O Enfermo e a Enfermeira

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Quando a guerra iniciou, Sasuke ainda era uma criança. Desde cedo foi preciso se acustumar com os bombardeios frequentes, o cheiro de pólvora e soldados constantemente invadindo sua casa em busca de possíveis inimigos infiltrados ou recursos. Sua vida foi dividida em duas partes bem claras, a com guerra e a sem guerra.
Na primeira, seguia uma rotina simples: acordar; dar bom dia à mãe, ao pai e ao irmão, mesmo sabendo que havia possibilidades enormes disso não ocorrer; ir para a escola, onde os professores ensinavam a como se proteger em caso de invasão ou fogo cruzado — normalmente era mostrado os dois ao mesmo tempo — e voltar para casa com a barriga roncando, pois a comida era escassa e enviada em sua grande maioria ao exército; dormir sem saber se haveria um amanhã, para então recomeçar tudo de novo, de novo e de novo.
Conhecia o terror da guerra desde suas primeiras lembranças, dias no qual sonhava com coisas que crianças deveriam sonhar eram quase nulos. Seus pensanentos sempre vagavam a assuntos de adultos, do tipo que se perguntava se teriam dinheiro suficiente para os impostos ou se deveria roubar comida do carregamento militar assim que tivesse oportunidade. Mikoto tentou criá-lo afastado dessas coisas, mas como seria possível, se o confronto estava em suas portas? Sasuke foi obrigado a ver coisas horríveis. Ainda que a mãe tentasse evitar, não escapou dos olhos da criança o executamento de seis desertores em praça pública, muito menos a vez que dois soldados invadiram a fábrica que Mikoto trabalhava e arrastaram-na junto a outras mulheres para um cômodo do qual gritos suplicantes soaram por horas. Ele poderia ser muito jovem para entender, porém ao passar do tempo aprendeu duas coisas: os inimigos os matariam, e os aliados também.
Fugaku não foi um pai presente, embora não fosse sua culpa. Antes mesmo de Sasuke completar seus pequenos dois aninhos, foi convocado para a guerra, onde ficou por mais de três anos. Se retirou somente ao ser considerado inútil ao país, o que em outras palavras era: você lutou e matou por sua pátria, mas agora está alejado e imprestável, vá embora e não peça ajuda a nós. O homem não mais se segurava em pé, tendo perdido uma das pernas e queimado sessenta por cento de seu corpo em uma explosão.
Ao chegar à sua adolescência, Itachi completava dezoito anos e era levado para o campo de guerra. Não se importaram que o irmão mais velho possuía problemas sérios de saúde, sequer ligaram quando Mikoto se ajoelhou no chão e implorou para que deixassem seu filho. Eles também quiseram levar Sasuke, mas a mulher foi mais esperta e retirou uma força incrível de dentro dela, aproveitou-se da aparência maltratada do filho e mentiu que ele ainda tinha oito anos, mesmo que tivesse acabado de completar doze. Crescer com poucas refeições semanais enfim teve uma utilidade, seu tamanho franzino e magricela salvou-o de ter que morrer em batalha.
Nas poucas vezes que teve acesso a um livro, não despertou muito interesse neles. Um garoto que vivia em um mundo de morte e desgraça somente ficaria mais deprimido ao ler sobre uma vida perfeita e de conto de fadas.
Sua mãe, por outro lado, dizia amar a sensação de fugir dos problemas. Sasuke sempre a viu ler nos poucos minutos livres que Mikoto possuía, os olhos da mãe brilhavam a cada página.
A única leitura que o interessou foi a filosófica, qualquer debate que envolvesse comportamento humano, social ou histórico já o atraía. Lembrava claramente de uma frase de Jean-Jacques Rousseau: "O homem nasce bom e a sociedade o corrompe". Não pode deixar de se perguntar o que, então, corrompia a sociedade. Seu professor, ao ser contestado sobre isso, mandou que calasse a boca, o jovem Sasuke não entendia na época que durante uma guerra, tudo o que o governo menos queria era cabeças pensantes. Eles queriam formar soldados capazes de segurarem rifles, não estudiosos que debatiam sobre a vida. Afinal, a melhor maneira de convencê-los a viverem sob condições tão deploráveis, era que fossem ignorantes o bastante para sequer pensarem em algo melhor.
Thomas Hobbes e a necessidade da criação do Estado foi outra leitura que o agradou muito — mesmo que somente pudesse pensar isso na segurança de sua mente —, pois o homem dizia que era necessário uma instituição para dar certa restrição à liberdade que cada indivíduo se impunha, no sentido de coletividade, no intuído de que assim poderiam cessar a guerra constante travada contra todos. Na época, tudo o que Sasuke pode pensar era o quão errado aquele homem estava, ao menos quando escreveu aquilo, afinal as guerras eram justamente iniciadas pelo Estado, como poderia ele ser aquele que as evitava? Demorou alguns anos para que fosse capaz de compreender o que Thomas Hobbes tentou passar.
Seis anos após Itachi ter sido convocado, receberam a notícia de sua morte. Um oficial muito frio foi até sua casa com a chapa de identificação dele em mãos, dando a notícia de maneira cruel, sem se importar realmente com os sentimentos daquela família. Fugaku teve um colapso, Mikoto debulhou-se em lágrimas, já Sasuke gritou e berrou com aquele homem ao ponto de que ele perdesse a paciência e surrasse o garoto. Demorou alguns meses para que seu corpo se recuperasse por completo. Não tiveram permissão de sepultar o corpo e os três duvidavam que tivessem se dado ao trabalho de tirá-lo do campo e enterrá-lo no cemitério comunitário, como haviam dito ter feito.
Não demorou muito para que a família ficasse mais nervosa, pois embora tivessem ganhado mais tempo com a mentira de Mikoto, logo Sasuke completaria vinte e dois anos, o que significaria que os oficiais retornariam em busca do garoto de supostos dezoito anos.
Nesse meio tempo, ele teve acesso a uma frase pintada em um prédio abandonado há tanto tempo, por conta de um bombardeio, que grande parte do local havia sido tomado pela força estrondosa da natureza. Ela falava: "A guerra é um lugar onde jovens que não se conhecem e não se odeiam se matam entre si, por decisão de velhos que se conhecem e se odeiam, mas não se matam".
Demorou um tempo até que criasse coragem de perguntar a seu pai sobre quem poderia ser o autor daquilo. Fugaku disse, enquanto fumava um cachimbo, que ouvia isto desde sua época, mas também não conhecia o dono. Um brilho surgiu nos olhos de Sasuke pela primeira vez, pois haviam pessoas como ele, jovens ou quem sabe adultos da idade de seu pai, que percebiam como eram os prejudicados daquilo tudo. Notavam que somente as classes menos abastadas eram afetadas e como os poderosos ficavam protegidos por grandes muros e escudados pelos corpos dos mais pobres. Eles estavam intocáveis, enquanto crianças morriam em combate.
Sua mãe não chorou quando ele foi enviado para a guerra. Ela queria, mas precisou ser forte pelo seu menino. Seu doce menino, como o chamava. O pai despediu-se dele o dando a identificação de Itachi e a sua própria, como amuletos de proteção. Sasuke pensou no quão irônico aquilo era, pois o pai saiu do campo debilitado, ao tempo que Itachi nunca o fez.
Os primeiros meses foram os piores, teve que seguir ordens de homens podres por dentro e por fora, se submeter a situações humilhantes e comer algo que parecia lavagem de porco. A comida de sua casa poderia ser pouca, mas nunca nojenta. Os mais jovens eram enviados para a linha de frente, viam seus amigos e namorados morrerem, sem sequer poderem evitar.
Com o passar dos anos, se acostumou, subiu de cargo e guardou rancor dos poderosos que não sabiam propor ou aceitar paz. Sasuke odiava muitas coisas, ele era uma pessoa muito facilmente odiosa, tampouco fazia questão de mudar isso. Odiava o barulho do bombardeio, o cheiro da pólvora, os gritos dos soldados feridos e as súplicas dos inimigos capturados. Odiava o gosto de sangue em sua boca cada vez que era ferido e as dores constantes do tranco do fuzil. Odiava cada uma das vidas que tirou e, principalmente, se odiava por ter feito isso, mas Sasuke não odiava uma coisa. Ele não odiava Sakura.
Talvez tenha sido a partir daí que sua vida chegou na segunda parte, a sem guerra. Após seu último combate, foi anunciado que Konoha venceu o País do Som. Todo aquele conflito enfim havia terminado e Sasuke estava, no exato momento daquele anúncio, acordando em uma ala hospitalar muito branca. Ele precisou de alguns segundos para entender onde estava. Moveu com muita dificuldade sua cabeça e reparou em algumas flores deixadas na pequena mesinha ao seu lado. Seu corpo tinha faixas pelo abdômen e ele não conseguia sentir seu braço esquerdo. Foi apenas quando se sentou e viu a falta daquele membro, que teve seu primeiro surto.
Em pouquíssimos segundos, os olhos antes sonolentos se arregalaram, ele ofegou e um grito iniciou em sua garganta, subindo o tom a cada instante. Agarrou o pedaço que ainda sobrava de seu braço, gritando e chorando como nunca. Não doía mais, mas era incrivelmente agonizante acordar com um pedaço seu faltando. Uma voz preocupada veio da porta, chamando seu nome ao mesmo tempo em que algo metálico caia no chão.
Mais tarde saberia que o que caiu foram seus remédios intravenosos e, também, que quem o chamou era Sakura, uma enfermeira muito doce que cuidaria de si até se recuperar.

Diagnóstico: PaixãoOnde histórias criam vida. Descubra agora