Conto

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Obra constituída por uma série de gravações em áudio feitas pela estudante de Jornalismo, Claire Kay Brewster, em maio de 1967. A mesma foi diagnosticada com uma série de problemas mentais nos anos posteriores de sua vida, portanto, há uma certa descontinuidade entre tempos verbais e orações, bem como conteúdos desconexos da realidade.


Uma gravação em áudio de Claire Kay Brewster, compilada e romantizada por Sofia Amélia Rego D'Andrea.



66 é o número da rodovia mais famosa do mundo, um dos lugares que mais gostaria de visitar quando for mais velha. Por que estou falando disso? Não sei, gosto de lá... Ah lembrei! É porque esse número também compõe o ano que FINALMENTE entrei na faculdade. O ano passado, no caso, 1966. E digo, "finalmente" porque só consegui entrar no segundo semestre. E, pasmem, Jornalismo não é tão cobiçado como Medicina ou Direito, nem mesmo tirei uma nota ruim na prova de vestibular. Por seis meses, perguntei ao coordenador do curso porque não entrei de primeira, mas sempre desviava o assunto. Canalha! John Burrow é um nome que não vou esquecer... Mentira, não sou tão rancorosa, só me irritou muito na época. Mas ele é um apoiador do LBJ e da Guerra do Vietnã, o que é uma grandíssima "red flag"!

Enfim, ao contrário do que pareça, foram bons seis meses, o meu primeiro semestre, no caso, não os seis meses de espera. Afinal, reencontrei Misty Rose Williams!!! Amo ela, meu Deus. Era um amigo de infância, ou melhor, uma amiga de infância – segundo ela, a flexão de gênero também é mudada no passado com a transição. Estou muito feliz que a reencontrei! Ela faz Moda, OBVIAMENTE! Já consigo imaginar ela ao lado da Coco Chanel. Ela é um amor de pessoa, super tímida e afetuosa, engual eu.

Nós nos atualizamos a primeira vez que nos encontramos em outubro do ano passado. Comentei que meu pai, o "célebre doutor" David Cecil, havia falecido em 63 e, agora, morava com meu padrinho, senhor Stephen Loxley, um físico e inventor inglês aposentado. Por sua vez, ela comentou que foi expulsa de casa pelo pai em 60, quando foi pega usando vestido, e, agora, mora com a tia, Sybilla Williams, uma moça muito taciturna, que "parece uma bruxa" haha, mas que é legal, gentil, e a aceita por quem é, acima de tudo. E, até mesmo, estava disposta a pagar do próprio bolso por "a cirurgia". Fico feliz por ela!

Perguntei sobre o nome e ela comentou que não usa mais o "nome morto", escolheu "Misty" por causa da música "Misty Roses" da Astrud Gilberto e teve certeza que era o nome certo quando sua tia informou que, se tivesse uma filha, teria chamado de Karyn ou Yvonne ou Misty. Bem fofo.

Estou descrevendo Misty, porque passei a sonhar muito com ela. E todas as vezes, eram em circunstâncias similares. Em geral, estávamos num bosque com casas de madeira próximo, durante o pôr do sol. Misty usava um vestido branco meio sujo até o pés, todo enfeitado por flores, e um véu semitransparente no rosto e uma tiara de flores, parecia algo medieval ou nórdico ou celta, ou sei lá, não sei exatamente. Todavia ela ficava bem bonita com o refletir do sol poente. Sempre falava algo com um sorriso melancólico no rosto, um pedaço de sabedoria, uma reflexão sobre a natureza humana, um devaneio acerca da existência. E, antes, que eu pudesse falar algo como "o quê?" ou "porquê?" ou sequer me aproximar e tocar nela, o sonho se findava. Houve um único monólogo que lembrei após acordar e o anotei num pedaço de papel.

"Boa Donzela, a Alta-Sacerdotisa me contou sobre o culto e o Grande Rito. Sobre o vindouro Festival de Bealtine. Sobre os deuses e seu amor. Mas... será que os deuses amam suas criações? Eu sou uma Aia instruída por vocês, mulheres. Você pensaria em me amar algum dia? Claro, eu amo você. Não foi assim que vocês me fizeram?". Quando me aproximei, ela continuou com o mesmo sorriso melancólico, gesticulando um "tchau". "Adeus, Boa Donzela. Que você encontre seu valor no mundo desperto.".

Devaneio sobre "O Festival de Bealtaine"Onde histórias criam vida. Descubra agora