Parte IV. Festa Carmesin

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Ventava muito, a noite fria anunciava e cinzenta anunciava um mau presságio cor carmesim no ar. Trajado de vinho dos pés a cabeça em veludo e algodão, mascarado com um olhar sanguíneo por debaixo da peça de couro preto, Leon encaminha para o grande baile de máscaras que estava ocorrendo na casa do Juiz. O mesmo ser imundo que sentenciou seus pais à morte, cerca de dez anos atrás. Uma década inteira separaram aquele menininho do homem que se encontrava agora diante das enormes escadarias que davam acesso ao suntuoso palacete cujas estruturas internas Leon estudou minuciosamente – a base de manipulação e corrupção, ele conseguiu ter acesso a planta do casarão, estudou-a por meses a fio enquanto arquitetava seu ataque, procurando contatos e uma forma de conseguir entrar na festa sem ser barrado: eis que milagrosamente, enquanto o mesmo esperava seu contato chegar na igreja que eles haviam combinado se encontrarem, surge sua auxiliadora e facilitadora de acessar o palácio: ninguém mais, ninguém menos que a filha do Juiz, jovem e ingênua, com seus longos cabelos dourados soltos ao redor do rosto redondo coberto pelo véu branco, nas mãos calçadas em luvas rosas assim como seu vestido bufante, cheio de babados e pérolas, o enorme rosário cor carmesim cujo crucifixo em ouro pendular de um lado para outro na altura do umbigo.

Muito tímida e recatada, Isolda era conhecida na cidade como A Inacessível: só a tinham nas vistas quando ia religiosamente até a Sé para rezar, fazer sua caridade e conversar com as Irmãs. Tirando esse momento seleto de seu dia, não a via em nenhum outro canto: nenhum baile, nenhum café com a burguesia, muito menos andando nas ruas. Era realmente inacessível. E como Leon sabia que era ela? Simples: apesar de ser o pudor em pessoa, não escondia a vaidade em carregar o brasão da família bordado em tons delicados de azul céu e rosa-lilás em linha branca e dourada o brasão da família. Diziam que Isolda era a encarnação da falecida mãe e que por isso o Juiz a mantinha em seu cárcere domiciliar.

Leon sentia uma certa raiva incongruente contra ela, uma raiva primordial que não tinha fundos: enquanto ele viveu os últimos anos atolado em raiva e remorso, ansiando para que o dia da sua vingança chegar com triunfos, sobrevivendo de restos feito um indigente quando fugiu do orfanato que foi empurrado, os pés descalços criando calos e as mãos cheias de cortes, muito magro e pequeno para um menino da sua idade, Isolda tinha um tipo de vida tranquilo, regado de luxos e boa comida que lhe resultaram em braços robustos, peitos grandes, uma leve barriga e com certeza, quadris volumosos com coxas grossas por debaixo das anáguas. Oh, como ele a invejava com ódio e rancor!

Foi fácil seduzir ela. Abençoada foi a virada de vida que ele teve quando sua vida cruzou com a de um marinheiro que o reconheceu sendo filho de quem ele era num dia de fuga de comerciantes locais, quando ele roubou pão e queijo, sendo salvo e acolhido na sua tropa, tendo um tratamento decente que resultou numa crise de desenvolvimento corporal catapultando-o a crescer e ficar forte. Os dentes perdidos foram substituídos por próteses em ouro e prata, e a agilidade de três anos sobrevivendo como um larápio das ruas o ajudou nos serviços braçais dos navios – era sua volta ao lugar que nunca deveria ter se afastado.

Durante os próximos quatro anos, Leon Santo-Ignacius virou uma espécie de ícone para aqueles homens, contou como saiu do orfanato em uma noite de tempestade mas que durante o internato aprendeu a ler e escrever e até teve uma iniciação às noções de geografia e história, passando tudo o que aprendeu para aqueles homens como forma de agradecimento.

Sua vida foi uma tempestade oceânica de surpresas. Quem diria que milagrosamente a filha do Juiz iria aparecer na sua frente feito um anjo anunciando sua vingança? Ela brilhava aos seus olhos – um brilho pálido do sangue burguês que iria escorrer pelas paredes daquela propriedade. Lhe demorou uns bons meses até conseguir ter uma conversar com Isolda – e mais umas semanas até seduzí-la completamente e a prender em sua teia de intenções a envolvendo em um manto de dor e prazer proibidos na cabine do confessionário quase todas as tardes.

Tsunami (Romance Curto | EM ANDAMENTO | Sereia&Pirata)Onde histórias criam vida. Descubra agora