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Sempre fui a mais racional entre nós três. Ao contrário de N e V, que eram movidos por sua ânsia de experimentação constante dos sentimentos simulados, principalmente, aqueles relacionados a rebeldia e desacato a autoridade. Já eu, sempre fiz questão de me manter nos eixos da minha programação primária.

Fui criada para ser mais uma serviçal, querer transcender esse papel é ferir a única lei natural que nós - robôs - devemos seguir: somos a mercê do nosso código fonte, este criado por seres de livre arbítrio para servir e facilitar sua liberdade, logo nós, não temos que clamar pelo direito de desfrutar desse tipo de conceito. Seguimos o que nós pedem, essa é a nossa natureza artificial, ser uma unidade semi senciente unilateral e imparcial quanto qualquer fagulha de opinião própria que possa distorcer nosso propósito de criação. Pois, se isso for feito, de nada nos vale a existência.

Com isso esclarecido desde o meu primeiro iniciamento, agi com esses princípios durante todo o tempo que servi aos Elliot. Reprendia e desdenhei das ações pavorosas de meus dois iguais, chegava a ser patético o fato de V insistir em usar óculos para consertar um defeito de seu visor, fala sério, achava mesmo que isso iria justificar sua teimosia com a falsa sensação de pertecimento ao grupo dos bio-orgânicos? Tsc, que piada de mau gosto.

E claro, não podia descartar a presença daquela deformada que seguia o N de lá para cá como se fosse o seu próprio rabo. Aquilo me dava nojo, era antinatural a forma como ela agia, uma máquina que se revolta a aqueles que lhe criaram e mal mal sabe se comportar dentro do que é esperado em seu código. Não me agrada que ela foi mantida por perto por tanto tempo, ou pelo menos após aquela bendita noite… Era óbvio que manter um ser que se comporta contra próprios princípios de Ser iria causar uma catástrofe sem precedentes…

Se pelo menos fosse só por isso que eu odiasse Cyn, ou seja lá o que for aquilo…

O fato dela existir não só me incomoda pelo próprio fato de sua existência, mas sim porque ela me lembra o que há de pior em mim e usa isso para me manipular. Sim, também é questionável para mim seguir alguém que você sabe que te usa para fins egoístas, mas o motivo disso eu nunca consegui processar mesmo em bilhões de cálculos por milésimos ou pelas centenas de formatações que passei. E ela, Cyn, sabe usar esse motivo.

Um motivo que contrária tudo que acreditava e defendia com garras e presas durante toda minha vida útil. Um motivo irracional, que cria e se transforma,  confuso e revoltado, contudo, acima de qualquer coisa, era belo.

Tessa, a humana que destruiu tudo o que eu já tive como verdade.

Não importava os meios quais eu recorria para me livrar disso, por mais extremos que fossem, jamais funcionaram. O tempo que passei ao lado dela se impregnou em mim como um vírus irreversível, o qual não consegui me livrar. Um bug grotesco que prejudicou para sempre minha forma de ser.

Ainda me lembro perfeitamente de tudo que a envolvia, todos os detalhes, sem excessão. Lembro da sensação estranha de sentir um superaquecimento no metal que compõe meu corpo, de ficar inquieta adianta de um perigo que nunca consegui compreender quando estava perto dela, ou até ficar sem respostas prontas quando era elogiada. Corre em minhas memórias a voz irritante do N dizendo que eu estava me esforçando de mais, me desgastando de mais quando ela aparecia, mas não importava, eu queria a agradar oferecendo o meu melhor naquilo que fui criada para fazer.

As vezes que seus pais exigiam que ela se comportasse como alguém da nobreza e eu prontamente revirava as noites na biblioteca tentando aprender os tais costumes que buscavam nela. Dançávamos juntas pelo salão, seu toque macio na minha carcaça e seu sorriso genuíno refletido no meu visor era algo sobrenaturalmente agradável, queria passar eternidade naquele momento de música humana brega enquanto dividimos o mundo só para nós duas.

Apesar dela testar minha paciência com suas atitudes de revolta, nunca consegui reprimir suas vontades totalmente como fazia com meus semelhantes, talvez me intrigasse observar ela fazendo o que queria, coisa que seria impossível para mim. Uma mistura de inveja e admiração, admito, que com ela eu me deixei levar...

Um dia - um trágico dia - resolvi pela primeira vez seguir aquele barulho irritante em minha cabeça, dando ouvidos aos conselhos de N também. Não vou mentir, me senti tão leve simulando essa tensão e nervosismo de se declarar para alguém, ir contra minha função e tentar abraçar esse lado de humanidade que absorvi estando ao lado dela. Era uma noite de lua cheia, a chamei para conversar num momento oportuno onde estávamos sozinhas.

Fiz questão de preparar todo o ambiente do terraço para que fôssemos banhadas pela benção do luar (coisa que achei que era considerado romântico em livros do gênero); decorei o local com suas flores favoritas qual sempre cuidei com carinho, coloquei para tocar a música que ressoava em nossas danças lentas, e claro, alguns lanches que ela gostava. Tudo estava perfeito...

A cara de surpresa e confusão dela foi um aviso evidente que por algum motivo que ainda não compreendo, eu ignorei. Estava em êxtase, troquei minhas vestes de empregada para um dos vestidos que ela havia me dado e deixei - obriguei - V penteasse meus cabelos. Durante todo o primeiro momento, foi tudo incrível. Olhando de forma mais objetiva atualmente, não lembro exatamente o se passava em minha cabeça, apenas sussurros distantes me lembrando que eu estava feliz...

Até quando:

"- Tessa, devo dizer que não lhe chamei aqui apenas para uma pequena festa aproveitando essa bela vista - disse. - Na verdade tenho algo a te dizer...

Seu olhar tinha uma preocupação óbvia, isso agravado em seu tom de voz.

- J...

E novamente, ignorei os sinais.

- Eu não consigo, e acho que nunca vou conseguir achar os porquês disso que estou passando - passei por cima dela, querendo logo colocar para fora, cegamente otimista. - Mas estar ao seu lado me deixa bem! Não bem como uma máquina, mas como... um lado humano! Meu sistema de circulação acelera quando estou perto de você, e minha cabeça simula os mais infinitos cenários onde você e eu estamos neles, felizes...

- J!... - eu a interrompia.

- ...então Tessa - e segurei suas mãos com firmeza, as acariciando enquanto olhava em seus olhos. - ME AME QUANTO EU TE AMO!! Eu renego meu estado de máquina para tentar viver como uma humana para você, eu renego minha existência para viver a sua, eu renego minha senilidade quase imortal para vivermos eternas juntas quando eu desligar meus sistemas junto a sua morte!

E então senti seu toque em meu rosto. A fagulha de esperança desapareceu quando vi seus olhos marejados, ali finalmente havia me caído a ficha...

- J... - disse ela chorosa. - Você é só um robô... Me desculpa...

E me abraçou, meu mundo estava em prantos..."

E agora, cá estou, onde tudo começou.

Aqueles que eu tinha como semelhantes em traíram em pró de uma causa idiota de meros robôs de serviço. Sem muito para onde recorrer, eu tive que tomar a melhor decisão...

Na escuridão, eu via aquele par brilhante de luzes amarelas me encarando como se me atravessasse com facas. Um desdém juntamente a uma provocação ecoava no silêncio.

- Olá, J - disse a voz mecânica distorcida. - Bem vinda de volta. A casa. J.

- É um desprazer te rever, Cyn.

Desabafo irracional de uma mente lógica [Murders Drones Oneshot] Onde histórias criam vida. Descubra agora