No coração do cosmos, a noite não se derramava como antes. Ali naquele extenso campo, ela não caía, mas se rasgava em uma dança eterna em espirais que se desdobram, diluídas em cores, um mar de azuis profundos e amarelos flamejantes.O céu era um véu partido, feito de pinceladas presas em um grito silencioso.
A escuridão tinha luz, e a luz carregava sombras. Não havia começo nem fim naquele campo.Ele estava lá, conectado a tudo, sentado no meio do campo, como um pigmento borrado no interior de uma tela furiosa. Seus olhos — que já haviam visto a beleza e o desespero se entrelaçarem tantas vezes — agora observavam o céu com o mesmo espanto trágico de quem tenta tocar o infinito com os dedos sujos de tinta.
Cada estrela lhe parecia uma ferida aberta. “Eu preferiria morrer de paixão do que de tédio”, ele pensou, e sorriu amargamente.E como se o universo conversasse com ele, o vento soprou mais forte, arrancando-lhe o chapéu de palha, que rodopiou pelo campo, tão frágil quanto a vida que ele tentava capturar com suas cores.
Seu olhar estava perdido nas camadas de cor que ele mesmo havia derramado sobre o mundo, observava atentamente as estrelas, estrelas essas que haviam sido arrancadas do coração de um homem que buscava desesperadamente ver beleza no caos.
As pinceladas, a tinta, os espirais que moldavam aquele mundo não pertenciam a ninguém mais além dele.Vincent.
Enquanto isso, uma silhueta se formava pegando o chapéu de Vincent que voava solto pelo campo. Sutilmente aquela presença caminhava até ele.
Ela estava ali, como se tivesse emergido das profundezas do próprio tecido da criação, uma figura que pulsava com a força de uma dor tão bela que fazia o coração doer só de olhar.Suas vestes eram um delírio de cores, vermelho e laranja ardendo contra o azul do céu. No cabelo, flores – não flores delicadas, mas flores que pareciam nascer de um pulsar próprio, tão vivas que quase gritavam.
Os olhos dela. Ah, aqueles olhos. Neles, havia algo das estrelas, algo de infinito que queima e se apaga ao mesmo tempo. Era como olhar para um espelho partido, onde cada pedaço refletia uma dor diferente. Vincent sentiu-se pequeno diante dela, uma pincelada fraca no meio de uma tempestade de cores que ele jamais ousaria tocar.Frida.
Caminhou pelo campo, seus pés tocando o chão como se não fossem feitos de carne, mas de algum vestígio de sonho, algo que escorria entre a realidade e o impossível.
Seu olhar se encontrou com o dele, e, por um momento, o silêncio entre eles parecia tão tangível quanto os traços que moldavam aquele espaço.
Frida sentou-se ao lado de Vincent, perto o suficiente para que ambos pudessem sentir o peso de suas almas sem a necessidade de palavras imediatas. As estrelas continuavam a rodar, imponentes, quase indiferentes às dores que carregavam. E um esfumaçado saía de pequeninas casas, quase apagadas, de um vilarejo, distante no horizonte
— Eu conheço este lugar — disse ela cortando o silêncio, a voz baixa, densa, carregada. — Este campo... já o vi antes, em sonhos. É onde as estrelas morrem quando se cansam de brilhar.
Vincent permaneceu em silêncio, o peito apertado como se as próprias palavras o tivessem abandonado. O vento roçava sua pele, mas ele não sentia frio. Sentia o peso de algo maior, uma força invisível que puxava sua alma para a dela, como duas linhas de um mesmo bordado, trançadas em direções opostas, mas destinadas a se cruzar.
— Eu pintei essas estrelas — murmurou ele, finalmente, mas as palavras soaram vazias. — Mas elas não são minhas. Elas pertencem ao silêncio. Um silêncio que engole tudo, até o que eu tentei salvar.
Frida sorriu, mas seu sorriso era como um corte que ainda sangrava. Seus olhos negros refletindo o céu que girava acima, cada estrela uma lembrança perdida.
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Entre Pincéis e Sussurros
PoésieEntre estrelas que giram e flores que sangram, Van Gogh e Frida Kahlo encontram-se em um universo onde a dor é a tinta que colore suas almas. Cada capítulo é uma travessia por um quadro, um mergulho em mundos criados pela fúria e beleza de suas ment...