando-lhe o nome de Ọya: ligeira, rápida, em língua yorùbá. Passou-se o tempo e o chefe caçador ensinou à filha tudo o que sabia de magia, caçadas e estratégias de guerra, exercitando-a na generosidade e no gosto pela arte. Um dia, Ìkú levou o grande Ọdẹ, para a tristeza de Ọya, a qual durante



sete dias e sete noites cantou e dançou em homenagem àquele que amara tanto. Ela reuniu as ferramentas de caça de Odulẹkẹ, cozinhou as iguarias de que mais gostava, entoou os cânticos mais significativos em homenagem ao pai, dançando durante sete noites na companhia de seus colegas de caça, e de todos os amigos, que também dançaram, cantaram e celebraram a memória de um bravo: o grande provedor da aldeia. Durante o àjèjé (vigília), os amigos confraternizaram-se e os desafetos congraçaram-se. Na última noite, os celebrantes reuniram todos os pertences, as comidas e ferramentas de Ọdẹ e foram depositar o carrego44 no pé de um Iróko, a árvore Òrìṣà, nas profundezas da mata. (BENISTE, 2008; PRANDI, 2001)
Olódùmarè, inspirado pela dedicação de Ọya, lhe concedeu o título de Rainha dos Espíritos, ficando com a responsabilidade de atravessar a alma do falecido entre os nove espaços do Ọ̀run. Assim, Ọdẹ Odulẹkẹ se tornou o primeiro ancestral a ser cultuado, sendo chamado de Èsá Akèrán. E o ritual criado por Ọya foi o primeiro Aròsún, nome dado aos rituais fúnebres no Batuque45. No Candomblé de origem Kétu o nome dado é àṣẹ̀ṣẹ̀, corruptela de àjèjè, e o primeiro a ser homenageado nesta liturgia é Ọdẹ. Nos rituais de passagem, nas tradições de matriz africana, costumam- se entoar cantigas em homenagem aos ancestrais de todas as Nações.
O Aròsún é uma cerimônia na qual os iniciados dançam, cantam, comem e bebem. A liturgia é pública e os visitantes são convidados para a partilha das iguarias. O traje branco é obrigatório. A cor branca é utilizada nas celebrações de nascimento e transformação, sendo necessária nos ritos de passagem de todas as Nações.
Os rituais tem início no dia de falecimento do iniciado. O corpo é velado no terreiro. As pessoas dançam e cantam em homenagem ao falecido; balançam seus braços para frente e para trás indicando que todos estão passando vivos por aquele momento. Depois sai o cortejo fúnebre com familiares pegando o caixão e balançando, para frente e para trás, em um movimento que simboliza o limiar do pertencimento tanto a este quanto ao outro mundo.
No sexto dia, de acordo com os fundamentos da tradição Ijẹ̀ṣà do Batuque, são
feitos os sacrifícios rituais, entoam-se cânticos, faz-se oferendas e come-se o “arroz com

44 Um saco feito de linhagem ou cesto de palha ou vime com tudo o que pertencia ao falecido.
45 Do yorùbá: ara (corpo) e òsùn (sono). Aròsún pode significar o “corpo que dorme”, pois para os yorùbá “o sono é primo da morte” (PIERRE, 1998). Os bantus, que deram origem aos chamados candom- blés de Angola, celebram o Mukondo e os Jeje, o sihum ou azeri, também chamado de “tambor de choro” no Tambor de Mina maranhense, em cerimônias que possuem o mesmo propósito: encaminhar a alma do morto.

galinha”, prato proibido nos outros dias, mas propiciatório nesses rituais. Ao sétimo dia são entoados os cânticos sagrados novamente. Prepara-se um banquete em que todos se refestelam. À ponta da mesa ninguém fica, pois é o lugar do falecido que, acredita- se, estar ali. Após o banquete, dança-se em círculo no sentido horário, o sentido da vida, e alguns Òrìṣà se manifestam em seus iniciados. Neste rito específico os Òrìṣà se manifestam silenciosamente, exceto Ọya que faz ecoar sua gargalhada visceral, avisando aos quatro cantos da Terra que ela está presente. Ọya veio buscar a alma do morto.
No final da liturgia, todos os implementos que pertenciam ao falecido, assim como as comidas de que gostava e as oferendas são reunidas num carrego que será depositado no mato. O mato é um espaço sagrado que também está relacionado com os ancestrais, como vimos no ìtán mais acima.
Ọya carrega a alma do morto para o Ọ̀run Àsàlú, onde Olódùmarè julgará seus atos e seu caráter. Ali Olódùmarè dará seu veredito final absolvendo ou condenando a pessoa. Caso a pessoa seja absolvida, irá para um dos bons espaços: Ọ̀run Rere, o bom lugar para aqueles que foram bons durante a vida; Ọ̀run Àlàáfíà, o local de paz e tranquilidade; Ọ̀run Funfun, espaço do branco e da pureza; ou Ọ̀run Bàbá Ẹni onde se encontrará com seus ancestrais. Mas se a pessoa for condenada, seu destino poderá ser o Ọ̀run Afẹ́fẹ́, local onde os espíritos permanecem até tudo ser corrigido e onde ficarão até renascerem; Ọ̀run Àpàádì, espaço dos “cacos”, do lixo celestial, das coisas quebradas e impossíveis de serem reparadas ou restituídas à vida terrestre através do renascimento; ou Ọ̀run Burúkú, o mal espaço, quente como pimenta, destinado às pessoas más. No Ọ̀run Àkàsò, os espíritos aguardam o regresso ao mundo através do renascimento. (SANTOS, 2002; BENISTE, 2008)
Ninguém traz nada da vida anterior para esta, portanto os conceitos espíritas de carma e a “lei da causa e efeito” que implicam os reecarnados não se aplicam à cosmopercepção yorùbá. Estar vivo é a motivação para os yorùbá. A morte é enfadonha, por isso nós, que vivenciamos a tradição yorùbá, nos apressamos para retornar à vida, pois bom é estar vivo.
A ideia de poder ser mandado para um dos “maus espaços” de Ọ̀run é perturbadora, por isso os seres humanos devem se portar de maneira exemplar no Ayé. É o comportamento humano que determinará isso. Assim é apontado que, pela ética yorùbá, os valores devem ser seguidos para garantir uma vida plena e uma pós- vida promissora.



Em minhas reflexões, cheguei a três valores que me parecem ser importantes: Orí rere, Ìwàpẹ̀lẹ̀ e ẹbọ. Orí rere é a prática das coisas boas: as boas palavras, ouvidos generosos, bons pensamentos, boas ações. Ìwàpẹ̀lẹ̀ é o bom caráter, nunca mentir, nunca enganar; e o ẹbọ são as oferendas que devem ser feitas após a consulta a Ifá. A ideia amplamente divulgada de que tudo o que nos ocorre é por merecimento, sejam coisas boas ou ruins, não se aplica gratuitamente na percepção africana de mundo.
A noção de mérito, de prêmio/castigo é judaico-cristã-islâmica e faz parte das tradições religiosas ditas proféticas. Em algumas tradições africanas não há uma noção de castigo como a aplicada no Ocidente, mas sim de resgate do indivíduo, como diz o poema de Tolba Phanem, amplamente divulgado (A CANÇÃO, [S.d.]). É possível ver ecos disso entre vários povos africanos. A noção do Ubuntu se reflete na preocupação tanto do indivíduo com o coletivo, quanto o contrário, pois o indivíduo pode comprometer todo o coletivo. Os valores africanos giram sempre em torno da comunidade, de forma que méritos pessoais não cabem, exceto se atingem diretamente a própria comunidade. O esforço pessoal através do trabalho e da dedicação está embutido na ontologia africana.
Contudo, os Òrìṣà atendem os nossos pedidos não por merecermos, mas por termos feito o ẹbọ propiciatório. As histórias sagradas falam sobre preferências dos òrìṣà e como se conquista algo a partir da observação dessas preferências. Um ẹbọ não é magia, mas uma oferenda à divindade esperando uma bênção. Esta bênção é certa se estiver tudo perfeito.
O único ẹbọ recusado pelas divindades é aquele mal feito ou realizado por pessoa mentirosa. Isso fica nítido no seguinte trecho de um oríki para Ṣàngó: (SÀLÁMÌ, 1990. p. 85-109).

Abá wọn jà má jébi Òtá òpùró
Ọlọ́lọ tí nfí ẹnu èke lọlẹ̀
Bàbá nlá, a kò má gbe ẹbọ èké rù

Aquele que nunca briga injustamente Inimigo dos mentirosos
Aquele que esfrega a boca do mentiroso no chão
Grande Pai, que faz com que o ẹbọ do mentiroso não tenha efeito.

Em outro oríki (SÀLÁMÌ; RIBEIRO, 2011, p. 354), dedicado a Èṣù, é revelado que este Òrìṣà não tolera o mentiroso, por isso não aceita e nem leva suas oferendas para os outros òrìṣà: “A kò má gbẹbọ èké rú. [Èṣù] se recusa a levar o ẹbọ do mentiroso.” Isto promove na pessoa a ideia de que deve se portar bem em sociedade, constrói no ser humano um sentimento de cidadania, civilização, respeito ao próximo, ao coletivo, a toda humanidade, enfim. Não é à toa que a expressão em língua nativa gbobo ohun ti a bà se ni Ayé l’a o kunlẹ̀ rò ni Ọ̀run significa: “todas as
coisas que fazemos na Terra damos conta de joelhos no Ọ̀run”.

Considerações finais

Evidenciamos aqui, mais uma vez, a sabedoria africana. Os ritos presentes nas tradições de matriz africana são extremamente importantes para os vivenciadores, pois é a materialidade, a vivência, a experiência dos ritos que garante para o povo de terreiro a certeza de que sua relação com o sagrado está bem alocada.
Em complemento à importante obra escrita por Jostein Gaarder, Victor Hellern e Henry Notaker (2000), O livro das religiões, o sociólogo e professor paulista Antônio Flávio Pierucci (2000, p. 318) compara as tradições de matriz africana ao cristianismo e afirma que estas não são religiões éticas como aquela o é, mas sim mágicas, e como tal, busca apenas a manipulação das forças para garantir benesses próprias.
Posso dizer que o referido professor está muito equivocado no que concerne à inexistência da ética, mas que está certo ao entender a importância dos ritos para essas tradições. Conforme evidenciado neste estudo que, obviamente, não se encerra com essas linhas.
É importante estudarmos as complexidades dos Orò nas diferentes tradições de matriz africana como elemento crucial dos Ọgbọ́n Mẹ́fà, constituindo o corpus oral epistêmico dessas tradições. Entendermos os propósitos do Borí, do Ọ̀sẹ́ e do Ìsinkú é importante na construção de significados não apenas religiosos, mas como um sentido dinâmico e constitutivo da cosmopercepção das tradições de matriz africana como o Batuque e o Candomblé.
A afroteologia, ou seja, a teologia das tradições de matriz africana, se torna um campo fundamental para a compreensão da matriz civilizatória africana no mundo ao propor uma sistematização do conhecimento ancestrálico africano



herdado pelos Bàbálórìṣà e Ìyálórìṣà, autoridades civilizatórias – como diz o Prof.
Jayro – que emergem como líderes na resistência e na defesa dessas tradições.

Referências
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⏰ Última atualização: Sep 26, 2024 ⏰

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