Dentro do carro, eu contava as gotas de chuva escorrendo pelo vidro enquanto papai falava ao fundo sobre seu trabalho. Ele era motorista de caminhão e estava sempre ocupado viajando. Mamãe estava ajustando a música no som e, como sempre, escolheu sua preferida: "Aquieta minh'alma". Voltar à casa da vovó, após a morte do meu irmão, parecia sem sentido e deixava um vazio enorme. Se Arthur estivesse conosco, estaria fazendo uma de suas piadas sem graça ou me irritando; confesso que sinto falta disso.
Arthur faleceu em um acidente de moto no primeiro dia de inverno, quando eu tinha 17 anos. Lembro que, nesse dia, mamãe avisou que não era uma boa ideia sair de moto, pois a primeira chuva sempre é mais forte. Arthur não deu muita importância ao que mamãe disse e, antes de sair pela porta, me disse sorrindo:
- Se cuida cabeção, volto mais tarde para comer o pudim que a mamãe está fazendo e te prometo assistir aquele filme que você insiste para assistirmos em família. Talvez eu traga alguém aqui hoje, mas não conte a mamãe, ela cria expectativas muito rápido. - E saiu pela porta antes que eu pudesse dizer alguma coisa.
~ 3 HORAS DEPOIS ~
Papai acabara de chegar em casa quando nosso telefone começou a tocar. Mamãe, que estava perto, atendeu. O semblante feliz dela rapidamente se transformou em um desespero ensurdecedor. Ligaram para informar que houve um acidente entre duas motos, e uma delas ficou prensada em uma barra de ferro. Arthur foi levado diretamente ao hospital, onde a cirurgia durou mais de duas horas, até que ele sofreu uma parada cardiorrespiratória. Não tive a chance de dizer que o amava ou de lhe dar um último abraço, e essa dor me consumiu por anos.
~
Quando chegamos, já era finalzinho da tarde, vovó estava na varanda lendo um livro e quando nos avistou, deixou tudo de lado e veio em nossa direção.
- Olá filhinha, como você está?
- Olá mãe, não vou mentir... Ainda dói um pouco, mas Deus sabe o que faz. - Disse minha mãe, com um olhar triste, mas com um sorriso no rosto.
- Olá sogra, espero que esteja bem. Mas me fala... onde posso colocar esse tanto de mala? - Disse meu pai um pouco sem graça, mas apressado pois ele tinha muitas malas na mão.
- Vocês irão ficar no segundo quarto, e a Ysis irá ficar no quarto ao lado do meu. - Disse vovó, com um sorriso calmo e com um olhar analítico.
Não falei muito com a vovó, pois sei que ela é capaz de me ler bem. Qualquer palavra que eu dissesse ou qualquer movimento meu poderia revelar meus pensamentos. Ela sempre foi muito observadora, e eu sempre admirei isso nela. Contudo, há algo nela que me traz paz e esperança de que dias melhores virão, talvez por causa da fé que ela carregava. Ver a vovó adorando e orando me fazia feliz, mas também me causava inveja; nunca consegui compreender a fé que ela tinha, especialmente após a morte do meu irmão. Parecia que, mesmo diante da dor, ela encontrava paz e sorria. Não sei como ela consegue ver alegria após a perda dele, mas sei que essa alegria me fazia sentir raiva de estar perto dela.
Eu estava sentada na varanda quando vovó chegou silenciosamente e me entregou um pedaço de bolo de cenoura com chocolate. Agradeci, mas não conseguia olhar muito em seu rosto. Ela se sentou ao meu lado e ficou observando a chuva cair. Houve um abismo de silêncio entre nós, até que ela falou.:
- Entendo que não queira falar comigo, desde a morte de seu irmão você se afastou de mim. Não sei bem o motivo, Ysis, mas sei que essa dor que você sente, esse remorso que te corrói, se você não permitir que Jesus te cure, ele pode envenenar a sua alma e adoecer a sua mente e coração. - Fiquei olhando fixamente para o coqueiro que balançava junto ao vento e senti uma lágrima teimando em cair, eu sei que ela percebeu, pois continuou falando. - Minha querida Ysis, lembra de quando íamos a igreja? E você ficava ansiosa para ver o pessoal louvando? Era engraçado, pois mesmo que o seu irmão dissesse que você não sabia cantar, você estava lá junto louvando. - Ainda fiquei em silêncio, pois sabia aonde ela queria chegar. - Você se lembra daquela passagem que você amava? Qual era mesmo? Tinha algo haver como a corça...- Anseia por águas correntes, a minha alma anseia por ti, ó Deus. A minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo. Quando poderei entrar para apresentar-me a Deus? Minhas lágrimas tem sido o meu alimento de dia e de noite.... - Comecei a chorar e não conseguia mais falar, a dor que eu tentava ignorar voltou a aparecer. Senti minha avó se aproximando mais e me envolvendo em seu abraço, por algum motivo, mesmo que eu ainda tenha raiva dela, o abraço dela me traz paz.
- Não carregue o fardo sozinha meu amor, você só tem 19 anos. Deixa Deus tratar essa ferida e me perdoe caso tenha te machucado. Eu não quero ser sua inimiga, somos família e a verdadeira luta não é contra as pessoas... Deus está com você!
- E ONDE ESTAVA DEUS QUANDO O ARTHUR TEVE A PARADA? ONDE ESTAVA DEUS QUANDO MINHA MÃE TEVE QUE SER INTERNADA PARA TOMAR MEDICAÇÃO PARA DEPRESSÃO? ONDE ESTAVA DEUS QUANDO EU PERDI ELE? ONDE ELE ESTAVA VOVÓ? - Disse, em meio a dor, em volta de lágrimas e um aperto no coração.
- Mesmo em meio a dor, Deus ainda está trabalhando. "Neste mundo, vocês terão aflições; contudo, tenham coragem! Eu venci o mundo". - disse ela, recitando João 16.
Vovó sempre soube o que eu estava passando. Desde pequena, parecia que Deus falava com ela através de sonhos, e ela tinha o dom de sentir o que os outros sentiam. Olhei para vovó e, mesmo sem precisar dizer uma palavra, ela percebeu que eu a havia perdoado. Joguei a raiva e a culpa sobre ela porque não sabia, e ainda não sei, como lidar com meus próprios sentimentos.
Desde a infância, Arthur e eu acompanhávamos nossa avó à igreja. Aqueles momentos eram especiais; passávamos horas ajudando-a a ler a Bíblia, decorando versículos e aprendendo louvores que nos preenchiam de alegria. Lembro-me do dia em que Arthur se batizou: o sol brilhava intensamente, como se celebrasse aquele momento. Vovó estava linda em seu vestido branco florido, mamãe usava uma saia rosa clara com uma blusa branca, e papai, casual, vestia calça jeans e uma camiseta polo vermelha.
Naquele dia, havia uma luz especial ao redor de Arthur e um sorriso radiante em seu rosto. Eu sentia um desejo profundo de experimentar aquela mesma alegria, de entender como confiar e ter fé como eles. Matthew, meu amigo, também se batizou naquele dia e estava radiante. Ele não parava de comentar o quanto mal podia esperar pela minha vez. Matthew, moreno e sempre sorridente, era um ano mais novo que eu e tinha o talento de contagiar todos com sua energia nas festividades e células da igreja.
Após a morte do meu irmão, porém, eu nunca mais consegui voltar para reencontrar Matthew. A ideia de vê-lo era como encarar uma versão mais jovem do meu irmão, e essa dor ainda me machucava profundamente. Essas memórias permanecem comigo, um misto de alegria e saudade, como uma lembrança doce que ainda provoca um aperto no coração.
- Quem é aquele no meio da chuva? - Perguntou vovó, que me fez sair um pouco das lembranças.
- Não sei, vou chamar o papai para ver.... - Mas antes que eu pudesse me levantar, a pessoa sumiu em meio ao vento. Pisquei algumas vezes e entrei para dentro sem dizer mais nenhuma palavra.
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INVERNO
SpiritualEm meio a uma tragédia pessoal, uma jovem se vê perdida entre a dor e as incertezas da vida. Apesar de ter crescido em um ambiente religioso, sua fé nunca foi testada de verdade. Agora, confrontada com sua perda, ela embarca em uma jornada interior...