Complexo da Penha, Rio de Janeiro
Oliver Cavalcante, 22O som distante de tiros ecoava pelas vielas do morro, mas eu já tinha me acostumado com isso. Pra mim, era só mais um dia. O que me tirava do sério não era a violência, não era o caos. O que me enlouquecia de verdade era quando as coisas saíam do meu controle. Eu detestava a sensação de não estar com as rédeas na mão, de alguém tentar desafiar o que eu havia construído.
Minha infância? Esquece. Não foi nada de bom. Meu pai me ensinou a nunca abaixar a cabeça, a sobreviver do jeito mais cruel. E foi isso que fiz. Me tornei o que ele jamais poderia ser: mais forte, mais frio, mais temido. Eu sabia que as pessoas no morro sussurravam meu nome com medo. Eles podiam não gostar de mim, mas me respeitavam. E isso bastava.
Mas tudo muda quando alguém mexe com o que é meu. E, ultimamente, a situação tava fugindo das minhas mãos. Tinham uns moleques novos, tentando ganhar nome, achando que podiam tomar espaço. Isso me irritava.
– Oliver, eles já tão se achando demais – o Fred, meu braço direito, falava baixo, olhando de canto. – A gente tem que cortar a cabeça da cobra antes que ela cresça.
Eu olhava pro horizonte do morro, os becos sujos, as casas apertadas, o ar pesado. Tudo isso era meu território. Eu já tinha feito muita coisa pra garantir que ninguém tirasse isso de mim. Mas o que eu mais detestava era quando esses novatos apareciam, achando que podiam ser algo.
– Fred, a gente vai resolver isso do nosso jeito, como sempre. – Minha voz era baixa, mas carregada de uma raiva que eu não precisava esconder.
A verdade é que, por dentro, o controle era uma linha tênue. E eu sabia disso. Eu sentia isso. Meu pai tinha plantado isso em mim desde pequeno, com cada porrada, cada palavra de ódio que saía da boca dele. E por mais que eu tentasse controlar, o instinto ainda estava ali. O problema era quando eu deixava ele escapar.
Mas tinha uma pessoa que me mantinha no eixo: Andressa. Minha irmã. Ela era tudo o que eu tinha de bom. E a única razão pela qual eu ainda tentava, de alguma forma, ser melhor.
– A Andressa tá em casa? – Pergunto, sem tirar os olhos do morro.
– Tá mermo. Ela chegou da faculdade mais cedo hoje. – Fred responde como se aquilo fosse um alívio. E, de certa forma, era. Saber que ela estava segura me acalmava, mesmo que por pouco tempo.
Andressa não sabia nem metade do que eu fazia. Nem precisava. Ela tinha uma vida diferente, e eu queria que continuasse assim. Por isso, mantinha ela longe de tudo. Longe de mim, quando o pior de mim aparecia.
Mas, naqueles dias, parecia que tudo queria fugir do meu controle. Os problemas no morro, esses moleques de merda tentando se impor, e o pior... a sensação de que, uma hora ou outra, Andressa ia acabar envolvida no meio dessa merda toda. Eu não podia deixar isso acontecer. Não com ela.
– Vou resolver essa porra agora. Chama eles. – Não foi preciso que eu falasse mais nada. Ele sabia o que eu queria.
Às vezes, eu me perguntava se um dia conseguiria deixar esse lado pra trás. Se era possível ser outra pessoa, alguém que Andressa olhasse com orgulho. Mas, na real? No fundo, eu sabia que o monstro dentro de mim sempre ia estar lá. Só esperando o momento certo pra tomar o controle de vez.
A reunião era no galpão que ficava no alto da favela, escondido entre os barracos. O lugar estava caindo aos pedaços, com as paredes descascadas e um cheiro de mofo que impregnava o ar. Não importava. Era o que eu usava pra resolver assuntos que precisavam de discrição. E dessa vez, eu estava com o sangue fervendo.
Assim que entro, Fred já está lá, com os dois líderes dos novatos que tentam se crescer. Moleques magros, com olhares de quem acha que já viu de tudo, mas não faz idéia do inferno que estava prestes a encarar.
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Instinto
FanficEm um mundo onde a ferocidade e a compaixão colidem, o instinto pode ser tanto a salvação quanto a condenação.