A Música do Abismo

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Nunca fui dado a superstições, embora as circunstâncias de meu nascimento tenham predisposto os habitantes de minha vila a pensarem o contrário. Nascido à meia-noite em uma noite sem luar, cercado por ventos que uivavam como criaturas antigas, meu primeiro grito teria, segundo os aldeões, feito os cães da região ficarem em silêncio por dias. Não posso dizer se essas histórias têm fundamento, mas desde minha juventude, fui marcado por algo que meus pais, na tentativa de proteger-me, chamavam de “melancolia”. Contudo, eu sabia que era mais do que isso – havia um peso, um pressentimento constante, uma sensação de que algo me chamava de muito além do visível.

Meus dias se passaram de maneira pacífica até o momento em que herdei a mansão de meu tio-avô, um homem de temperamento sombrio e conhecido por seus hábitos excêntricos. Ele passara anos a fio trancado em seu quarto, compondo música. Dizia-se que suas sinfonias, raramente executadas, eram assombrosas e capazes de evocar sentimentos inexplicáveis. Foi com algum desconforto que recebi a notícia de sua morte súbita, e mais desconforto ainda ao saber que eu, o mais improvável dos herdeiros, era o destinatário de sua vasta e solitária moradia.

A mansão situava-se nas encostas de um vale profundo, onde o vento parecia sussurrar coisas ininteligíveis entre as árvores secas. Logo ao chegar, senti uma presença opressiva – não apenas por suas proporções imponentes, mas pela estranha sensação de que a casa vivia e respirava, como se fosse o coração pulsante de algo enterrado. Dentro, os corredores longos e mal iluminados eram revestidos de tapeçarias antigas, representando cenas que, mesmo desbotadas, evocavam desespero e caos: batalhas entre seres deformados, florestas em chamas e estranhas formas geométricas que pareciam expandir-se e contrair-se dependendo do ângulo de visão.

Decidi explorar a casa aos poucos, e foi em uma das minhas explorações iniciais que descobri, no porão, a sala onde meu tio-avô compunha suas obras. Era um aposento circular, cujo teto abobadado parecia afunilar o som para o centro, criando uma acústica quase sobrenatural. No meio da sala, estava um piano – um piano negro de cauda, com um brilho opaco, como se sua superfície tivesse sido banhada por anos em trevas e poeira. Sentei-me ao piano por um impulso inexplicável, mas antes que meus dedos pudessem tocar uma nota sequer, algo me fez parar. Era como se o próprio ar ao redor do instrumento estivesse carregado de alguma essência que não pertencia ao mundo dos vivos.

Naquela noite, tive o primeiro de muitos sonhos perturbadores. Sonhei que estava no mesmo salão, mas tudo ao redor estava invertido. As paredes da mansão eram feitas de carne pulsante, e o piano estava cercado por sombras sem forma, que me observavam com uma fome indescritível. Em um canto escuro, vi uma figura sentada ao piano, com dedos esqueléticos que tocavam uma melodia distorcida, algo além da compreensão humana, mas que me chamou de uma forma irresistível. Acordei encharcado de suor, mas o som daquela música ainda vibrava em meus ouvidos, como uma cicatriz deixada no silêncio.

Decidi, por razões que até hoje não consigo explicar, aprender mais sobre as composições de meu tio-avô. Mergulhei em seus escritos, nas partituras abandonadas que jaziam no escritório, e, com o tempo, percebi que suas composições não eram simples exercícios de criatividade. Havia algo mais profundo, uma busca, uma tentativa de transcrever em música o que ele chamava de “a voz do abismo”. Em seus diários, ele mencionava frequentes visitas a uma cripta secreta sob a casa, um lugar onde ele alegava ter “ouvido” o som original, a essência do vazio.

Eu deveria ter parado ali. Algo dentro de mim – talvez o último resquício de razão – sussurrava que o que eu buscava descobrir deveria permanecer enterrado. Mas a curiosidade, aliada ao estranho fascínio pela música que ainda ecoava nos meus sonhos, impeliu-me a continuar.

Foi em uma noite sem estrelas que finalmente encontrei a cripta. Escondida sob o assoalho do escritório, havia uma porta de pedra que levava a um túnel profundo e sinuoso, que parecia se estender por eras abaixo da terra. Ao final do túnel, deparei-me com uma câmara imensa e antiga, revestida de símbolos que se contorciam e mudavam de forma conforme meus olhos tentavam compreendê-los. No centro, uma vasta abertura no chão – um abismo que parecia não ter fim. Ali, ao lado do abismo, estava o piano, como uma sentinela, esperando.

Quando me aproximei do piano, uma sensação indescritível tomou conta de mim. Não era medo, nem alegria, mas algo primordial – uma consciência de que eu estava na presença de algo eterno. Ao tocar a primeira nota, o som reverberou pelas paredes da cripta, e o abismo pareceu responder com um suspiro profundo. Toquei mais uma nota, e o suspiro tornou-se um gemido distante. Conforme minhas mãos se moviam pelas teclas, uma melodia se formava, algo que eu não compunha conscientemente, mas que parecia vir de dentro de mim, ou talvez de algo muito mais profundo.

A música que tocava não era feita de harmonia, mas de dissonância. Era a tradução sonora do caos, do vazio e da escuridão primitiva. Com cada nota, senti-me sendo consumido, como se a música estivesse retirando fragmentos da minha alma e lançando-os ao abismo. Os gemidos tornaram-se mais altos, transformando-se em gritos de agonia e êxtase, e logo eu não sabia mais se era o abismo que gritava ou se era eu mesmo.

Quando finalmente minhas mãos pararam, o silêncio retornou, mas não o silêncio confortável do mundo familiar. Era um silêncio absoluto, denso, que absorvia toda a realidade ao redor. E naquele momento, compreendi a verdade que meu tio-avô também havia descoberto: o abismo não era uma metáfora, nem uma visão simbólica do vazio existencial. Era real, vivo e faminto. Ele esperava por aqueles tolos o suficiente para escutar sua música, atraindo-os para suas profundezas com melodias que não pertencem a este mundo.

Ao me levantar, senti que algo dentro de mim havia sido levado para sempre. O abismo havia me marcado, e eu sabia que jamais seria o mesmo. A cripta e a mansão ainda estão de pé, mas eu não posso mais viver em seu interior. As notas daquela melodia ainda ecoam em minha mente, e às vezes, à noite, sinto o abismo chamando-me de volta, para terminar a sinfonia que nunca deveria ter sido começada.

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⏰ Última atualização: 7 days ago ⏰

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