Ela foi enterrada pelo irmão. Sim, e foi a própria quem pediu. Não aguentava mais aquela danação que corrompia sua alma e destroçava seu corpo. Quanto maior era aquela a dor, mais fome ela sentia. Era um apetite que a deixava com anseios perversos. Estes sentimentos lhe faziam pensar em coisas ainda incompreensíveis. Entretanto, o pior de tudo era não conseguir desvendar o motivo dela ter voltado do mundo dos mortos. A mensagem que lhe fora dita quando decaia nas brunas do além não foram suficientemente decifráveis. Então, a única coisa que lhe fazia sentido era o desejo de proteger sua família, ou o que restou dela, pois a crueldade de um monstro lhe deixara marcas para sempre... e até depois do sempre.
† † †
― E aí, noviço rebelde, está pronto pra entrar pra gangue?
― Cara, eu já pedi pra tu não me chamar assim... ― explicou após saltar o muro.
― Já está amarelando? ― imitou uma galinha a cacarejar.
― Não estou com medo! É que eu nunca tinha entrado aqui, só isso...
― Se liga, a galera vem sempre pra cá. Você tem até sorte, sabia? Se o pessoal não tivesse aceitado fazer esse batismo só comigo, você não estaria tão de boa como agora.
― Sorte, né? Sei não heim... Cada vez mais acho que nada disso tem a ver com o teste... Você deve ta é me sacaneando.
― Medroso! É por isso que eu fui convidado pra entrar pro grupo e você não.
― Como assim "eu não"? Você me disse que...
― Sim, cara, sim... ― tentou se explicar impaciente ― Eu quis dizer que eles me convidaram. Já com você está sendo diferente, saca? Tipo, eles não confiam ainda. Por isso tem que ter um teste pra entrar na turma deles, manjou?
― Conversa fiada... ― deu de ombros ― Fale sério, conte a verdade... O que tá aprontando comigo?
― Continue andando, ô galinha choca. Vamos...
Os dois jovens continuaram caminhando. Um bastante desconfiado do destino e outro excessivamente convicto do que queria fazer.
― Putz, tem um monte de garrafas quebradas por aqui, quase pisei em um caco. Uns maços de maconha ali, seringas descartáveis... Que caminho é esse, heim?
― Vê se cala a matraca... Quer participar ou não? Venha me ajudar a pegar umas ferramentas...
― Ferramenta pra quê? O que tem aí embaixo dessa lona?
― Você é muito chato! Se ligue, vou jogar uma, segura! ― lançou um apetrecho para o amigo.
― Quase me sujou, seu puto... Ei, isso é uma pá! Pra quê diabos eu quero uma...
― Quieto, quieto, quieto... Já estou vendo! Olhe, aquele monte de areia e folhas... É uma cova, mas só que está mal enterrada...
― Ei! Êpa...
― Cara, nem comece! Pare de choramingar... Não adianta mais, já chegamos até aqui, agora que começa o desafio.
― Não, não vou fazer nada do que você tá pensando não...
― Vai sim! Ou então vou meter a pá em sua cabeça e depois te enterrar também! Vamos, comece a cavar... Com certeza alguém que não foi o coveiro enterrou alguém aqui ― sussurrou essa última frase.
― Malandro, sinistro! Que área é essa? Ainda estamos no cemitério?
― Mais ou menos. É nesta parte que são enterrados os indigentes, drogados e tal... É tipo uma desova, tá ligado? A gente vê sempre uns gangsteres poderosos jogarem corpos nessa região.