Capítulo 02

9 3 40
                                    

Às vezes me pego pensando em quando eu era pequeno e no quanto gostava de jogar futebol na escola. Eu era bom, um dos melhores entre os garotos da minha idade, mas tinha um outro garoto que se destacava. Ele era o melhor de todos.

Nunca ouvi chamarem seu nome de verdade, eu só o encontrava no campo e, quando estávamos jogando, todo mundo se dirigia a ele com algum apelido maldoso que arrancava risadas dos demais. Esse garoto era um pouco maior que eu, mais forte e mais rápido também, e, só quando percebi o real motivo do tratamento que ele recebia, foi que também comecei a entender um pouco sobre mim.

Antes, pensava que o tratavam daquela forma por ele ser bom no que fazia em campo, pela força do chute, pelo bom posicionamento entre a marcação adversária, por conseguir segurar a bola como ninguém ou por ter a agilidade e pensar rápido em campo, talvez fosse inveja dos outros meninos. Contudo, não demorou para que eu descobrisse que estava errado.

Em um dos treinos de sexta-feira acabei chegando mais cedo no vestiário para me trocar e, escondido num canto atrás de um armário, o vi cercado por pelo menos quatro outros garotos mais velhos. Eles gritavam xingamentos e tratavam ele como "trapaceiro", "selvagem", "anormal" e alguns outros termos que não consigo me lembrar. Eles não paravam de empurrá-lo de um lado para o outro sem parar, rindo, provocando, até que um deles resolveu lhe dar um soco no rosto.

Aquilo foi a gota d'água para ele. O menino avançou contra o outro que lhe socou com um salto tão rápido e forte que me pareceu impossível se vindo de um garotinho normal. Ele derrubou o maior do outro lado do vestiário. O baque das costas dele na parede me assustou de tal forma que, depois de sair correndo dali, voltei para o treino somente uma semana depois.

Não vi o garoto maior na escola depois disso, mas não me importava muito com ele de qualquer forma. O menor, no entanto, foi levado da escola no dia seguinte por dois adultos estranhos, eles estavam arrumados demais se comparado aos trapos que o menino usava diariamente, mas como eu era pequeno e inocente, apenas supus que fossem seus pais.

Não precisei que ninguém me dissesse que nós éramos parecidos, de alguma forma, eu só sabia. Por isso, depois de sua partida, sem alguém que se destacasse dos demais e fosse capaz de suportar o mal que lhe faziam, tive medo que acabasse sobrando para mim.

Pude continuar me divertindo em campo, mas precisava me conter um pouco. Comecei passando a jogar mais recuado, deixar o protagonismo para os outros, passei a correr menos, me esforçar menos, atrair menos atenção. Eu pude ser bom, mas não o melhor.

Na minha inocência, acreditei que talvez, em algum momento, eu não precisasse mais me conter. Afinal eu cresceria e, de algum jeito, os outros poderiam acabar melhorando e ficando tão bons quanto eu, mas não foi o que aconteceu. A cada novo ano que passava eu sentia a velocidade tomando minhas pernas, a agilidade com que meus olhos trabalhavam para encontrar as melhores opções para tocar a bola, a precisão com que meus ouvidos detectavam de quem eram os passos que avançavam para receber a bola sem que eu precisasse olhar diretamente para a pessoa.

Ainda hoje é difícil acordar e ser tomado por uma explosão de vários sentidos aflorados ao mesmo tempo, mesmo depois de tantos anos convivendo com essa condição, se é que posso chamar assim.

Àquela altura, eu já tinha visto na TV diversas histórias de pessoas que nasciam com traços de animal, adquiriam características dos mesmos e que, muitas vezes, passavam despercebidos perante a sociedade. Para as autoridades, tudo não passava de ficção ou invenção da mídia para influenciar a mente das pessoas, para jogá-las contra o governo e coisas desse tipo, mas eu sabia que era verdade. Então, foi fácil supor que eu era uma dessas pessoas.

Saí do time ainda no fundamental e meus pais sequer ficaram sabendo disso, assim como eles não ficaram sabendo, ao menos por mim, que eu tinha qualquer vantagem sobre humana.

Herança Alterada: Ascensão da Nova EspécieOnde histórias criam vida. Descubra agora