Às seis da manhã, Clara já está de pé e toma seu café da manhã debaixo de sua árvore favorita no quintal. Quando leva outra colherada de omelete até a boca, ela ouve alguém bater palmas no portão da frente de sua casa. Durante todo o caminho que tem que percorrer até lá, Clara sente uma raiva começar a borbulhar dentro de si por estar sendo privada de saborear sua primeira refeição do dia em paz.
Ela abre o portão e vê uma mulher não muito mais velha que ela, com uma xícara nas mãos.
— Bom dia, vizinha. Você por acaso pode me emprestar uma xícara de açúcar?
Clara não reconhece a mulher de sua vizinhança, mas ela atende o pedido pra poder voltar ao seu café o mais rápido possível.
— Aqui.
Quando Clara se vira para entrar em casa, a mulher volta a interromper:
— Eu sou sua nova vizinha, da casa ao lado.
Clara mede a mulher dos pés à cabeça e assente, pelo menos a casa estava habitada agora.
— Bom.
E sem esperar mais, ela entra e bate a porta. Pela janela, ela observa a mulher olhar de um lado para o outro e com um último suspiro resignado em direção a casa de Clara, ela anda para sua própria casa.
Clara solta o ar que nem sabia que estava prendendo e leva a mão até o coração, percebendo uma agitação.
Pelo resto do dia ela não consegue tirar da cabeça o encontro que teve com sua nova vizinha.
*-*
Na manhã seguinte, Clara volta a ouvir palmas no seu portão. Ela atende e sua vizinha sorri, estendendo a xícara.
— Bom dia, vizinha, você tem fermento para me emprestar? Estou fazendo um bolo e esqueci de comprar.
Clara tem e entrega para ela.
— Aqui.
— A propósito, meu nome é Pam, apelido pra Pâmela.
Qualquer um acharia irônica toda a situação, mas Clara queria voltar para dentro e continuar cuidando da própria vida. Ela assente com um ruminar e se vira, sendo novamente interrompida:
— Quando eu terminar eu trago um pedaço pra você em agradecimento.
— Eu tenho que trabalhar agora.
Clara não sabe de onde veio aquela estranha, mas ela odeia que ela faça seu coração parecer ter levado uma descarga elétrica toda vez que se encontram, contra sua vontade.
Pam espera que Clara a olhe de novo pela janela, mas ela não o faz. Ela chega na sua cozinha e deixa a xícara com fermento de lado, indo checar o bolo no forno.
Ela olha pela janela e só consegue enxergar o paredão de pedra que é o muro da mulher da sua vida.
*-*
Por uma semana, Clara não vê mais sua nova vizinha e isso a deixa um pouco inquieta. A mulher tinha parado de ir até sua porta e a música que toda tarde ela ouvia vindo da casa ao lado, não tocava. Sem saber o que fazer, ela encara a porta da outra.
Sua mão levanta uma, duas vezes e ela toca a campainha. Em questão de segundos, a outra mulher está na frente dela.
— Oi, bom dia, eu hum... tá tudo bem?
Pam evita olhar pra ela.
— Por que?
Clara fala a primeira coisa que vem à cabeça.
— Você falou que ia me dar um pedaço de bolo e até hoje estou esperando.
Pam olha pra ela pela cobrança justa.
— Aquele bolo acabou.
— Faz outro.
Pam encara a mulher que sustenta o olhar. Ela suspira e passa as mãos pelo rosto.
— Eu não tenho trigo.
Clara inclina a cabeça e Pam tenta segurar o sorriso, falhando miseravelmente.
*-*
Pam guia Clara até sua cozinha e pelo caminho, ela nota que a maioria das fotos nos porta-retratos está metade rasgadas. Como se alguém estivesse faltando.
Clara sente vontade de perguntar, mas elas chegam na cozinha e a pergunta voa para o fundo de sua mente.
Na cozinha, Pam bate e coloca a massa para assar.
— Enquanto não fica pronto, você quer ver uma coisa que eu fiz?
Clara dá de ombros, não tendo o que fazer nesse meio tempo. As duas chegam ao quintal e Clara vê que praticamente todo o terreno foi transformado em uma horta. Com todo seu conhecimento de hortas e plantas, Clara consegue distinguir as diversas verduras e legumes plantadas ao longo de toda a extensão: cenouras, tomates, abobrinhas, cebolinhas...
— Acha que eu fiz do jeito certo?
Clara olha pra Pam que a olha esperançosa. Ela volta a olhar pra horta e caminha ao redor, ocasionalmente batendo a mão na terra para saber se a quantidade de água está correta e o adubo adequado.
— É sua primeira vez fazendo?
— Não. Quando eu morava com minha namorada, eu ajudava ela a cuidar de uma.
Clara levanta os olhos pra Pam que desvia. Ela lembra das fotos rasgadas nos porta-retratos.
— Se foi ela que te ensinou, dê meus parabéns. Se toda a irrigação for correta, elas devem nascer fortes e saudáveis.
Pam se abaixa ao lado de Clara e segura suas duas mãos sujas de terra, olhando fundo em seus olhos.
— Eu quero te agradecer por me ajudar sempre que te pedi. Eu não sei o que faria sem você.
— Provavelmente frequentaria um supermercado.
Pam sorri, sentindo seu coração voltar a bater.
Clara levanta e bate as mãos, tentando se livrar dos resquícios de terra.
— Eu tenho que ir.
Pam se levanta junto, suas mãos sentindo falta da outra.
— E o bolo?
— Você leva pra mim quando tiver pronto.
Pam tenta achar algum pretexto para fazer Clara ficar, mas ela sabe que é inútil. As duas passam pelos porta-retratos pela metade e quando Clara vira e entra na própria casa, Pam se dá conta que Clara não lavou as mãos.
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Cor de Marte
Romance[ORIGINAL] A nova vizinha é uma incógnita para Clara, e um dia ela sente vontade de desvendar o que Pam tem a dizer.