Reencontro

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Me levantei e fui em direção a cozinha, vovó estava com seu rádio ligado escutando uma pregação enquanto fazia pão de queijo e café para gente.
- Bom dia vovó!
- Bom dia minha princesa! Como você está? Dormiu bem? Quer café? - Disse ela com um sorriso no rosto enquanto limpava as mãos em seu avental.
- Dormi bem e sim, eu quero um café. - Respondi enquanto me sentava a mesa.
"Porque as vezes vivemos tantas experiências difíceis na vida e a gente não entende o porquê de cada uma delas..." . Ouvi essa frase saindo do rádio que vovó escutava, e suas palavras ficaram gravadas na minha mente. Desde a morte de Arthur, tenho questionado tudo e todos, especialmente a Deus. Por que Ele teve que levar meu irmão? Por que permitiu tanto sofrimento em nossas vidas? Essas perguntas ecoam incessantemente em meu coração, enquanto busco respostas para a angústia que sinto.

- Minha princesa, aqui está o seu café. Estava pensando, o que acha de me acompanhar na visita na casa de uma das irmãs da igreja? Seria bom ter a sua companhia. - Disse vovó com um olhar doce, mas preocupado.

- Não sei, desde a....

- Morte do seu irmão você carrega um fardo que não era para carregar. Me acompanhe hoje, na volta quero te mostrar algo que sempre esperei para quando vocês voltassem.

Mesmo que eu não quisesse, a vovó insistiria até eu ceder. Então, decidi ir antes que a inquietação me dominasse novamente. Enquanto vestia um vestido preto com flores, olhei-me no espelho e não reconheci mais quem eu era. Meu olhar refletia uma angústia profunda que sempre surgia. Meus cabelos castanhos e ondulados estavam presos em um rabo de cavalo. Permiti-me olhar mais uma vez e percebi que nada seria como antes; nada poderia me trazer de volta a quem eu costumava ser.

Quando cheguei à varanda, a vovó já estava em seu fusca branco. Notei algo diferente no carro: um adesivo de borboleta azul perto da porta do passageiro. Minha avó nunca gostou de borboletas; sempre imaginei que, se fosse enfeitar seu velho carro, escolheria rosas. Entrei em silêncio e seguimos em direção à casa de uma irmã da igreja. Quando chegamos, percebi onde estávamos. Ainda não conseguia vê-lo; estava muito cedo, e eu não conseguiria entrar lá...

- Olá meu raio de sol. - Ouvi uma voz grossa ao lado da minha janela quando estacionamos. Virei-me para olhar, mesmo sabendo que apenas duas pessoas me chamavam assim, e uma delas já estava morta. Matthew ainda tinha o cabelo castanho e despenteado, a pele morena, e parecia mais alto do que eu lembrava. No entanto, havia algo diferente nele, mas ainda não conseguia identificar o que era. A princípio, imaginei que não o veria tão cedo, mas ao ouvir seu chamado, uma profunda calma me envolveu, acompanhada de uma vontade intensa de abraçá-lo e dizer o quanto senti sua falta.
- Olá Matthew! Como você está? Nos ajuda a descer os pães de queijo e os refrigerantes que eu trouxe? - Disse vovó.
Matthew caminhou para o outro lado, abriu a porta para minha avó e a ajudou a descer as sacolas de bebida. Eles foram à frente enquanto eu tentava me recompor, perdida em pensamentos. Quando foi que Matthew se transformou dessa maneira?
Ao entrar na casa da mãe de Matthew, fui imediatamente atraída por um quadro que pendia na parede. A foto, emoldurada com carinho, capturava um momento especial: nossas famílias reunidas após o meu batismo. Lembro que era um dia frio e nublado, com o céu cinza prometendo chuva. Para aquecer os ânimos, a mãe de Matthew preparou um delicioso caldo de frango, o aroma reconfortante preenchendo o ar. Na memória, vejo Arthur tocando seu violão, as notas suaves ecoando pelo jardim, enquanto Matthew, com seu sorriso encantador, cantava com entusiasmo. A harmonia entre os dois era perfeita, e a alegria daquele momento ainda ressoava em mim. Essa lembrança agora parecia tão distante, como se pertencesse a outra vida.

- Ele faz falta.- Disse uma voz doce e suave. Era a mãe de Matthew. Tia Déborah era uma mulher serena, tinha olhos de jabuticaba e um cabelo curto castanho claro.
- Oi tia.
- Sentimos a sua falta, principalmente o Matthew. Vamos, já vai começar a célula. - Disse ela enquanto me levava para sala.
Quando entrei na sala, Matthew e vovó estavam do outro lado. Ele havia pegado um violão e começou a tocar algumas notas, logo a reconheci. Era nossa música favorita, a primeira vez que escutamos ela, estávamos passando em frente a uma casa no final da rua do Matthew. Arthur havia virado pra gente e falado para nunca esquecermos dessa canção pois é uma forma de Deus falar com a gente e mostrar seu cuidado com a gente. Depois desse dia, em Teus braços se tornou nossa música favorita.
Após a célula, fomos para o fundo da casa, lá havia uma mesa em meio ao jardim. Enquanto vovó trazia seus pães de queijo, tia Déborah colocava o bolo e o café na mesa. Estava tudo lindo nesse dia, mesmo que tempo estivesse um pouco nublado. Matthew se aproximou devagar e senti ele me observando.
- Oi bombom, por que está me encarando? - disse ainda de costas.
- Credo, como você consegue saber que alguém está te olhando? - disse ele se aproximando mais e parando ao meu lado.
Olhei para ele e não pude deixar de imaginar como Arthur reagiria ao perceber que Matthew se tornara uma cópia física perfeita dele. A única diferença entre os dois eram as pequenas pintinhas que adornavam o rosto de Matthew, que davam um toque único à sua aparência. Era intrigante pensar em como essas sutis marcas eram a única coisa que os separava, enquanto o semblante, o jeito de sorrir e até a maneira como ele se movia lembravam tanto Arthur. A ideia me trouxe uma mistura de nostalgia e saudade, como se estivesse revivendo memórias que ainda eram muito vivas em meu coração. Olhar para Matthew me traz conforto, apesar da dor que sinto ao me lembrar do meu irmão. E me arrependo de o ter rejeitado quando éramos adolescentes. Fico pensando, o que teria acontecido se eu tivesse aceitado seu pedido?
- Ysis, eu sinto muito pelo seu irmão. Queria ter ido no velório, mas não queria que a imagem dele no caixão ficasse na minha memória. Eu deveria ter ido para ficar com você e me arrepen...
- Tudo bem Matthew. - O interrompi antes que a lágrima caísse. Quando fui descer as escadinhas do jardim, ele me segurou pelo braço.
- Ysis, por favor, não se afaste de mim. - disse ele com um olhar de tristeza. Ele me puxou para mais perto e me abraçou. - Você sabe que eu amo vocês, não quero perder mais ninguém.
- Tudo bem, não vou me afastar.
Ficamos mais um tempo abraçados, até que tia Déborah nos chamou para comer.
Vovó quis voltar sozinha para casa e pediu que Matthew me acompanhasse. Acho que os dois haviam planejado isso.
- Sabe Ysis, muita coisa mudou desde que tudo aconteceu. A Miranda se mudou para fora meses depois que descobriu que o Arthur faleceu, afinal, ela estava aqui ainda por ele e acho que ela nem chegou a ir na casa de vocês naquele dia e eu...
- Miranda? Na minha casa? Quer dizer que a pessoa que o Arthur iria levar para casa era a Miranda? - Parei bruscamente para tentar entender o que eu havia escutado.
- Sim, você não sabia? Os dois estavam orando a quase 02 anos. O dia que o Arthur sofreu o acidente seria o dia que eles iriam oficializar o namoro, mas ele nem conseguiu buscar ela no aeroporto.
Fiquei parada mais alguns minutos, tentando entender o que ele havia falado. Seria por isso que ele queria vir quase todo mês na vovó? Seria por isso que ele havia dito para não contar a mamãe pois ela ficaria ansiosa? Não acredito que nunca havia percebido.
- Acho que preciso andar mais um pouco para raciocinar, será que podemos por enquanto, não tocar no assunto do meu irmão?
- Tudo bem. Sobre o quer falar?
- Hmmm... me fala, como você está na igreja? Arrumou alguma namorada? E os estudos? - perguntei indiscretamente pois queria saber se ainda manteve a promessa.
- Bom, hoje eu sou vice líder de jovens, toco na banda da igreja, estou comprando meu carro e os estudos, bom... quero fazer faculdade em breve, então estou me empenhando para conseguir tirar notas boas.
Ok, sem nenhuma resposta sobre namoro, deve que ele seguiu em frente. Afinal, era só um amor de infância, dos dois lados, mas é melhor assim, não quero arrastar ele não ir para onde estou espiritualmente e sentimentalmente.
- Sobre estar namorando, eu nunca namorei. Você sabe que sempre gostei de você.... - Um breve silêncio pairou. - Mas só irei chamar você para orar quando sentir que está pronta para isso e como te prometi, irei esperar o tempo que for.
- Matt, eu... - Eu queria dizer que amo ele, que desde o dia em que o vi ele tocando na igreja eu sou apaixonada nele.
- Tudo bem Ysis, eu entendo. Com a morte do seu irmão, com tudo o que anda acontecendo, você não vai querer isso tão cedo.
- Matt, eu ia dizer que futuramente podemos sim orar, eu gosto de você. Mas é que no momento, eu não estou bem espiritualmente, emocionalmente e nem fisicamente. Não quero te arrastar para o abismo em que eu me joguei.
- Tudo bem, estarei aqui com você e orando por você.

Caminhamos juntos até a casa da vovó, trocando sorrisos e memórias ao longo do caminho. Ao nos despedirmos, ele me envolveu em um abraço caloroso e, antes de se afastar, prometeu que ligaria.

Assim que cheguei à porta da vovó, não pude deixar de olhar novamente para a sombra que havia aparecido no dia da chuva. Era a mesma silhueta misteriosa, e, para minha surpresa, começou a se mover em minha direção. Um arrepio percorreu minha espinha enquanto eu entrava na casa, sentindo que algo inexplicável estava prestes a acontecer.

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